Flor do Lótus
Nº 20 - Novembro/Dezembro de 1998 - ano II

Cabeça do Buddha

SAUDAÇÕES

A todos que nos cercam, e dividem conosco o espaço e as atividades do Lótus - Centro de Meditação e Estudos Budistas, nossos melhores votos de um Ano Novo de Paz Prosperidade, de Esperança e de Amizade.

Com o abraço sincero e carinhoso de todos nós aqui do Lótus.

Que Todos Os Seres
Sejam Felizes!

Com Metta.

Divisor

AS TRÊS JÓIAS

A raiz da palavra buddha significa despertar, tomar conhecimento, compreender. E aquele que desperta e compreende é chamado de Buda. Simplesmente isso! A capacidade de despertar, de compreender e amar é chamada de natureza de Buda. Quando os budistas dizem: eu me refugio em Buda, eles estão confiando na sua própria capacidade de compreender, tornar-se despertos.

No budismo existem 3 jóias preciosas: Buda, aquele que está desperto; Dharma, o caminho da compreensão e do amor; Sangha, a comunidade que vive em consciência e harmonia. As três são interligadas, e às vezes é difícil distinguir uma da outra. Todos nós temos a capacidade de despertar, compreender e amar. Assim, em nós mesmos encontramos buda e também dharma e sangha.

Buda foi aquele que desenvolveu seu entendimento e amor ao mais alto nível.

Compreensão e amor não são duas coisas, mas uma só. Para desenvolver a compreensão é necessário que se exercite olhar para todos os seres vivos com olhos de compaixão. Quando você compreende, você ama; e quando você ama, age naturalmente, de tal forma que alivia o sofrimento alheio.

Aquele que está desperto, que sabe, que compreende, é chamado de buda. Ele existe em todos nós.

Podemos nos tornar despertos, compreensivos e também amorosos.

Há 2 500 anos atrás existiu uma pessoa que praticou isso de tal forma que seu entendimento e amor tornaram-se perfeitos, e todos no mundo reconheceram isso. Seu nome era Siddhartha. Ele era muito jovem ainda quando começou a ver que a vida contém muito sofrimento; que as pessoas não amam umas às outras; não se compreendem suficientemente. Deixou então o seu lar e foi para a floresta praticar meditação, respiração e sorriso. Ele se tornou monge e praticou a fim de desenvolver seu despertar, sua compreensão e amor no mais alto nível.

Quando dizemos: Eu me refugio em Buda, deveríamos entender também: Buda se refugia em mim; porque sem a segunda parte, a primeira não é completa. Buda necessita de nós para que o despertar, o amor e a compreensão possam se tornar reais e não meros conceitos. Essas coisas devem ter efeitos concretos na vida. Sempre que eu digo: Eu me refugio em Buda, ouço: Buda se refugia em mim. Nossa tarefa é muito importante: realizar o estado desperto, realizar a compaixão, realizar o entendimento. Todos nós somos budas, porque só através de nós é que a compreensão e o amor se tornam tangíveis e efetivos.

Buddhakaya em sânscrito significa corpo de Buda. Para o budismo ser real é necessário que haja um buddhakaya, ou seja, uma personificação da atividade desperta. De outra forma o budismo é apenas uma palavra. Shakyamuni Buda era um buddhakaya. Ao realizar o ato de despertar, compreender e amar cada um de nós é buddhakaya.

A Segunda jóia é o Dharma, isto é, o que Buda ensinou. É o caminho da compreensão e amor: como entender, como amar, como transformar essas coisas numa realidade. Antes de morrer, Buda disse aos seus discípulos: "Meus caros, meu corpo físico não estará mais aqui amanhã, mas o corpo do meu ensinamento estará sempre aqui para ajudá-los. Considerem-no como seu mestre, um mestre que jamais se separa de vocês.

Esse foi o nascimento do dharmakaya. O Dharma tem um corpo, o corpo dos ensinamentos ou o corpo do Caminho. Dharmakaya significa apenas Os Ensinamentos de Buda, a forma de realizar a compreensão e o amor. Qualquer coisa pode ajudar a despertar a natureza búdica. Quando estou só e algum pássaro me chama, retorno a mim mesmo, respiro e sorrio e, às vezes, ele volta a me chamar. Então sorrio e respondo: - Já estou ouvindo-o. Não só os sons como também as paisagens podem relembrá-los de retornarem a si mesmos. Ao abrir a janela de manhã e ver a luz inundar o ambiente, você pode reconhecer isso como a voz do Dharma, e isso se torna parte do dharmakaya. Essa é a razão por que as pessoas despertas vêem a manifestação do Dharma em todas as coisas. Num seixo, num bambu, no choro de uma criança, qualquer coisa pode ser a voz do dharma chamando. Nós devíamos ser capazes de praticar dessa forma. Um mestre também é parte do dhamakaya, porque ele ou ela nos ajuda a despertar. Sua aparência, sua forma de viver o dia-a-dia, sua forma de lidar com as pessoas, animais, plantas, nos ajudam a atingir o entendimento e o amor em nossa vida. O dharmakaya não é expresso só por palavras, por sons. Pode expressar-se simplesmente sendo. Às vezes ajudamos mais quando não fazemos nada do que quando fazemos muito. Chamamos isso de não-ação. Esse é também um dos aspectos do dharmakaya: sem falar, sem ensinar, apenas sendo.

Sangha é a comunidade que vive consciente e em harmonia. Sanghakaya é um novo termo em sânscrito. A Sangha também precisa de um corpo. Quando você está com sua família e pratica a respiração e o sorriso, reconhecendo o corpo de Buda em você e em seus filhos, então sua família se torna sangha. Um amigo, nossos filhos, nosso irmão ou irmã, nosso lar, as árvores do nosso pátio, tudo isso pode ser parte do nosso sanghakaya.

A prática do budismo, a prática da meditação é para a pessoa se tornar serena, compreensiva e amorosa. Desta forma trabalhamos pela paz de nossa família, de nossa sociedade. Se olharmos mais de perto, veremos que As Três Jóias são, na verdade, uma. Em cada uma delas as outras duas estão presentes. Em Buda existe o estado búdico, existe o corpo de Buda.

Em Buda existe o corpo do Dharma, porque sem este ele não poderia se tornar Buda. Em Buda está o corpo da Sangha, porque ele fez seu jejum junto à árvore Bodhi, a outras árvores e pássaros da região. Num centro de meditação temos um corpo de sangha, sanghakaya, porque ali é praticada a compreensão, a compaixão. Assim, o corpo do Dharma, o Caminho e os Ensinamentos estão presentes. Mas os ensinamentos não podem tornar-se uma realidade sem a vida e o corpo nossos. De forma que buddhakaya também está presente. Se Buda e Dharma não estiverem presentes, não existe Sangha. Sem você, Buda não é uma realidade, mas apenas uma idéia.

Sem você, o Dharma não pode ser praticado. Precisa de alguém para poder ser praticado. A Sangha não pode existir sem cada um de vocês. Por isso, quando dizemos: Eu me refugio em Buda, ouvimos também: Buda se refugia em mim. Eu me refugio no Dharma. O Dharma se refugia em mim. Eu me refugio na Sangha. A Sangha se refugia em mim.

Caminhos Para A Paz Interior - Thich Nhat Hanh - Edit. Vozes

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SOFRER NÃO BASTA

A vida é cheia de sofrimento, mas é também cheia de maravilhas, como o céu azul, a luz do sol, os olhos de uma criança. Sofrer não basta! Nós temos também, de estar em contato com as maravilhas da vida. Elas estão dentro de nós, em torno de nós, em todos os lugares e a qualquer hora.

Se não estamos felizes, não ficamos em paz e não podemos partilhar paz e felicidade com os demais, mesmo com aqueles que amamos, com aqueles que vivem sob o mesmo teto. Se estamos em paz e felizes, podemos sorrir e nos abrir como uma flor, e todos em nossa família, a sociedade inteira, se beneficiarão de nossa paz. Será que é preciso um esforço especial para desfrutar a beleza do céu azul? Será que temos de praticar para podermos usufruí-la? Não! Nós apenas usufruímos. Cada segundo, cada minuto de sua vida pode ser assim. Onde quer que estejamos, seja a que hora for, temos a capacidade de desfrutar da luz do sol, da presença de alguém, ou mesmo da sensação de nossa respiração. Não precisamos ir à China para desfrutar do azul do céu; Não precisamos viajar ao futuro para aproveitar nossa respiração. Podemos estar em contato com essas coisas aqui e agora. Seria uma pena estarmos conscientes apenas do sofrimento.

Vivemos sempre tão ocupados que mal olhamos para as pessoas que nos são caras, mesmo as de nossa família; mal olhamos para nós mesmos. A sociedade está organizada de um jeito que, mesmo tendo tempos de lazer, não sabemos aproveitá-lo para entrar em contato conosco mesmos. Inventamos milhares de formas de desperdiçar esse tempo precioso: ligamos a TV, discamos o telefone, pegamos o carro para ir a qualquer lugar ...

Não estamos acostumados a ficar conosco mesmos e agimos como se não gostássemos de nós, tentando escapar de nós mesmos.

Meditar é estar consciente do que está se passando: no nosso corpo, nos nossos sentimentos, em nossa mente e no mundo. A cada dia 40 mil crianças morrem de fome. As superpotências têm agora mais de 50 mil armas nucleares, o suficiente para destruir o planeta várias vezes. Ainda assim o nascer do sol é belo e a rosa desabrochada esta manhã em nosso jardim é um milagre. A vida é, ao mesmo tempo, terrível e maravilhosa. Praticar meditação é estar em contato com ambos os aspectos. Não pensem que precisamos ser solenes para poder meditar. Na verdade, para meditar bem temos que sorrir bastante.

Recentemente eu estava meditando com um grupo de crianças e um menino chamado Tim sorria lindamente. Disse-lhe então:
- Tim, você tem um sorriso muito bonito.
- Obrigado. Respondeu ele.
- Você não tem que me agradecer, eu é qque tenho que lhe agradecer porque com seu sorriso você torna a vida mais bela. Em lugar de dizer obrigado, você devia dizer: Não há de quê - disse eu.

É importante o sorriso de uma criança, o sorriso de um adulto,. Se na nossa vida diária formos capazes de sorrir, de ficar em paz e felizes, não apenas nós, mas todos os demais serão beneficiados com isso. Este é o mais básico tipo de trabalho pela paz. Torno-me muito feliz quando vejo Tim sorrindo. Se ele tiver consciência de que está fazendo os outros felizes, pode responder: não há de quê.

Para nos lembrar que devemos relaxar podemos, vez ou outra, arranjar nossas coisas reservando um tempo para um retiro ou um dia para alertar a mente. Um dia em que possamos andar lentamente, sorrir, tomar chá com algum amigo e desfrutar dessa oportunidade de estarmos juntos, como as pessoas mais felizes desta terra. Isso é retirar-se, é tratar-se. Durante a meditação andando, durante o trabalho na cozinha ou no jardim, durante a meditação sentada, durante o dia todo, podemos praticar o sorriso. A princípio você pode achar difícil sorrir, e nesse caso deve considerar o porquê. Sorrir significa que estamos sendo nós mesmos, que estamos tendo soberania sobre nós mesmos, que não estamos mergulhados no esquecimento. Esse tipo de sorriso pode ser observado na face dos budas e bodhisattvas.

Eu gostaria de apresentar uma pequena poesia que você pode recitar mentalmente - de tempo em tempo - enquanto estiver praticando respiração e sorriso.

Inspirando acalmo meu corpo e mente.
Expirando eu sorrio.
Residindo no momento presente
Eu sei que este é o único momento.

Inspirando acalmo meu corpo e mente. O efeito dessa frase é como beber um copo de água gelada: você sente o frescor permear seu corpo. Quando inspiro eu recito mentalmente esta linha, e realmente sinto a inspiração acalmando meu corpo, acalmando minha mente.

Expirando eu sorrio. Você conhece o efeito de um sorriso! Um único sorriso pode relaxar centenas de músculos de sua face, pode relaxar seu sistema nervoso. Um sorriso faz de você seu próprio mestre. Ao sorrir você realiza a maravilha do riso.

Residindo no momento presente. Enquanto, sentado aqui, eu não penso em outro lugar, nem no futuro nem no passado. Sentado aqui, sei onde estou. Isso é muito importante! Nossa tendência é nos transportar para o futuro em vez de nos estabelecer no agora. Costumamos dizer: quando terminar meus estudos e tiver me formado, aí sim estarei realmente vivo. Quando conseguimos isso - que não é fácil - passamos a dizer: tenho que esperar até ter um bom emprego para estar realmente vivo. E depois do emprego o carro; depois do carro a casa ... Não temos capacidade de estar vivos no momento presente. Nossa tendência é adiar a vida para o futuro, para o distante futuro, sabe-se lá quando. Agora não é o momento de estarmos vivos. Podemos mesmo não estar vivos durante toda a nossa vida. Por isso a técnica - se é que se pode falar de uma técnica - é ser no momento presente, é estar consciente do aqui e agora. O único momento de estarmos vivos é no presente momento.

Eu sei que este é o único momento. Este é o único momento que é real. Estar no aqui e agora, desfrutar o momento presente é a nossa mais importante tarefa. Acalmando, sorrindo, momento presente, único momento. Espero que vocês o tentem.

* * * *

Mesmo a vida sendo dura; mesmo sendo difícil, às vezes, é preciso sorrir ... devemos tentar. Da mesma forma, quando desejarmos bom dia a alguém, este deve ser um bom dia real. Há pouco tempo uma amiga disse-me: como posso me forçar a sorrir se estou cheia de amarguras. Não é natural. Respondi, então, que ela deveria ser capaz de sorrir para a sua amargura, porque nós somos mais do que as nossas dores. O ser humano é como um aparelho de TV com uma infinidade de canais. Se ligamos o canal de Buda, nos tornamos buda; se ligarmos o canal da dor, nos tornamos dor; se ligarmos o do sorriso, nos tornamos realmente sorriso. Não podemos deixar que só um canal nos domine. A semente de todas as coisas está em nós e temos que agarrar a situação em nossas mãos para recobrar nossa soberania.

Quando sentamos tranqüilamente, respirando e sorrindo, em plena consciência, estamos sendo nós mesmos, e temos soberania sobre nós.

Quando nos abrimos para um programa de TV, nos deixamos de ser invadidos pelo programa. Às vezes é um bom programa, mas quase sempre é ruim. Mas, porque queremos que outra coisa que não seja nós mesmos entre nós, permanecemos sentados, deixando que o mau programa de TV nos invada, nos devaste, nos destrua. Mesmo que nosso sistema nervoso se ressinta, não temos coragem de levantar e desligar o aparelho, porque, fazendo isso, temos que retornar a nós mesmos.

Meditação é o oposto. Ela nos ajuda a retornar a nós mesmos. Praticar meditação nesta sociedade é muito difícil. Tudo funciona conspiradamente para nos tirar de nós mesmos. Temos milhares de coisas, como video-tapes e música, que ajudam a nos ausentar de nós mesmos. Praticar meditação é estar consciente, sorrir e respirar. Isso se situa do lado oposto. Retornamos a nós mesmos para ver o que está se passando, pois meditar significa tornar consciência daquilo que está acontecendo. E isso é muito importante.

Caminhos para a Paz Interior - Thich Nhat Hanh - Editora Vozes

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VENHA MEDITAR CONOSCO!
O Significado de "Insight", Conhecimento e Sabedoria no Budismo

Em contraste com as religiões baseadas em improváveis artigos de fé, a base do budismo é o entendimento. Esse fato iludiu alguns observadores ocidentais que pensavam no budismo como uma doutrina puramente racional que pode ser compreendida em termos apenas intelectuais. No entanto, o entendimento no budismo significa um insight na natureza da realidade é de sempre o produto de experiência imediata.

Começando com a experiência do sofrimento como um axioma primário, válido universalmente, o budismo adota o ponto de vista de que somente aquilo que foi experimentado, e não o que se pensou, tem valor de realidade. Desta maneira, o Buda-Dharma prova que é uma religião genuína, mesmo que não solicite revelações não-provadas advindas de um domínio sobrenatural como os adeptos de uma religião normalmente têm que aceitar.

Próximo da virada desse século, alguns indologistas tentaram apresentar o budismo como um sistema filosófico-moral amplamente baseado em considerações psicológicas. Mas o budismo é mais do que uma filosofia, porque não despreza a razão nem a lógica, apenas as usa dentro da esfera apropriada. Também transcende os limites de qualquer sistema psicológico porque não está confinado à análise e à classificação de forças e fenômenos psíquicos reconhecidos, mas ensina seu uso, transformação e transcendência. O budismo também não pode ser reduzido a um sistema moral válido para o tempo todo ou como "um guia para fazer o bem", pois penetra uma esfera que transcende todo o dualismo e está estabelecida em uma ética que sai do entendimento mais profundo e da visão interior.

Assim, poderíamos dizer que o Buda-Dharma é, como experiência e como caminho para a realização prática, uma religião; como a formulação intelectual dessa experiência, uma ilosofiaf, e como resultado da análise sistemática, uma psicologia. Quem trilha esse caminho adquire uma norma de comportamento que não vem por imposição externa, mas é resultante de um processo de amadurecimento interior que podemos observar de fora, chamar de moralidade. Mas essa moralidade no Budismo não é tanto o ponto de partida - como em muitas outras religiões - quanto o resultado de uma experiência religiosa que produziu tal mudança decisiva em nosso ponto de vista que começamos a ver o mundo com novos olhos.

Por essa razão, Buda não colocou no início da Nobre Senda Óctupla uma mudança em nosso modo de vida e comportamento, mas a visão controlada de mundo em nós e com relação a nós mesmos; pois só assim conseguimos conquistar um insight sem preconceitos sobre natureza da existência e das coisas, e então, através da mudança em nosso ponto de vista, atingir uma reorientação completa para a nossa luta. Esse modo de observar as coisas é chamado em páli samma ditthi, que os indologistas sempre traduzem como "visão correta" ou "opinião".

Mas samma ditthi significa mais do que um mero acordo com algumas idéias morais ou dogmáticas preconcebidas. É uma maneira de ver que ultrapassa os pares de opostos dualisticamente concebidos, de um ponto de vista unilateral, condicionado pelo ego. Samma significa o que é perfeito, inteiro, isto é, nem dividido nem unilateral; alguma coisa de fato, completamente adequada a todos os níveis de consciência.

Aquele que desenvolveu o samma ditthi é, portanto, uma pessoa que não olha as coisas de forma parcial, mas as vê de forma equilibrada e sem preconceitos, e que em objetivos, atos e palavras é capaz de enxergar e respeitar o ponto de vista dos outros tanto como o seu próprio. Pois Buda estava bem consciente da relatividade de todas as formulações conceituais. Não estava, portanto, preocupado em divulgar uma verdade abstrata, mas em apresentar um método que desse capacidade às pessoas para chegar à visão da verdade, isto é, experimentar a realidade. Assim, ele não apresentou uma nova fé, mas tentou libertar o pensamento das pessoas dos princípios dogmáticos de forma a possibilitar uma visão da realidade livre de preconceitos.

Está bem claro que ele foi o primeiro entre os grandes líderes religiosos e pensadores da humanidade a descobrir que o que importa não é tanto os resultados finais padronizados, isto é, nosso conhecimento conceitual em forma de idéias, confissões religiosas e "verdades eternas", ou na forma de "fatos científicos" e fórmulas, mas o que leva a esse conhecimento, o método de pensamento e ação. A adoção dos resultados do pensamento das outras pessoas - ou até mesmo dos chamados "fatos simples", quando isso é feito sem senso crítico, geralmente é mais um obstáculo do que vantagem, porque coloca um bloqueio à experiência direta e por isso pode se tornar um perigo. Dessa forma, uma educação que consiste inteiramente de um acúmulo conhecimentos e padrões de pensamento já prontos leva à esterilidade espiritual. O conhecimento e a fé que perderam sua ligação com a vida se transformam em ignorância e superstição. O mais importante e o mais essencial é a capacidade para a concentração e para o pensamento criativo. Em vez de ter como objetivo a erudição, deveríamos preservar a capacidade para o aprendizado em si, e assim manter a mente aberta e receptiva.

Por outro lado, Buda jamais negou a importância do pensamento e da lógica; designou o lugar que ocupam e mostrou a seus discípulos a sua relatividade: a ligação insolúvel pela qual o pensamento e a lógica se encerram em um único sistema de interdependência e condicionalidade mútuas.

Há uma admissão tácita de que o mundo que construímos com o nosso pensamento é idêntico ao mundo de nossa experiência, na verdade ao mundo "tal como é". Mas, essa é uma das fontes principais de nossa visão errônea daquilo que chamamos de "mundo". O mundo que experimentamos na verdade inclui o mundo dos nossos pensamentos, mas esse mundo nunca pode compreender totalmente aquele que experimentamos, porque vivemos simultaneamente em várias dimensões, das quais o intelecto (ou a capacidade para o pensamento discursivo) é apenas uma delas.

Buda não procurava discípulos cegos que seguissem suas instruções mecanicamente, sem entender suas razões ou necessidades. Para ele, o valor da ação humana não está no efeito aparente, mas no motivo, na atitude dessa consciência da qual surgiu. Queria que seus discípulos o seguissem por causa de seu próprio insight na realidade acentuada pelo ensinamento, e não da simples fé na superioridade de sua sabedoria ou de sua pessoa. A única fé que esperava de seus alunos era a fé em seus próprios poderes interiores. O que o mestre suscitou, portanto não foi a ênfase em um racionalismo frio, unilateral, mas a cooperação harmoniosa de todos os poderes da psique humana, entre os quais a razão é o princípio da discriminação e do direcionamento.

O ensinamento do Buda começa com a apresentação das Quatro Nobres Verdades. Mas, devido aos limites estreitos da consciência individual, seu significado não pode ser percebido de forma completa quando se está iniciando no Caminho. Se fôssemos capazes de atingir isso, conquistaríamos a liberdade imediatamente e os passos seguintes seriam desnecessários. Mas o simples fato do sofrimento e suas causas imediatas é algo que podemos experimentar em todas as fases da vida, de forma que um simples processo de observação e análise da experiência de uma pessoa, ainda que limitado, é suficiente para convencer um ser pensante de que a tese do Buda é razoável e aceitável. Da mesma forma, se o indivíduo inicia seu caminho exigindo a "visão perfeita", isso não significa a aceitação de um dogma em particular estabelecido para todo o tempo, ou de alguma crença ou artigo de fé, mas o insight imparcial e sem preconceitos na natureza das coisas e de todas as ocorrências exatamente como são.

Samma ditthi, então, não é uma simples aceitação de algumas idéias religiosas ou morais preconcebidas. Significa uma maneira cada vez mais perfeita e nunca unilateral de ver as coisas. Portanto, não é verdade que tantos problemas do mundo vêm principalmente do fato de todos verem as coisas a partir de seu próprio ponto de observação? Não deveríamos, em vez de nos trancarmos a tudo que seja desagradável e doloroso, encarar o fato do sofrimento e descobrir suas causas, fato este que está em nós e que conseqüentemente só por nós pode ser superado?

Se prosseguirmos dessa maneira, manifesta-se dentro de nós a consciência do objetivo grandioso, o objetivo do esclarecimento e da libertação, e também do caminho que leva a sua realização. Samma ditthi é assim o experimentar, e não apenas a aceitação intelectual das Quatro Nobres Verdades proclamadas por Buda. Somente a partir de tal atitude é que a decisão perfeita que abrange toda a humanidade pode surgir, o que exige o compromisso da pessoa como um todo no pensamento, na palavra e na vontade, o que levará, através da interiorização e penetração, à perfeita iluminação.

O Budismo Vivo e o Mundo Contemporâneo - Lama Anagarika Govinda - Editora Siciliano

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CONVERSANDO COM O DALAI LAMA

As pessoas às vezes perguntam-me se o Budismo - uma velha cultura vinda do Leste - é adequado aos ocidentais ou não. A minha resposta é que a essência de todas as religiões tem a ver com os problemas humanos básicos. Enquanto todos os seres humanos, ocidentais ou orientais - brancos, negros, amarelos e vermelhos - sofrerem por doenças, por velhice, pela morte, todos são iguais nesse sentido. Enquanto estes sofrimentos humanos existirem, e uma vez que os ensinamentos essenciais tratam desses sofrimentos, não faz grande diferença se é adequado ou não.

No entanto, há uma questão que respeita à predisposição mental de cada indivíduo. Para alguns indivíduos uma certa religião traz mais benefício, enquanto noutros casos uma outra traz mais benefício. Nestas circunstâncias, a variedade de ensinamentos dentro da sociedade humana é necessária e útil, e entre os ocidentais sem dúvida que haverá pessoas que acham o budismo adequado às suas necessidades.

*****

Se, realmente, estais interessados no Budismo, então a coisa mais importante é a sua execução prática. Estudar o Budismo e depois usá-lo como arma para criticar as teorias ou ideologias dos outros, é errado. O objetivo da religião é controlarmo-nos, não criticar os outros. Em vez disso, devemos criticar-nos a nós mesmos. O que estou a fazer a respeito da minha ira? A respeito dos meus apegos, do meu ódio, do meu orgulho, da minha inveja? Estas são as coisas que devemos eliminar de nossa vida com o conhecimento dos ensinamentos budistas.

*****

O amor e a bondade são a própria base da sociedade. Se perdermos estes sentimentos, a sociedade enfrentará dificuldades tremendas; a sobrevivência da humanidade ficará em perigo.

*****

Juntamente com o desenvolvimento material, precisamos do desenvolvimento espiritual para pudermos experimentar paz interior e harmonia social. Sem paz interior, sem calma interior, é difícil ter paz exterior duradoura.

*****

Quando atravessamos um período difícil, podemos reagir perdendo a nossa determinação ou esperança ficando deprimidos. Isso é, evidentemente, muito triste, muito negativo. Mas uma situação difícil pode também abrir-nos os olhos para a situação real, a verdade. Olhemos para a história dos homens. A história dos homens é, de certo modo, a história do pensamento humano. Acontecimentos históricos, guerras, desenvolvimentos felizes, tragédias... tudo isto é o testemunho do pensamento humano, negativo e positivo. Todas as pessoas notáveis, os libertadores, os grandes pensadores, todos estes seres humanos importantes do passado foram produzidos através do pensamento positivo. Tragédias, tirania, todas as guerras terríveis, todas essas coisas negativas aconteceram por causa do pensamento negativo dos homens. Na mente humana estão potencialmente presentes tanto os pensamentos positivos como os negativos. Portanto, a única coisa que vale a pena para um ser humano é tentar desenvolver o pensamento positivo, aumentar a sua força ou poder e reduzir o pensamento negativo. Se assim fizermos, o amor humano, a indulgência e a bondade dar-nos-ão mais esperança e determinação. E a esperança e a determinação nos proporcionarão um futuro mais feliz. Porém, se deixarmos surgir a ira e o ódio, nos perderemos. Nenhum ser humano sensato quer perder-se.

Isto não é um ensinamento espiritual nem um ultimato moral. É um fato que pode ser verificado pela experiência diária. Assim, para desenvolvermos a determinação necessitamos de esperança. E para desenvolvermos a esperança precisamos de compaixão e amor. O amor e a compaixão são a base da esperança e da determinação. Por isso todos os ensinamentos espirituais do mundo realçam a importância do amor e da compaixão.

Acontece porém, que a felicidade humana, a satisfação humana devem, em última análise, vir de dentro de nós. Está errado esperar que uma satisfação definitiva venha do dinheiro ou de um computador.

O Dalai Lama

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