"Que outros se jactem das páginas que escreveram; a mim me orgulham as que li"
(Borges)
Falei antes do imenso prazer causado pelo turbilhão mental que a leitura de um bom livro
pode proporcionar. Lembrei disso quando ouvi alguém me dizer que gosta muito de escrever,
mas não tem paciência para ler. A observação me pareceu um disparate e arriscando-me a
ser injusto já julguei mal qualquer coisa que o interlocutor infeliz poderia ter escrito.
Até acho possível, ainda que difícil, que alguém goste de ler mas não escreve.
Escrever é sobretudo um dom e como tal de certa forma independe da nossa vontade e
esforço escrever página memoráveis.
Mas o raciocínio contrário me parece impossível, imagino impossível que alguém que
goste de escrever produza qualquer coisa digna de nota sem gostar de ler. Como uma mente
limitada por sua própria experiência seria capaz de produzir algo que não provocasse o
mesmo desinteresse nos outros que provoca em si mesmo?
Não conheço quem escreva bem que não seja leitor intenso, assim como não há texto
escrito que não reflita tantos outros livros. Como o Borges da frase que serve de
epígrafe, creio que há mais mérito próprio em sermos capazes de escolher bons livros e
penetrar-lhes até a essência do que em encher uma página com notas memoráveis - se a
inspiração nos sorri - ou com imbecilidades se a musa não nos sorri. Ao menos no
primeiro caso é uma escolha, já no segundo é uma imposição da natureza.
Não é à toa que prefiro livros de "sebos" proque quase sempre neles há uma
oura história rabiscada às margens, grifada nos sempre contestáveis pontos que chamaram
a atenção de alguém, quase sempre há um nome assinalado do proprietário anterior, nos
fazendo imaginar qual seria a história dele e daquele livro.
Esta história subjacente daquele livro, a idéia que alguém compartilhou aquela leitura
que fazemos, imaginar-se qual teria sido a reação do leitor anterior, o motivo que o
levou a desfazer-se daquele volume, tudo isto ainda reforça aquela forte mística que
sempre permeia qualquer livro. Não é à toa que há tantas lendas sobre livros
mágicos...
Isto me ocorre porque há poucos dias soube de um destes destinos inusitados de um livro.
Foi a terceira peça que Dante me prega este ano com a sua Divina Comédia. Impossível
que eu não imagine que ele de alguma forma tenta se vingar de mim porque citando Asin
Palácios comentei o fato de boa parte da Comédia ter sido copiada de textos árabes
medievais.
Ou talvez ele deseje me recompensar porque eu e a outra vítima da peça o tiramos do
ostracismo que substitui os livros clássicos por efêmeros best-sellers, porque
resolvemos imaginá-lo não como um a peça de museu mas insistimos em trazê-lo para a
realidade.
Como o Deus esquecido das Ruinas Circulares de Borges - que ensina a mágica de criar um
homem ao pobre homem em troca de reavivar seu culto e suas oferendas - Dante talvez se
sinta tão feliz em ainda ser lido como coisa viva que coloque em meu caminho estas
pequenas brincadeiras inusitadas, que disfarçam-se de coincidências para que seja
necessário acreditar nelas.
Enfim só posso imaginar que estas histórias só comprovam que ler é um processo que tem
algo de mágico realmente, que exige uma dedicação quase religiosa, mas que em
contrapartida abre para nós a porta de novos mundos.