Borges distinguiu o Inferno de Dante do descrito no Vathek de Beckford por considerar o
primeiro não um lugar atroz, mas um lugar onde ocorrem fatos atrozes, enquanto o último
seria o primeiro inferno realmente atroz da literatura. Confesso que o livro de Beckford
passou inúmeras vezes pela minha mão no Outro Contos, este nosso templo da leitura que
modestamente se chama apenas de sebo, talvez nunca o compraria se não fosse os
comentários de Borges.
Não que o livro não tivesse me chamado a atenção, mas entre tantas tentações é
sempre necessário traçar listas de prioridades nas quais ele acabou sendo sempre
excluido à última hora. Mal compro o livro e devoro em poucas horas seu conteúdo,
escrito numa prosa agradável que consegue ser rica sem ser rebuscada e numa história
repleta de descrições minuciosas sem deixar de ser eficiente e atrativa.
A tradução é evidentemente ruim, agravada pelas notas que a guisa de esclarecer
confundem mais e revelam o completo desconhecimento do tradutor sobre o assunto. Em alguns
casos as notas chegam a ser ridículas, como na que tenta explicam quem seria o rei
Suleiman Ibn Daud elencando personagens completamente distanciados.
O nome e o contexto revelam sem margem de dúvida que se trata do Rei Salomão filho de
David. Não bastasse a coincidência dos nomes de pai e filho - apenas nas formas
arabizadas de Suleiman e Daud - as referências a um conhecimento "especial", o
poder de comando sobre os djinns (gênios) e a referência ao Palácio não deixariam
margem de dúvida sobre a identidade do personagem que tem um papel fundamental no
desfecho da obra. A confusão provocada pelas notas do tradutor Não chega a comprometer
de todo a compreensão do texto, mas certamente empobrece a sua conclusão.
Uma outra confusão do tradutor se refere à expressão sultão pré-adamita utilizada
frequentemente pelo autor. Aqui o equívoco da "nota explicativa" não se
explica pelo desconhecimento de noções básicas de cultura islâmica, já que a idéia
de uma civilização pré-humana não tem referências na cosmogonia muçulmana, mas o
sentido da idéia inventada pelo autor é evidente. Bastaria, portanto, ao tradutor ler o
texto para apreender o sentido no máximo buscando na Mitologia Grega referências
básicas do mito dos titãs para compreender o sentido da expressão.
Há problemas sérios também na transliteração das palavras árabes e persas que tornam
algumas expressões quase irreconhecíveis. Confesso que uns dos motivos para não ter
comprado o livro antes da referência de Borges foi o seu nome, Vathek. Como se sabe, no
árabe não existe a letra V e este descuido me deu a impressão de uma obra apressada a
mal cuidada. Na verdade ocorreu apenas um erro de transliteração que transformou um u em
w que foi entendido como V. É até improtante salientar que realmente houve um califa
abássida chamado Wathek, neto do legendário Harun Al- Rashid das Mil e Uma Noites.
Termino de ler o livro com a sensaçào de ter sido vítima de mais uma das peças de
Borges, afinal ele cria a expectativa de uma descrição minuciosa do Alcáçar do Fogo
Subterrâneo e das 130 páginas da história apenas 12, menos de 10%, se passam neste
palácio infernal. Da mesma forma Borges omite o mais importante dos horrores infernais: o
coração em chamas dos infortunados que aceitaram a soberania de Iblis.
Só ao se ler o livro se entende por completo o texto de Borges que começa e termina
falando de uma hipotética biografia que não mencionasse as principais obras do
biografado. A mim parece evidente o jogo de um livro sobre o Inferno que fala tão pouco
do mesmo, mas certamente o texto de Borges não fala da idéia central do texto - a não
ser em um parágrafo para traçar seu parentesco com o Fausto de Goethe e histórias
similares.
É essencialmente sobre isto o livro, a punição de quem busca orgulhosamente - e
impiamente - o conhecimento e o poder sem colocar nenhum limite a sua ambição. O que
leva Wathek ao inferno é justamente esta sede de conhecimento,"punida com a perda do
mais precioso bem dos céus: a esperança".
Este fundo moral soa certamente estranho a um contemporâneo e êmulo de Voltaire, a um
aristocrata excêntrico - o que talvez seja um pleonasmo - que vive na fase final da
decadência do Ancient Régime (o livro apareceu em 1787). Um autor que buscava o mesmo
prazer do conhecimento, que como Wathek adorava as ímpias orgias dos sentidos escrevendo
uma história com tal fundo moral, condenado a si mesmo é certamente algo estranho.
A psita para desvendar o mistério vem de outro lado, Beckford parece ter extraído sua
história das mil e uma noites. Para dizer a verdade parece até muito mais autenticamente
"oriental" que muitas das histórias das Mil e Uma Noites. Para o que ele
considera a mentalidade oriental o Wathek teria de ser punido como uma consequência mais
ou menos natural da mentalidade oriental.
Tal como das muitas histórias interpoladas nas Mil e Uma noties originais - que nunca
estiveram nos originais árabes, turcos e persas - como a história de Alladin, o Vathek
de Beckford fala mais sobre a forma como a Europa vê o Oriente do que sobre o próprio
oriente. E neste jogo de imagens espelhadas acaba por revelar mais sobre o Ocidente e seus
valores do que sobre o Oriente que quer descrever.
.
Termino de ler o livro com a nítida sensação de ter sido