"Há uma regra segura para julgar tanto livros quanto homens, mesmo sem os conhecer;
basta saber por quem são amados e por quem são odiados" (Maistre)
O propósito de todo livro, ao menos teoricamente, é ser lido, ainda que por um
solitário punhado de pessoas. Portanto falar de livros que Não precisaram ser lidos é
algo paradoxal, é como falar de um não-livro, contudo é impossível ignorar que estes
não-livros existem - e em quantidade crescente - malgrado todo o esforço dos autores e
sobretudo devido aos comentaristas.
Uma categoria dos não-livros é aqueles volumes que tem efeito decorativo nas estantes do
charlatão e do parvenu. Me lembro que uma vez deixei de frequentar uma livraria indignado
com o fato da proprietária ter tentado me vender a Comédia Humana sob o argumento que
ficaria bonito na estante. Tamanho desrespeito a Balzac demonstrava que ao invés de
vender livros ela tinha mais vocação para decoradora de interiores ou coisa similar.
Mas não é desta categoria tão comum que quero falar, mas sim de outra, dos livros que
apesar de não terem sido lidos pela imensa maioria das pessoas, ainda assim desempenharam
- e desempenham - um papel fundamental na história da Cultura Ocidental. Alguém pode se
perguntar, mas como, se Não foram lidos?
A resposta é simples, este efeito foi produzido pelos comentaristas, pelas frases tiradas
dele, pelos livros que o parafraseiam, parodiam ou enaltecem, pelas teorias e movimentos
que dele foram derivados, enfim, pelo que as pessoas acham que ele contém. Esta
impressão subjetiva do livro, muitas vezes, é equivocada, distorcida, exagerada, mas
muitas vezes tende a suplantar o próprio livro em importância.
Um exemplo fenomenal é O Capital de Marx. Obra densa, difícil, esquemática, teórica e
que em momento nenhum traz qualquer previsão do que seria a sociedade socialista pregada
por Marx - sem muita ênfase - em outros textos. Só os poucos que se debruçaram sobre
este texto árido, que precisa ser estudado e não lido, sabe que lá não está contido
as coisas que a maior parte das pessoas acha que lá existem. A maioria nem imagina, por
exemplo, que O Capital analisa o capitalismo e não prescreve o socialismo.
Em alguns casos a impostura - consciente ou não - tem o objetivo de dar ao parvenu apenas
mais um argumento de seu exibicionismo. Comentar o Ulisses de Joyce, por exemplo, já que
dificilmente se conseguirá imaginar obra mais hermética e áspera. Aliás dizer que se
leu uma tradução do Ulisses é como dizer que leu Grande Sertão: Veredas de Guimarães
Rosa - outro campeão da empulhação - em inglês, pois os jogos de palavras nos dois
textos só permitem que ele seja adequadamente lido na lingua original.
Mas saindo destes casos extremos no qual a impostura joga um certo papel, há outros
livros que por terem se tornado clássicos passam a ocupar um espaço no imaginário
social. São obras que mesmo tendo sido lidas raramente por um ou outro são consideradas
como conhecidas por quase todos.
Quantos, por exemplo, terão lido o Quixote de Cervantes? Mas dificilmente alguém de uma
cultura mediana não identificaria com exatidão a imagem do infeliz cavaleiro tardio às
voltas com moinhos de vento, quantos não saberiam que ele atacava os moinhos porque
imaginava-os gigantes, quantos Não se identificam com o personagem louvando o idealismo
da sua imaginação ou a criticando a insensatez das suas fantasias?
Em alguns casos o juízo do imaginário faz justiça ao livro, noutros o eleva mais pelo
seu significado simbólico que pelo seu valor efetivo, noutros ainda lhe diminui os
méritos e reduz uma importância que lhe é muito maior. Em grande parte isto se deve às
versões condensadas, mutilações infelizes que só visam o interesse empresarial das
editoras.
As "Viagens de Gulliver" de Swift são um excelente exemplo do último caso - de
um livro que supera em muito os méritos da sua imagem popular. Por algum motivo
desconhecido a sátira profunda, ácida, feroz - até violenta - de Swift foi placidamente
entendida como uma história infantil. É assim que ela é considerada pela maioria da
população, de forma praticamente incompreensível a qualquer um que tenha lido de fato
texto tão amargo e pessimista que ironiza nossos mais profundos e enraizados defeitos.
Em alguns casos há uma distância enorme entre o livro e sua imagem no sentido inverso.
Que não dizer do aborrecido Lusíadas - tão menor que outras obras de Camões - mas tão
grandioso enquanto símbolo da cultura lusitana e da aventura da conquista colonial.
Ou ainda do Édipo Rei, de Sófocles, popularizado pela psicanálise pelo Complexo que lhe
leva o nome mas que em momento nenhum merece, no texto, o sentido que a psicanálise lhe
deu. Édipo Rei fala da inevitabilidade de se lutar contra o destino, não das relações
incestuosas que não desempenham papel na trama a não ser como um castigo a mais dos
deuses sobre quem ousa tentar fugir aos seus desígnios.
Certamente cabe neste panteão de livros que tem seu duplo no imaginário popular - e com
destaque - a Divina Comédia de Dante. Muitos certamente até se surpreenderiam ao saber
que as clássicas ilustrações sombrias de Gustave Doré - tão ligados ao texto de Dante
na imagem mental que fazemos dela - só foram feitas no século passado. O texto
rebuscado, de leitura árdua, repleto de referências históricas e mitológicas, híbrido
da Eneida latina e da Liber Scalae Mahometi, cheio de pequenas vinganças pessoais do
autor contra seus inimigos certamente não faz jus à importância que o texto ocupa na
mente de seus não-leitores.
Câmara Cascudo evidenciou como as imagens criadas por Dante - e outras que se imaginam
dele - penetrou fundo na cultura ocidental a ponto de embrenhar-se nos sertões e acabar
na literatura de cordel. As imagens que se tem de Inferno - principalmente de Inferno, o
que é um fato significativo - foram em grande parte calcadas ou em Dante ou no que se
imaginava que seria Dante.
E, o mais importante, não só como idéias estéticas ou como uma descrição literária
do inferno, mas transcendendo o campo da obra de arte foi suficiente para invadir os
domínios da teologia e da escatologia, confundir-se com os ensinamentos religiosos e daí
com as crenças populares. Quanto não há, por exemplo, de Dante nos sermões terríveis
que deram fama a Frei Damião?
A crescente despreocupação teológica com o Inferno, que vem se firmando como tendência
da Igreja Católica, não combate a imagem já firmada nos fiéis de um inferno - imagem
esta em grande parte construida a aprtir de fragmentos esparsos de Dante e das imagens de
Doré. Comentando as razões que o inspiraram a fazer a tradução da Divina Comédia para
o português, Hernani Donato diz: "Um dia, na mesopotâmia matogrossense, mordido por
estupefação e curiosidade, bisbilhotei o que lia um homem destacado para montar guarda -
quinze dias de solidão atroz - a um caminhão, ilhado pela cheia dos rios. Era um caderno
quase desfeito da Divina Comédia. Lia, mas não entendia. Lia como quem rezava. Rezava
com medo respeitoso e pânico, os horrores do inferno."
A despeito de movimentos como a Renovação Carismática reforçarem estas crenças, este
temor ao inferno que tanto deve a Dante, é preciso observar que isto não invalida o
pressuposto que sem uma imagem oficial do Inferno os fiéis pegam a que está a mão, já
que a RCC é basicamente um movimento leigo.