Alexandre Gomes
"Embora, Senhor Quixote, as sandices vos tenham transtornado o cérebro, nunca
podereis ser repreendido por estes homens de obras vis e soezes" (Cervantes)
Alguém, já não me lembro mais quem, disse que Dom Quixote é certamente o mais
excepcional símbolo do homem. Não resta dúvida que este personagem infeliz representa o
que temos de mais humano, incluindo a sandice. Quixote é o homem que ousa sonhar e tem a
coragem de enfrentar a sua obscura existência armado com pouco mais do que aqueles
sonhos.
Já disse em artigo escrito há alguns meses que Quixote encarnou tanto a rebeldia que se
rebelou contra seu autor. Criado pelo Cervantes entrado em anos para ironizar o aluado
Cervantes jovem que levou a ambos ao cárcere sarraceno e a uma existência infeliz.
Mas Cervantes fracassou no seu intento e acabou se submetendo à inflexível vontade do
fidalgo da Mancha, assim um livro previsto para condenar os ingênuos sonhos da juventude
acabou por se tornar um símbolos deles. Por quais caminhos se deu esta metamorfose ainda
Não se sabe, talvez nem Cervantes tivesse percebido que todo o ódio vingativo que tinha
sobre seu duplo jovem acabaria sucumbindo à coragem inconformada da vítima de seu
escárnio.
Não há melhor antídoto contra o racionalismo frio e a lógica previsível que ameaçam
o mundo - e sobre as quais tenho falado em artigos anteriores - do que uma dose de
quixotismo. É nesse quixotismo que encontraremos a cura para a maquinização do homem,
é com as mesmas armas que Quixote combateu os gigantes disfarçados de moinhos que se
combaterá o lado negro do nosso futuro.
Enquanto restar algo de Quixote em nós, nossa alma não será a alma de um escravo,
tampouco poderemos ser confundidos com automatos. Enquanto Quixote habitar nosso espírito
manteremos a dignidade e a ânsia de fuga como a do jovem Cervantes na masmorra sarracena,
cuja audácia seduziu os mouros e o tornou um prisioneiro respeitado.
Quanto haverá ainda deste Quixote num mundo cada vez mais frio, mais
"racional", mais previsível é um mistério. Certamente há muitos homens
limitados e vis a espancar os pobres quixotes e sanchos que restam, menos por os julgarem
loucos do que por temer a imprevisibilidade deles.
Mas isto significa muito pouco porque a massa medíocre perseguiu a nata de talento
durante toda a história da humanidade, mas nunca conseguiu êxito. O mundo que temos hoje
nos foi dado por esta pequena elite que a súcia medíocre jamais foi capaz de conter ou
controlar, cujas idéias se impuseram pelo próprio valor perante a multidão de
preconceitos e sensos-comuns da plebe ignara.
Os medíocres estão condenados a não deixar sua marca no futuro a não ser como objeto
de piadas e escárnio. Até hoje o futuro pertenceu aos Quixotes e só a eles o mundo pode
agradecer o que se conquistou de bom.
Mas agora o mundo pode mudar em definitivo. Quixote é chamado a comandar suas hostes em
mais uma batalha imaginária na qual se decidirá, em definitivo, se o mundo se verá
livre dos gigantes ou estará repleto de moinhos.
Chegou-se a um ponto no qual se deve decidir se o mundo dará o definitivo salto para a
liberdade e o progresso real, ou se ele estagnará no pântano fétido de um racionalismo
estéril e uma lógica improdutiva. A massa medíocre, como sempre, será apenas figurante
neste processo, preocupada apenas com suas mesquinharias cotidianas e suas obras vis.
Mas lá do alto o embate entre as elites será mortal, homem ou máquina, racionalidade ou
imaginação, progresso ou estagnação, liberdade ou escravidão. Tudo isto será
resolvido talvez ainda durante o período de nossas vidas, no mais tardar na da
existência de nossos filhos.
Alguns autores falam em ditadura da mediocridade, e eu por muito tempo achei a expressão
correta. Hoje já é claro que é um conceito inexistente, um paradoxo em si mesmo porque
a mediocridade é incapaz de dirigir qualquer coisa. No máximo existe a ditadura de uma
elite que utiliza os sensos-comuns da mediocridade para controlar a massa e faze-la
acreditar que se faz algo em nome da multidão.
Será criado um mundo no qual a massa será livre para libertar-se da mediocridade e onde
as portas estarão abertas aos talentos, ou um mundo no qual o pouco que restar do talento
será usado para manietar em definitivo a massa. E não resta mais muito tempo para esta
escolha.
Alexandre Gomes é editor do PRIMEIRA PÁGINA
|
|