Flor do Lótus
Nº 12 - Março de 1998 - Ano 2


DIMENSÕES DA ESPIRITUALIDADE
Tenzin Gyatso, o XIV Dalai Lama

Dalai Lama Seres humanos não são produzidos por máquinas. Somos mais do que apenas matéria; temos sentimentos e experiência. Por essa razão, somente conforto material não é suficiente. Necessitamos algo mais profundo, o que usualmente chamo de afeição humana, ou compaixão. Com afeição humana, ou compaixão, todas as vantagens materiais que temos à nossa disposição podem ser muito construtivas e produzir bons resultados. Contudo, sem afeição humana, somente vantagens materiais não nos proporcionarão satisfação, nem produzirão qualquer medida de paz mental ou felicidade. De fato, vantagens materiais sem afeição humana podem até mesmo criar problemas adicionais. Portanto, afeição humana, ou compaixão, é a chave para a felicidade humana.

O primeiro nível da espiritualidade, para os seres humanos de todos os lugares, é a fé em uma das muitas religiões do mundo. Penso que há um importante papel para cada uma das principais religiões mundiais, mas para que elas façam uma contribuição efetiva em benefício da humanidade do lado religioso, há dois fatores importantes a serem considerados. O primeiro é que praticantes individuais das várias religiões - isto é, nós mesmos - devem praticar sinceramente. Ensinamentos religiosos devem ser uma parte integral de nossas vidas; eles não deveriam estar separados de nossas vidas. Algumas vezes, vamos a uma igreja ou um templo e rezamos uma prece, ou geramos algum tipo de sentimento espiritual e, quando saímos, nada daquele sentimento religioso permanece. Essa não é a forma adequada de praticar. A mensagem religiosa deve estar conosco onde quer que estejamos. Os ensinamentos da nossa religião devem estar presentes em nossas vidas de forma que, quando realmente precisamos ou pedimos bênçãos ou força interior, mesmo nessas horas esses ensinamentos estarão lá; eles estarão lá quando passarmos por dificuldades porque estão constantemente presentes. Somente quando a religião torna-se uma parte integral de nossas vidas é que ela pode ser realmente efetiva.

Também precisamos experienciar mais profundamente os significados e valores espirituais de nossa própria tradição religiosa - precisamos conhecer esses ensinamentos não só a nível intelectual, mas também, de forma cada vez mais profunda, através de nossa própria experiência. Algumas vezes entendemos diferentes idéias religiosas e num nível muito superficial ou intelectual. Sem um sentimento profundo, a eficácia da religião torna-se limitada. Portanto, devemos praticar sinceramente, e a religião deve tornar-se parte de nossas vidas.

O segundo fator refere-se mais à interação entre as várias religiões mundiais. Hoje, por causa da crescente mudança tecnológica e a natureza da economia mundial, estamos muito mais dependentes uns dos outros do que antes. Diferentes países e continentes tornaram-se mais intimamente associados uns com os outros. Na realidade, a sobrevivência de uma região do mundo depende da de outras. Portanto, o mundo tornou-se mais próximo, muito mais interdependente. Como conseqüência, há mais interação humana. Sob tais circunstâncias, a idéia de pluralismo entre as religiões mundiais é muito importante. Em tempos passados, quando as comunidades viviam separadas uma das outras e as religiões surgiam num relativo isolamento, a idéia que havia só uma religião era muito útil. Mas agora a situação mudou, e as circunstâncias são inteiramente diferentes. Agora é crucial aceitar o fato de que existem diferentes religiões, e a fim de desenvolver o verdadeiro respeito mútuo entre elas é essencial aproximar o contato entre as várias religiões. Esse é o segundo fator que possibilitará as religiões mundiais serem mais eficazes em beneficiar a humanidade.

Quando estava no Tibete, não tinha contato com pessoas de diferentes crenças religiosas. Assim, minha atitude em relação às outras religiões não era muito positiva. Mas, quando tive a oportunidade de encontrar pessoas de diferentes crenças e aprender com essa experiência e o contato pessoal, minha atitude para com as outras religiões mudou. Compreendi como são úteis para a humanidade e o potencial contributivo de cada uma para um mundo melhor. Há séculos, as religiões vêm dando contribuições maravilhosas para o aprimoramento dos seres humanos, e ainda hoje há um grande número de seguidores do cristianismo, islamismo, judaísmo, budismo, hinduísmo e assim por diante. Milhões de pessoas estão se beneficiando de todas essas religiões.

Para dar um exemplo do valor do encontro de diferentes crenças, meus encontros com o falecido Thomas Merton fizeram-me perceber que bonita, maravilhosa pessoa ele era. Noutra ocasião, encontrei-me com um monge católico que viveu vários anos como eremita numa montanha atrás do mosteiro de Montserrat, na Espanha. Quando visitei o mosteiro, ele desceu de sua ermida especialmente para falar comigo. Ficamos cara a cara e perguntei, "Nesses poucos anos, o que você estava fazendo naquela montanha?" Ele olhou-me e respondeu, "Meditação na compaixão, no amor". Quando ele disse estas poucas palavras, entendi a mensagem através dos seus olhos. Realmente desenvolvi verdadeira admiração por ele e por outros como ele. Tais experiências ajudaram a confirmar na minha mente que todas as religiões do mundo têm o potencial para produzir boas pessoas, a despeito das suas diferenças de filosofia e doutrina. Cada tradição religiosa tem sua própria maravilhosa mensagem a transmitir.

Do ponto de vista do budismo, por exemplo, o conceito de um criador é ilógico. É difícil para os budistas entenderem esse conceito por causa do modo que eles analisam a causalidade. Contudo, este não é o lugar para discutir questões losóficas. O ponto importante aqui é que para as pessoas que seguem esses ensinamentos nos quais a crença básica está num criador, esta abordagem é eficaz. De acordo com essas tradições, o ser humano individual é criado por Deus. Além disso, como recentemente aprendi com um dos meus amigos cristãos, eles não aceitam a teoria do renascimento, e assim, não aceitam vidas passadas ou futuras. Acreditam somente nesta vida. Contudo, eles mantêm que esta vida é criada por Deus, pelo criador, e esta idéia desenvolve neles um sentimento de intimidade com Deus. Seu ensinamento mais importante é que, como estamos aqui por desejo de Deus, nosso futuro depende do criador, e porque o criador é considerado supremo e sagrado, devemos amar a Deus, o Criador.

O que segue-se a isso é o ensinamento que deveríamos amar nossos semelhantes - esta é a mensagem principal aqui. O raciocínio é que se amamos a Deus, devemos amar nossos semelhantes porque eles, como nós, foram criados por Deus. O futuro deles, como o nosso, depende do criador, portanto, sua situação é igual a nossa. Logo, a crença das pessoas que dizem "Ame a Deus" mas não mostram amor verdadeiro para seus semelhantes é questionável. A pessoa que acredita em Deus e no amor a Deus deve demonstrar a sinceridade de seu amor em Deus através do amor dirigido aos semelhantes. Esta abordagem é muito poderosa, não é?

Assim, se examinarmos cada religião por vários ângulos e da mesma maneira - não apenas da nossa posição filosófica mas de vários pontos de vista - não pode haver dúvida de que todas as grandes religiões têm o potencial para melhorar os seres humanos. Isto é óbvio. Através de um contato próximo com pessoas de outras fés, é possível desenvolver uma atitude aberta e de respeito mútuo em relação a outras religiões. Proximidade com diferentes religiões ajuda-me a aprender novas idéias, novas práticas, e novos métodos ou técnicas que posso incorporar à minha própria prática. Da mesma forma, alguns de meus irmãos e irmãs cristãos adotaram certos métodos budistas, como a prática da mente unifocada e as técnicas de desenvolvimento da tolerância, da compaixão e do amor. O benefício é enorme quando praticantes de diferentes religiões se unem para esse tipo de intercâmbio. Além de desenvolver a harmonia entre si, ganham outras benesses.

Políticos e líderes de nações falam com freqüência em quot;coexistência" e "ação conjunta". Por que não nós, religiosos, também? Acho que é chegada a hora. Em Assis, em 1987, por exemplo, líderes e representantes de várias religiões mundiais se reuniram e, conforme suas próprias crenças, rezaram. Isto já está acontecendo e é, creio eu muito positivo. No entanto, ainda precisamos fazer mais esforços para aumentar a harmonia e a proximidade entre as religiões mundiais, pois sem um tal esforço continuaremos a vivenciar todos esses problemas que dividem a humanidade. Se a religião fosse o único remédio para reduzir o conflito humano, mas se este mesmo remédio se tornasse outra forma de conflito, seria um desastre. Hoje, como no passado, ocorrem conflitos em nome da religião por causa de diferenças religiosas, e acho isso muito triste. Mas, como disse antes, se pensarmos aberta e profundamente compreenderemos que a situação atual é inteiramente diferente do passado. Não estamos mais isolados, mas somos interdependentes. Portanto, é muito importante entender que um relacionamento íntimo entre as várias religiões é essencial, para que diferentes grupos religiosos possam trabalhar juntos e realizar um esforço comum para o benefício da humanidade. Assim, sinceridade e fé na prática religiosa por um lado, e tolerância e cooperação religiosa por outro, formam este primeiro nível do valor da prática espiritual para a humanidade.

Transcrito da revista Bodisatva nº 10 do CEB Bodisatva - Caixa Postal 11 019 - Porto Alegre
CEP 90870-970 - Rio Grande do Sul - RS

Divisor

OS PAIS

Thich Nhat Hanh

Quando penso em minha mãe, não consigo separar sua imagem da minha idéia de amor, porque o amor era o ingrediente natural nos tons doces e suaves da sua voz. Mesmo adulto, vivendo longe dela, sua perda me deixou tão abandonado quanto um pequeno órfão.

Sei que muitos amigos meus no Ocidente não têm os mesmos sentimentos com relação aos seus pais. Já ouvi muitas histórias sobre pais que magoaram seriamente os filhos, plantando neles muitas sementes de sofrimento. Creio, porém, que eles não pretendiam plantar essas sementes. Não era sua intenção fazer com que os filhos sofressem. Talvez eles tenham recebido o mesmo tipo de semente dos próprios pais. Há uma continuidade na transmissão de sementes, e seu pai e mãe podem talvez ter recebido essas sementes dos avôs e avós. A maioria de nós é vítima de uma forma de viver sem plena consciência, e a prática da meditação, da vida em consciência plena, pode impedir esse tipo de sofrimento e encerrar a transmissão de tanta dor para nossos filhos e netos. Podemos interromper o ciclo ao não permitir que esse tipo de semente seja transmitido aos nossos filhos, aos nossos amigos ou a quem quer que seja.

Um menino de quatorze anos que pratica meditação me contou a seguinte história. Quando tinha onze anos, tinha muita raiva do pai. Sempre que caía e se machucava, o pai gritava com ele. O menino jurou a si mesmo que quando crescesse, seria diferente. No ano passado, sua irmãzinha estava brincando com outras crianças, caiu de um balanço e arranhou o joelho. Havia sangue, e o menino ficou muito zangado. Teve vontade de gritar com ela. Mas ele se conteve. Como vinha praticando respiração e plena consciência, ele pôde reconhecer a raiva e não agiu sob sua influência.

Os adultos estavam cuidando da irmã, lavando o ferimento e pondo um curativo, então o menino resolveu se afastar lentamente e praticar a respiração observando sua raiva. De repente percebeu que era exatamente igual ao pai. "Percebi que se não fizesse alguma coisa com relação à raiva em mim, iria transmiti-la aos meus filhos." Ao mesmo tempo, ele teve outro vislumbre. Viu que o pai podia ter sido uma vítima, exatamente como ele próprio. As sementes da raiva do pai poderiam ter sido transmitidas pelos avós. Foi uma percepção notável para um menino de quatorze anos, mas ele teve condição de ver as coisas assim por ter praticado a plena consciência. "Disse a mim mesmo que continuaria a praticar a fim de transformar minha raiva em outro sentimento." Após alguns meses, a raiva desapareceu. Ele então foi capaz de trazer ao pai o fruto de sua prática. Disse-lhe que costumava sentir raiva dele, mas que agora o compreendia e gostaria que ele também praticasse a meditação para transformar suas próprias sementes de raiva. Geralmente pensamos que os pais têm de criar os filhos, mas às vezes os filhos podem trazer a luz para os pais, ajudando-os a se transformarem.

Quando encaramos nossos pais com compaixão, muitas vezes vemos que eles são apenas vítimas que nunca tiveram a oportunidade de praticar a plena consciência. Eles não tinham como transformar o sofrimento dentro de si. Se os contemplarmos, porém, com olhos compassivos, poderemos lhes oferecer a alegria, a paz e o perdão. Na realidade, quando olhamos em profundidade, descobrimos ser impossível ignorar toda a nossa identidade com eles.

Sempre que tomarmos um banho ou uma chuveirada, se olharmos com cuidado para o nosso corpo, veremos que ele é uma dádiva dos nossos pais e dos pais deles. Enquanto lavamos cada parte do nosso corpo, podemos meditar sobre a natureza do corpo e a natureza da vida, fazendo as seguintes perguntas: "A quem pertence esse corpo? Quem me deu esse corpo? O que foi dado?" Se meditarmos dessa forma, descobriremos que há três elementos: o doador, a dádiva e quem a recebe. O doador são nossos pais; nós somos a continuação dos nossos pais e dos ancestrais deles. A dádiva é o próprio corpo. Quem a recebe somos nós. À medida que continuamos a meditação, vemos com clareza que o doador, dádiva e o receptor são um só. Os três estão presentes no nosso corpo. Quando estamos em profundo contato com o momento presente, podemos ver que todos os nossos ancestrais e todas as gerações futuras estão presentes em nós. Com essa visão, saberemos o que fazer e o que não fazer - por nós mesmos, nossos ancestrais, nossos filhos e os filhos deles.

Paz a Cada Passo - Thich Nhat Hanh - Editora Rocco

Divisor

ZEN EM QUADRINHOS

Tsai Chih Chung - Edit. Ediouro

Divisor

"A criatura que tem o pensamento agitado,
que é por intensa luxúria tomado e que suspira pelo que é prazeroso,
Aumenta mais ainda se anelo; deveras, torna ele forte o laço."

Dhammapada v.349

"Mas aquele que está deliciado com o tranqüilo pensamento,
que é meditativo e que contempla o que é não-prazeroso,
Este deveras removerá, ou melhor, cortará de mara o laço."

Dhammapada v. 350 - [mara = a tentação]

"As riquezas destroem o tolo, não aquele que procura o além;
Pela sede de riquezas o tolo arruína a si próprio, como também aos outros."

Dhammapada v.355

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