Lobato, dizem, deixou de escrever para adultos porque desistiu de tentar colocar idéias
nas cabeças deles, repletas demais de costumes, vícios e preconceitos para que coubesse
alguma coisa mais. Resolveu, então, sugerir idéias às mentes infantis, menos
doutrinadas na mediocridade e parece ter tido efeito, afinal os "filhos de
Lobato" marcaram algumas décadas de progresso do país, ainda que nenhum deles tenha
se tido a mesma coragem do mestre.
Quem lê os textos para adultos de Lobato, em geral artigos de jornal, lamenta a opção
do escritor porque certamente ele teria muito ainda a dizer a todos. Sua mente
desacostumada às normas que em geral a acorrentam produz idéias originais, juízos tão
estranhos como corretos, coloca o dedo na ferida profunda da nação sem medo nem piedade;
tudo isto alinhado numa prosa elegante, culta e cheia de referências sem ser pedante, às
vezes numa história profunda e comovente retirada às páginas da história ou do
noticiário.
De todos os livros - em geral coletâneas dos artigos - o meu preferido é "Na
Antevéspera", escrito na década de 20 (com alguns acréscimos posteriores e
anteriores). Lá ele destila críticas profundas ao governo federal, aqueles tumultuados
anos de Arthur Bernardes e Washington Luis, com toda a violência sincera do seu texto.
Eram anos de chumbo, principalmente para os paulistas, marcados pelo Estado de Sítio,
pelo bombardeio de São Paulo que o marcou profundamente - "só a insânia o poderia
invocar [o princípio da autoridade] para destruir São Paulo", escreve ele - de
níveis insuportáveis de corrupção governamental e de um profundo desejo de mudanças
que depois seria habilmente manipulado pela Revolução de 30.
Frente à vileza do governo Lobato eleva os personagens que enfrentam este estado de
coisas à categoria de heróis. A Coluna Miguel Costa - que depois se fundiria com as
tropas do Sul formando a Coluna Prestes - é saudada pelo seu heróico abandono de São
Paulo, fazendo cessar o bombardeio, assim como heróico é o soldado que mata um oficial
francês que por motivo fútil o chicoteia o rosto - privando Damasco de mais um
bombardeador, ironiza ele - e o soldado nordestino que havia lutado por São Paulo e
perdido um olho (isto já em 32) mas placidamente aceita as ofensas racistas de uma velha
dama quatrocentona, só para citar alguns.
Mas cada vez que releio Lobato, que comecei a devorar mal aprendi a ler, sou assaltado por
uma dúvida que me atemoriza quanto ao futuro: será ele ainda legível para as crianças
de hoje?
Dou uma olhada nos livros infantis que circulam por aí e sou tentado a acreditar que
não. Quase sempre se tratam de livros que tratam as crianças como imbecis, nos quais
não se pode aprender nada. Quase sempre são tão desprovidos de conteúdo que precisam
apelar para outros aspectos como estratégias de marketing, assim proliferam livros nos
mais diversos formatos e materiais justamente porque nenhum deles tem conteúdo, então
precisam buscar algum atrativo que o substitua.
Lobato escrevia às crianças com o mesmo esforço e qualidade com o qual escrevia para os
adultos. A diferença, se há, é que nos livros para crianças reforçava o aspecto
lúdico, buscava estimular a fantasia e nunca usava expressões sem as explicar. Não
usava um texto primário e uma temática imbecilizada como a imensa maioria dos escritores
infantis de hoje fazem.
Talvez ele acreditasse que o poder da fantasia, aquela mágica que encontra uma eficiente
metáfora lobatiana no "pó de pirlimpimpim", seria a única esperança para que
no futuro as crianças que o lessem resolvessem pensar e mudar radicalmente o país que
ele amava tanto e que era tão castigado. A tarefa, deveria saber ele, era tão imensa que
exigia uma grande dose de imaginação e da coragem que a fantasia dá para ser efetuada.
Os atuais livros para crianças, boçalidades mercantis, certamente não exercem nem
exercerão este papel. Talvez, pelo contrário, irão desestimular as crianças de pensar
fazendo-as imaginar que as suas histórias cretinas e monossilábicas fazem parte de algum
tipo de literatura, garantirão que as novas gerações não conheçam nunca a leitura de
livros de qualidade e ensinarão que o formato ou material no qual o livro-mercadoria é
feito é mil vezes mais importante que o conteúdo.
Meu único alívio é saber que estas bobagens que se chamam hoje de livros infantis nunca
chegarão a um milésimo da glória de Lobato. Seus autores e editores poderão ganhar
fortunas comercializando este lixo todo a pais e filhos ignorantes, mas jamais deixarão o
nome para a posteridade como Lobato fez. A mais certa das imortalidades - aquela
representada pelo nome que deixamos quando abandonamos a vida - não é nada conivente com
a ignorância e a mediocridade.