Flor do Lótus
Nº 19 - Outubro de 1998 - ano II

Escultura

"Na postura zazen, nosso corpo e nossa mente têm o grande poder de aceitar as coisas como elas são, ou sejam agradáveis ou desagradáveis."

Consta em nossas escrituras (Samyuktagama Sutra, v.33) que existem quatro tipos de cavalos: os excelentes, os bons, os fracos e os maus. O melhor cavalo corre tanto devagar quanto velozmente, para a direita e para a esquerda, atendendo à vontade do cavaleiro, antes mesmo de enxergar a sombra do chicote; o segundo corre tão bem quanto o primeiro, antes mesmo que o chicote atinja sua pele; o terceiro corre quando sente a dor do chicote em seu corpo; o quarto só corre quando a dor já penetrou até a medula de seus ossos. Imagine como é difícil, para este último, aprender a correr!

Ao escutar esta história, quase todos queremos ser o melhor cavalo. Se for impossível, queremos pelo menos ser o segundo. Acho que, em geral, esse é o entendimento que temos da história e do Zen. Você poderá pensar que, sentando em zazen, descobrirá se é um dos melhores ou um dos piores. Isso, porém, é um entendimento errôneo do Zen. Se você pensa que o objetivo da prática Zen é treiná-lo para se tornar um dos melhores cavalos, terá um grande problema. Não é este o entendimento correto. Se praticar Zen de maneira certa, não importará se você for o melhor ou o pior cavalo. Se você considerar a compaixão de Buda, como acha que ele se sentiria em relação aos quatro tipos de cavalo? Ele teria mais simpatia pelo pior do que pelo melhor.

Quando você estiver determinado a praticar zazen com a mente grande de Buda, perceberá que o pior cavalo é o mais valioso. É nas próprias imperfeições que você encontra as bases para sua mente resoluta que busca o caminho. Aqueles que se sentam com perfeição física, geralmente levam mais tempo para alcançar o caminho verdadeiro do Zen, o sentimento do Zen, o cerne do Zen. Mas aqueles que têm grandes dificuldades encontrarão nele mais sentido. Por isso, penso às vezes que o melhor cavalo pode ser o pior, e o pior, o melhor.

Se você estudar caligrafia, poderá verificar que aqueles que não são muito talentosos, por via de regra, acabam sendo os melhores calígrafos. Os que são muito hábeis com as mãos geralmente deparam com grandes dificuldades depois de terem atingidos certo estágio. Isto é verdade para as artes e para o Zen. E na vida também. Portanto, quando falamos de Zen não podemos afirmar "ele é bom" ou "ele é mau", no sentido comum dessas palavras. A postura assumida no zazen não é a mesma para cada um de nós. Para alguns, pode ser impossível cruzar as pernas em lótus completo. Mas, mesmo sem conseguir adotar a postura de forma correta, quando você desperta sua verdadeira mente buscadora do caminho, então pode praticar o Zen no seu sentido genuíno. De fato, despertar a verdadeira mente buscadora do caminho é mais fácil para aqueles que têm dificuldade em sentar-se do que para os que podem sentar-se facilmente.

Quando refletimos sobre o que estamos fazendo na vida diária, sempre nos envergonhamos de nós mesmos. Um dos meus estudantes uma vez me escreveu dizendo: "Você me mandou um calendário e estou tentando seguir as boas máximas que aparecem em cada página. Mas o ano começou há pouco e eu já falhei". O mestre Dogen disse: "Shoshasku jushaku". Shaku geralmente significa "erro" ou "engano". Shoshaku jushaku significa "suceder um erro ao outro", ou seja, um engano contínuo. Segundo Dogen, um engano contínuo também pode ser Zen. A vida de um mestre Zen, poder-se-ia dizer, é feita de muitos anos de shoshaku jushaku. Isso quer dizer muitos anos de esforço decidido.

Nós dizemos: "Um bom pai não é um bom pai". Você entende? Aquele que pensa que é um bom pai não o é; aquele que se acha um bom marido não o é. Aquele que pensa ser um dos piores maridos pode ser um bom marido, se estiver sempre tentando ser um bom marido com um esforço sincero. Se você está achando impossível sentar-se por causa da alguma dor ou de alguma dificuldade física, ainda assim deveria continuar, usando uma almofada grossa ou uma cadeira. Mesmo que você seja o pior cavalo, você chegará ao cerne do Zen.

Suponha que seu filho esteja sofrendo de uma doença incurável. Você não sabe o que fazer, mas mesmo assim não fica deitado na cama. Normalmente, a cama seria o lugar mais confortável para você ficar. Mas agora, por causa da sua aflição mental, você não consegue descansar. Você pode andar para baixo e para cima, entrar e sair, que não adianta. Na verdade, o melhor meio de atenuar seu sofrimento mental é sentar-se em zazen, mesmo estando em tamanha aflição e em postura incorreta. Se você não passou pela experiência de sentar-se um uma situação difícil como essa, você não é um praticante Zen. Nenhuma outra atividade irá apaziguar seu sofrimento. Qualquer outra atitude resultará inquietante, e você não terá poder para aceitar as suas dificuldades; mas na postura zazen, que você adquiriu através de longa e dura prática, sua mente e corpo têm o poder de aceitar as coisas como elas são, sejam elas agradáveis ou desagradáveis.

Quando você se sente contrariado, o melhor que tem a fazer é sentar-se. Não há outro jeito de você aceitar seu problema e trabalhar sobre ele. Se você é o melhor ou pior cavalo, se sua postura é boa ou má, não vem ao caso. Todos podem pratica zazen e, dessa forma, trabalhar seus problemas e aceitá-los.

Quando você se senta no meio de seu problema o que é mais real para você? O seu problema ou você mesmo? A consciência de que você existe aqui e agora é o fato supremo. Isso é o que você vai perceber com a prática do zazen. Na continuidade de sua prática, sob a sucessão de situações agradáveis ou desagradáveis, você realizará o cerne do Zen e adquirirá sua força verdadeira.

Nota: Zazen = meditação Zen-budista.

Mente Zen, Mente de Principiante - Shunryu Suzuki - Editora Palas Athena

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EM BUSCA DO EU

No Samsara encontramos todos os problemas: o ciclo repetido de morte e renascimento tem origem na ignorância que se apega às coisas como se estas tivessem vida própria. Nossa situação nesse ciclo é parecida à de uma pessoa que fica presa dentro de um grande edifício com muitas salas e portas mas com uma única saída. Ela perambula sem esperança de uma parte do edifício a outra, procurando a porta de saída. A porta que dá para a saída do samsara é a sabedoria que compreende o vazio da auto-existência. Essa sabedoria é o remédio direto para a ignorância, que tanto é causa como conseqüência do apego ao EU, e que acredita que o EU existe de modo inerente e independente. Em outras palavras, o EU aparenta ser algo que não é: uma identidade concreta, imutável, que existe por si mesma; e a nossa mente ignorante apega-se a essa visão errada. Então, nos devotamos a esse EU fantasmagórico e o estimamos como se fosse um verdadeiro tesouro. A sabedoria reconhece que esse EU autônomo não existe e, assim, por meio da sabedoria, destrói-se a ignorância. As escrituras budistas afirmam que compreender a visão correta do vazio, mesmo por um só momento, abala as bases do Samsara, assim como um terremoto abala as bases de um edifício.

Cada um de nós tem a convicção instintiva de que existe um EU concreto, independente. Quando acordamos de manhã, pensamos: "Preciso fazer café", ou "Tenho de ir trabalhar". Assim surge a poderosa intuição de um EU que existe por si mesmo e nos apegamos a essa visão errada. Se alguém disser: "Você é estúpido", ou "Você é inteligente", esse EU surge das profundezas da nossa mente, ardendo de ódio ou inchado de orgulho. Essa forte sensação do EU nos acompanha desde que nascemos - não a aprendemos com nossos pais ou professores. Ele aparece com maior nitidez em épocas de forte emoção: quando somos maltratados, injuriados, ou quando estamos sob a influência do apego do orgulho. Se passamos por um terremoto, ou se o nosso carro ou avião quase se chocaram, um EU atemorizado nos invade, fazendo-nos esquecer de tudo o mais. Uma forte sensação de EU também surge sempre que ouvimos chamar o nosso nome. Mas esse EU aparentemente sólido e autônomo não é autêntico. Ele não existe.

Isso não significa que nós não existimos, porque há um EU válido, convencionalmente existente. Este é o EU que experimenta felicidade e sofrimento, que trabalha, estuda, come, dorme, medita e se torna iluminado. Esse EU existe, mas o outro é mera alucinação. Contudo, em nossa ignorância, confundimos o falso EU com o EU convencional e somos incapazes de distingui-los.

Isso nos leva a um problema que surge com freqüência na meditação sobre o vazio. Algumas pessoas que se dedicam à meditação pensam: "Meu corpo não é o EU, a minha mente não é o EU, por isso EU não existo", ou "Como não consigo encontrar o meu EU, devo estar perto da compreensão do vazio". A meditação que leva a semelhantes conclusões é incorreta, porque despreza o EU convencional. O meditador falha em reconhecer e identificar devidamente o falso EU, que deve ser repudiado; em vez disso, repudia o EU convencional ou relativo, que existe. Se esse erro não for corrigido, poderá desenvolver-se a visão niilista que diz que nada existe, podendo isso levar mais tarde à confusão e ao sofrimento, em vez de à libertação.

Qual é a diferença, então, entre o EU falso e o EU convencional? O EU falso é meramente uma idéia errada que temos do EU: que se trata de algo concreto e independente, que existe por si mesmo. O EU que existe é dependente: surge dependente do corpo e da mente, que são componentes do ser. Essa combinação de corpo e mente é a base à qual o pensamento conceitual atribui um nome. No caso de uma vela, a cera e o pavio são as bases às quais se atribui o nome "vela". Por isso, uma vela depende dos seus componentes e do seu nome. Não existe vela sem eles. Do mesmo modo, não existe EU independente do corpo, da mente e do nome.

Sempre que surge a sensação do EU, como em "Estou com fome", a ignorância do auto-apego acredita que esse EU é concreto e que existe de modo inerente. Mas se o analisarmos, descobriremos que ele é feito do nosso corpo - especificamente, do nosso estômago vazio - e da nossa mente que se identifica com a sensação de vazio. Não existe um EU esfomeado inerente separado desses elementos interdependentes.

Se o EU fosse independente, então seria capaz de funcionar de forma autônoma. Por exemplo, o meu EU poderia ficar aqui sentado, lendo, enquanto o meu corpo iria à cidade. O meu EU poderia ser feliz, mesmo se a minha mente estivesse deprimida. Mas isso é impossível; assim, o EU não pode ser independente. Quando o meu corpo se senta, o meu EU faz a mesma coisa. Quando o meu corpo vai à cidade, o meu EU também vai. Quando estou deprimido, o meu Eu fica deprimido de acordo com a atividade física ou o estado mental, dizemos: "Estou trabalhando", "Estou comendo", "Estou pensando", "Estou feliz", e assim por diante. O EU depende do que o corpo e a mente fazem; e somente pode ser pressuposto nessa base. Nada mais existe além disso. Não há outros motivos para essa pressuposição.

A dependência do EU deve estar evidente, a partir desses exemplos simples. Compreender essa dependência é o fator principal para se compreender o vazio ou a existência não-independente do EU. Todas as coisas são dependentes. Por exemplo. O termo "corpo" é aplicado aos componentes do corpo: pele, sangue, ossos, órgãos e assim por diante. Essas partes são dependentes de outras ainda menores: células, átomos e partículas subatômicas.

A mente também é dependente. Nós a imaginamos como sendo algo real e com existência própria, e reagimos quando ouvimos dizer: "A sua mente é boa", ou "Você está terrivelmente confuso". A mente é um fenômeno sem forma, que distingue objetos e é clara por natureza. Baseando-nos nessa função, nós a denominamos "mente". Não existe mente que funcione à parte desses fatores. A mente depende de seus componentes: pensamentos, percepções e sentimentos momentâneos. Assim como o EU, o corpo e a mente dependem dos seus componentes e títulos, também todos os fenômenos são dependentes.

Pode-se compreender melhor esses pontos através de uma meditação simples, destinada a revelar como o EU adquire existência aparente. Comecem com uma meditação respiratória, para relaxar e acalmar a mente. Depois, com a atenção de um espião, devagar e cuidadosamente, tomem consciência do EU. Sobre quem ou o que estão pensando, sentindo e meditando? Como o EU parece nascer? Que tal ele lhes parece? O EU de vocês será uma criação de suas mentes ou será algo que exista de modo concreto e independente?

Assim que tenham identificado o EU, tentem localizá-lo. Onde está ele? Estará na sua cabeça... nos seus olhos... no seu coração... nas suas mãos... no seu estômago... nos seus pés? Considerem cuidadosamente cada parte do corpo, incluindo os órgãos, as veias e os nervos. Conseguiram encontrá-lo? Se não conseguirem, imaginem que ele talvez seja muito pequeno e sutil; portanto, considerem as células, os átomos e as suas subpartículas.

Depois de considerarem o corpo inteiro, perguntem-se novamente como o EU manifesta a sua aparente existência. Ainda parece ser real e concreto? O EU será o corpo, ou não?

Talvez vocês pensem que as suas mentes sejam o EU. A mente consiste em pensamentos que mudam constantemente, alternando-se com rapidez. Qual dos pensamentos é o EU? Um pensamento de amor... um pensamento irritado... um pensamento tolo? Descobriram o EU em suas mentes?

Se não encontraram o EU nem no corpo nem na mente, haverá outro lugar em que possa ser procurado? Será que o EU existiria em algum outro lugar ou de alguma outra maneira? Examinem todas as possibilidades.

Mais uma vez, examinem o modo como sentem o EU. Houve alguma mudança? Ainda acreditam que seja real e que exista por si mesmo? Se ainda sentirem a existência própria desse EU, pensem: "Esse EU é falso; ele não existe. Não existe um EU independente do corpo e da mente."

Depois, desintegrem mentalmente os seus corpos. Imaginem todos os átomos dos seus corpos separando-se e flutuando no ar. Bilhões e bilhões de minúsculas partículas flutuando no espaço. Imaginem de fato que conseguem ver isso. Desintegrem também as suas mentes e deixem cada partícula flutuar. Agora, onde estão vocês? O EU auto-existente ainda está aí, ou conseguem compreender como ele é dependente, um mero atributo do corpo e da mente? Às vezes, a pessoa que medita passa pela experiência de perder completamente o seu EU. Ela não consegue encontrar o EU e sente-se como se o seu corpo tivesse desaparecido. Não há nada em que se agarrar. Para seres inteligentes, essa experiência representa uma grande alegria, como a descoberta de um tesouro maravilhoso. Contudo, os que têm pouca compreensão ficam aterrorizados ou se sentem como se lhes roubassem um tesouro. Se isso acontecer, não há necessidade de ter medo de que o EU convencional tenha desaparecido - trata-se apenas de uma sensação que surge de um vislumbre da irrealidade do falso EU. Com a prática, essa meditação conduzirá a uma dissolução gradual do nosso conceito rígido do EU e de todos os fenômenos. Não seremos mais tão inflexivelmente influenciados pela ignorância. Nossas percepções mudarão e tudo aparecerá sob uma luz nova e revigorante.

Ensinamentos do Budismo Tibetano - Lama Thubten Zopa Rinpoche - Editora Pensamento

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BENEFÍCIOS DA MEDIATÇÃO

É de esperar-se que você aufira certos benefícios da meditação. Os benefícios iniciais são coisas práticas e prosaicas, mas as fases seguintes são profundamente transcendentes. Variam de simples a sublimes. Em si, a prática poderá ensinar-lhe a Verdade. E a sua própria experiência é tudo quanto importa. O que chamamos impedimentos ou máculas são bem mais do que meros hábitos mentais desagradáveis. São manifestações primárias do próprio processo do ego. Em si, o sentido do ego é essencialmente de separação - a percepção de uma distância entre o que chamamos EU e o que chamamos OUTRO. Esta percepção só persiste quando constantemente exercitada: os impedimentos constituem esse exercício.

A cobiça e o desejo são intentos de "pegar um pedaço disso para mim"; o ódio e a aversão, por sua vez, são tentativas de aumentar a distância entre "eu e isso". Todas as máculas dependem da percepção de uma barreira entre o ego e o outro e todas elas fomentam essa percepção, cada vez que são exercitadas. A conscientização percebe as coisas profundamente, com grande clareza. Dirige nossa atenção à fonte das máculas e põe a nu o seu mecanismo. Enxerga seus frutos e os efeitos que têm sobre nós. Não pode ser enganada. Assim que você puder ver claramente o que realmente é a cobiça, e seu efeito sobre você e os demais, o natural é que não mais se deixe dominar por ela. Quando uma criança queima a mão num fogão, não é preciso dizer-lhe que tire a mão; ela o faz naturalmente sem pensar nem decidir conscientemente. No sistema nervoso existe uma ação reflexa que tem precisamente essa finalidade e age mais rápido que o pensamento. Quando a criança se dá conta da queimadura e chora, já tirou muito antes a mão da fonte da dor. A conscientização atua de forma parecida; sem palavras, mas é espontânea e perfeitamente eficiente. A clara conscientização inibe o advento das máculas; a conscientização continuada as extingue. Assim, à medida que se consolida a genuína conscientização, as muralhas do ego ruem, o apego míngua, diminuem a rigidez e a necessidade de ficar na defensiva; você se torna mais flexível, mais aberto no aceitar. Aprende a partilhar sua bondade amorosa.

Tradicionalmente, os budistas relutam em falar da natureza sublime dos seres humanos. Mas aqueles que se dispõem a falar dela, em geral descrevem como pura a nossa essência suprema, a nossa natureza de Buda, inerentemente boa e santa. A única razão de diferirem os humanos é que sua experiência dessa essência suprema foi bloqueada; detida do mesmo modo que uma comporta retém a água. Os impedimentos são os tijolos da comporta. A conscientização dissolve os tijolos, perfura a comporta e então surgem, como uma torrente, a compaixão e a solidariedade. Ao fomentar sua conscientização meditativa, você transforma por completo sua experiência da vida. A sua experiência de estar vivo, a própria sensação de estar consciente, deixam de ser o pano de fundo despercebido de suas preocupações. Tudo vira algo que se percebe totalmente. Cada momento fugidio se destaca; já não se confundem num borrão indefinido. Nada é ignorado nem evitado, nenhuma experiência se classifica como "comum". Você pára de separar suas experiências em escaninhos mentais. As descrições e interpretações são postas de lado e cada fração de tempo pode falar por si mesma. E você escuta o que dizem, como se o ouvisse pela primeira vez. Ao ganhar verdadeiro poder, sua meditação também se tornará constante. Observará continuamente, com atenção, todo fenômeno mental e a respiração. Sente-se cada vez mais estável, mais e mais fixado na forte e simples experiência de existir momento a momento.

Logo que sua mente se livra do pensamento, fica claramente desperta e em repouso, tem percepção completamente pura. Com palavras, não é possível descrever perfeitamente essa percepção. As palavras não bastam. Ela só pode ser sentida. A respiração deixa de ser mero alento: já não se limita ao conceito familiar e estático que conhecia. Não mais a percebe como mera fieira de inspirações e exaltações; deixa de ser uma experiência monótona, insignificante. Respirar passa a ser um processo vivo, dinâmico cambiente, fascinante. Já não é algo que transcorre no tempo; é percebida como o momento presente, em si. O tempo então é visto como um conceito, não mais como uma realidade sentida. Esta é uma percepção rudimentar, simplificada despida de todas as minúcias estranhas. Funda-se na ágil correnteza do presente e é marcada por pronunciado senso de realidade. Você saberá absolutamente o que é a realidade, muito mais real do que tudo quanto sentiu antes. Adquirida essa percepção de certeza absoluta, você galga novo e elevado ponto de vista, do qual poderá contemplar sua inteira experiência. Depois dessa percepção, você enxergará claramente os momentos em que só participa de fenômenos mínimos e daqueles em que divisa suas atitudes mentais como fenômenos perturbadores.

Verá então quando distorce a realidade com comentários mentais, imagens gastas e opiniões pessoais. Saberá o que faz enquanto o estiver fazendo. Sentirá mais claro as maneiras pelas quais lhe foge a realidade autêntica e evolui para a perspectiva objetiva que nem tira nem junta ao que é. Passa a ser pessoa de grande percepção. Do seu posto de observação, enxerga tudo com a maior clareza. As inúmeras atividades da mente e do corpo aparecem com seus pormenores bem delineados. Conscientizado, você observa como a respiração entra e sai sem parar; nota a rápida sucessão de pensamentos e movimentos do corpo e sente o ritmo marcado pelo passar do tempo. E, no meio de todo esse afã ininterrupto, não há olheiros, só olhadas.

Nesse estado de percepção, não ficam na mesma dois instantes seguidos. Tudo é visto em constante transformação. Todas as coisas nascem, tudo envelhece, tudo morre. Não há exceções. Você abre os olhos para as incessantes alterações em sua vida. Olha em torno e vê tudo, absolutamente tudo, em estado de fluxo. Tudo levanta e cai, se intensifica e murcha, ganha existência e some. Você enxerga o universo como um imenso caudal de experiência. Suas mais caras posses se vão e o mesmo acontece com sua vida. Mas essa impermanência não é razão de choro. Você se detém transfixado, espectador dessa atividade incessante e sua reação é uma alegria sem par. Tudo se move, dança e enche de vida. À medida que nota essas transformações e vê como se ajustam sem problema, você fica cônscio da íntima correção de todos os fenômenos mentais, sensórios e afetivos. Vê que um pensamento leva a outro; vê a destruição gerando o brotar das reações e das sensações e produzindo outros pensamentos. Ações, pensamentos, sensações, desejos - você enxerga tudo intimamente entrelaçado, formando a delicada tessitura de causas e efeitos. Repara como surgem e somem agradáveis experiências e vê como não dura nenhuma; nota como a dor chega sem convite e assiste ao seu ansioso esforço de livrar-se dela. E vê como falha e sucumbe. Tudo ocorre reiteradamente, enquanto você observa calado e vê como tudo funciona.

Desse laboratório vivo surge uma conclusão íntima inatacável. Você dá-se conta de que sua vida é marcada pelo desapontamento e pela frustração, cuja fonte enxerga claramente. Essas reações brotam da sua incapacidade de obter o que deseja, do seu medo de perder o que já conquistou e do seu hábito de não satisfazer-se com o que tem. Já não são conceitos teóricos: você os viu pessoalmente e sabe que são reais.

Contempla seu próprio medo, sua insegurança básica em face da vida e da morte. A tensão profunda que penetra até a raiz do pensamento e faz de toda sua vida uma luta. Vê-se tateando incessantemente em busca de algo, de algo a que agarrar-se em meio a toda essa areia movediça e compreende que não há nada a que agarrar-se, nada que não se modifique. Ver a dor da perda e da mágoa, forçado a ajustar-se a penosas ocorrências, dia após dia, em sua própria existência. Testemunha as tensões e os conflitos inerentes no processo da vida diária e vê como, em sua maioria, essas preocupações são superficiais. Assiste ao avanço da dor, da doença, da velhice e da morte. Pasma ao ver que todas essas coisas horrendas não são temíveis. São realidade, pura e simples.

Por meio do estudo intensivo dos aspectos negativos da vida, você trava íntimo conhecimento do conceito de DUKKHA, a natureza sofredora da existência. Começa a perceber DUKKHA em todos os níveis da vida humana, do óbvio até o mais sutil. Enxerga como o sofrimento segue inevitavelmente ao apego e como, assim que você se apega a algo, a dor também é inevitável. Ao tomar conhecimento da inteira dinâmica do desejo, você se sensibiliza. Vê onde surge, quando aparece e como o afeta. Contempla-o em ação repetida, manifestando-se por todos os canais sensórios, ganhando controle da mente e fazendo da consciência sua escrava.

No meio de qualquer experiência agradável vê como irrompem o desejo e o apego. No meio de qualquer experiência desagradável vê como se instala poderosa resistência. Você não bloqueia esses fenômenos: apenas os observa e vê que são a matéria do pensamento humano. Procura o chamado "eu" e o que encontra é um corpo físico e como seu ser esse saco de pele e ossos. Escava mais; topa com todos os tipos de fenômenos mentais como emoções, opiniões e modalidades de pensamentos e como neles identifica o seu ego. Observa como exerce a posse, a proteção e a defesa dessas coisas lamentáveis e vê como é tudo loucura. Remexe furiosamente em todas essas coisas várias, à cata de si próprio - matéria física, sensações orgânicas, sentimentos e emoções - e tudo remoinha à sua volta enquanto você esquadrinha cada toca e buraco na busca incessante do "eu".

Mas não acha nada. O que pode achar são inúmeros processos impessoais, engendrados e condicionados pelos processos anteriores; é tudo processo. Acha pensamentos mas não o pensador; emoções e desejos mas ninguém que os gere.

A essa altura, modifica-se por completo sua visão do ego. Começa a ver-se como se fosse uma foto no jornal. A olho nu, parece uma imagem definida. Aos olhos penetrantes da conscientização, os sensos de EU, ego e ser perdem a solidez e se dissolvem. Aí surge o ponto de meditação íntima em que essas três características: impermanência, insatisfação e ausência do "eu" - irrompem em tropel, com uma força que incinera o conceito. Sente fundo a impermanência da vida, a natureza sofredora da vida humana e a verdade do não eu. Sente-o tão na carne que de inopino acorda para a futilidade total do desejo, do apego e da resistência. Na clareza e na pureza desse momento fabuloso, nossa consciência se transforma. Evapora-se o "eu" como entidade. O que resta é uma infinidade de fenômenos pessoais inter-relacionados, condicionados e em incessante transformação. O desejo se extingue e com isso se alija pesado fardo. O que resta é somente uma correnteza mansa, sem sinais de resistência ou de tensão. Só remanesce a paz e se torna realidade o abençoado e não-criado Nibbana.

A Meditação ao Alcance de Todos - Ven. H. Gunarátana - Editora IBRASA

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