"Por meio de seu invento a pessoa mais ignorante poderia, por um preço módico e
pouco esforço, escrever tratados de filosofia" (Swift, Viagens de Gulliver)
Alexandre Gomes
Há algum tempo eu e o colega Cirilo Braga criamos um personagem que fez uma curta mas
brilhante carreira como articulista em São Carlos e andou até pela Internet: Ivonney
Penna. Os artigos escritos a quatro mãos tinham a característica de nunca dizerem nada,
mas transmitiam esta mensagem com muito estilo em frases pomposas repletas de
lugares-comuns escolhidos a dedo.
Analisando a globalização por exemplo, tema que jamais pdoeria faltar na agenda do
Ivonei, o nosso articulista à guisa de conclusão do longo artigo perguntava: "mas
será a globalização realmente globalizante ou paenas globalizadora?".
Com o passar do tempo começamos a reparar que o Yvonei (nunca se chegou a um acordo sobre
a grafia do nome) não só era um personagem da vida real como até costumava fazer
sucesso nos mais diversos séculos, em especial na Academia. Quase todo dia encontrávamos
artigos, teses e comentários que só poderiam ter sido feitos pelo nosso personagem.
Um dos últimos artigos, dedicados a analisar o desemprego foi até feito não de frases
que bolamos, mas da colagem de trechos de artigos e entrevistas de personalidades
políticas, acadêmicas e sindicais sobre o assunto.
Com raríssimas, porém honrosas, exceções a crítica literária resume-se a transformar
obras de arte escritas com imaginação e esmero em um amontoado de observações chatas e
tergiversações em geral implausíveis. E em geral a obscuridades dos textos serve como
manto a encobrir a obscuridade das idéias. Em um país onde grassa a ignorância e o
bacharelismo Ivonei e seus clones mentais não podiam deixar de fazer sucesso.
O impostor intelectual prospera porque muito poucos sabem realmente alguma coisa sobre o
que ele está falando, mas ninguém quer mostrar a ignorância e então disfarçam a falta
de cultura com uma expressão de concordância como os personagens provincianos de Balzac
que tentam ostentar um estilo "da corte".
Mas há um tipo mais sofisticado e pernicioso de impostor nesta área, aquele que tenta
transformar a imaginação em uma estatística qualquer para assim embromar melhor
retirando da literatura a imaginação. Eu diria que qualquer um pode ser um profissional
médio numa das ciências ditas exatas ou técnicas - evidente que um cientista de renome
só poderá sair de poucos - porque basta que se aprenda a lidar com alguns mecanismos
matemáticos.
Já na área de humanidades isto é diferente - apesar de todos os esforços para que seja
igual. Um cuidadoso estudo sobre como escrever não é capaz de produzir um escritor, por
mais vontade que o indivíduo tenha. No máximo produzirá um bom leitor a quem a cultura
adquirida dará algum brilho.
Mas Não foram poucos que tentaram reduzir a literatura ao mesmo estágio burocrático e
tecnocrático. Um bom exemplo é o teórico russo Vladimir Propp, que já fez furor em
décadas passadas com o seu "Morfologia do Conto Maravilhoso". A intenção de
Propp ao escrever o texto em 1928 é doentia: transformar uma centena de contos
folclóricos russos em meia dúzia de equaçÕes matemáticas.
A pretensão de rebaixar a cultura ao nível da técnica é evidente e até expressa
claramente na introdução da obra: "Enquanto as ciências fisico-matemáticas
possuem uma classificaçào harmoniosa, uma terminologia unificada e que é adotada em
congressos especializados, um método aperfeiçoado por gerações e gerações de
mestres, entre nós nada disto existe".
Dane-se a imaginação, a diversidade que tanto faz sentido nos relatos, o improtante é
que se tenha uma fórmula conveniente para organizar nossos Congressos, é isto que Propp
diz numa linguagem mais clara.
Ao longo do texto Propp vai disseando os contos, fazendo a autópsia da imaginação para
ao final chegar às pretendidas fórmulas que ele arrogantemente apresenta como o
supra-sumo do esforço. Felizmente o autor foi atropelado pela história porque o
positivismo que o inspirou já era ultrapadsado quando ele começou a escrever.