Já citei inúmeras vezes aqui a frase de Borges segundo a qual mais do que escolas, ele
foi educado por uma biblioteca. Há um outro aspecto desta frase, contudo, que eu não
explorei. A leitura é geralmente vista como uma atividade de lazer, um modo agradável de
passar o tempo, um meio para se conhecer o mundo numa viagem onírica (ainda que seja pelo
sonho dos outros).
Mas reduzir a leitura, em especial de bons livros - cada vez mais raros - a simples hobby
é não ser dotado da real capacidade de leitura. Ler é algo mais do que esta tarefa
prosaica a qual se pode dedicar algumas horas vagas. Já houve quem tenha descrito o
ofício de escritor como uma maldiçõa que impele o indivíduo a escrever, pouco se
improtanto até mesmo se alguém vai ler, escreve porque para o verdadeiro escritor
escrever é igual viver, ele é incapaz de conceber a vida sem escrever, assim como nào a
concebe sem respirar.
Contudo faltou dizer que igualmente a leitura pode ocupar este espaço junto àqueles que
ao gosto pelas letras não se seguiu a inspiração para escrever, há também o leitor
compulsivo. Cervantes já disse que lia até os papéis rasgados das ruas.
Nem sempre se entende o papel dialético da leitura, a imaginamos como uma relação
unilateral na qual lemos um livro e por alguns istantes saboreamos o prazer daquela
leitura, envolvemo-nos emocionalmente com os personagens e depois retomamos a nossa lida
diária, no máximo guardando alguma frase mais trabalhada para ostentá-la em alguma
conversa na qual queiramos passar por cultos e espirituosos.
Claro que não é este o verdadeiro processo. Não somos mais os mesmos ao terminar de ler
um livro - em especial os bons, ressalvo novamente - porque certamente ele alterará algo
em nós, estabeleceremos relações entre o livro e a nossa vida, entre aquele livro e
outros, entre o autor e nós. Mais do que isto, o livro tem o poder de inserir, quem sabe
inocular, em nossa mente algumas idéias.
A idéia de inoculação me parece mais apropriada, porque indica precisamente que algo
que sai do livro entra em nossa mente e provoca reações - se são favoráveis ou
desfavoráveis é irrelevante - interage com as idéias que já estão lá, luta com elas
e deste processo surgem idéias novas que são como anticorpos, prontos a reagir -
interativamente - com novas idéias que outros livros - ou o mesmo - levarem a nossa
mente.
Também o livro se altera, porque embora sejamos incapazes de mudar uma única letra nele
impresso, ele já não é mais o mesmo quando o relemos - "O importante é reler,
não ler", já frisa um personagem de Borges - não só porque reparamos em coisas
que passaram desapercebidas na primeira vez, ou só porque a lembrança que nos ficou da
primeira leitura interage com a da releitura, mas fundamentalmente porque cada livro fala
a nós de acordo com o que pretendemos ouvir.
Chamo ao tipo de livro que gosto de ler de "livros de insônia"porque as idéias
que eles trazem dentro deles provocam daquelas agradáveis tempestades mentais, remexendo
até mesmo nos cantos mais escondidos da mente, convulsionando a memória com o resgate de
tantas outras idéias, provocando a gênese de mais e mais idéias, enfim livros cuja
dialética alteração da mente é claramente perceptível - como disse antes todos os
livros provocam esta reação, mas nem em todos ela é perceptível.
Três autores em particular me causam este efeito com relativa constância, Swift com sua
sátira ácida, Borges com seu assombro, Lobato com seus raciocínios inusitados e até
incoerentes. Mas há tantos outros que em grande aprte das vezes provoca aquele desejo
irresistível de se terminar de uma vez a leitura devorando com avidez cada página,
incontáveis noites passei em claro porque não conseguia desgrudar de livros de autores
tão diferentes como Asimov ou Voltaire, Shakespeare ou Huxley, Attar ou Flaubert.