"É curioso o destino do escritor. No início é barroco, vaidosamente barroco, e ao
cabo de anos pode lograr, se lhe são favoráveis os astros, não a simplicidade, que não
é nada, mas a modesta e secreta complexidade" (Borges)
A ciência nos ensina que a natureza evolui do simples ao complexo e por isto há no
senso-comum a noção de que tudo é assim. Nas artes e na literatura em geral os efeitos
deste pensamento equivocado é catastrófico.
Contrário ao conselho de Mario Quintana que devemos primeiro ser artesãos e, só com a
mestria que o tempo e a experiência dão, tornarmos-nos artistas, hoje todos querem
iniciar no topo. As condições de ignorância generalizada e desprezo (preguiça) pelo
passado, somado ao câncer do talento que é a vaidade, tornam muito propício a
generalização de obras que escondem sua incompetência e insensibilidade atrás de um
pretenso hermetismo.
Borges, a quem a fama de hermético demonstra que é muito mais citado do que lido,
esforçou-se ao máximo para simplificar seu texto. Nele o absurdo e o assombroso, as
idéias metafísicas mais estapafúrdias estão descritos de forma transparente. Diria
alguém que falando de coisas tão fantásticas seria possível suprimir o assombro da
forma porque há o suficiente no conteúdo, o que talvez seja uma crítica pertinente, mas
que não invalida o esforço do autor para tentar cumprir a máxima de Victor Hugo de
sermos inteligívies apra mostrarmos que somos inteligentes.
Superar este tendência a se mostrar e ostentar uma pretensa superioridade é um desafio a
qualquer escritor. O barroquismo que Borges menciona pode ser notado em qualquer um ao
qual o talento ou não existe ou ainda é superado pela vil vaidade. Ele denota,
sobretudo, aquele que ainda não se libertou da masmorra da opinião dos outros, que é
ainda escravo porque não escreve para si, mas para os outros.
Isto seria tolerável se fosse apenas um mal de escritores e artistas, mas é algo comum a
todos. Vive-se para os outros, age-se de forma a agradar - ou desagradar, o que no fundo
é a mesma coisa - o nosso meio. E se faz isso porque não se é livre, livre não dos
outros, mas de nós mesmos, somos os nossos próprios feitores.
Vive-se o medo das nossas fraquezas e sentimentos e é para enfrentá-las, encarcerá-las
que se cria um outro eu que tenta ocultar do mundo a verdadeira face. Borges por diversas
vezes brincou com este outro eu que se comportava como um personagem e transformava as
coisas improtantes para Borges-de-verdade em brinquedos da vaidade do Borges-o-outro.
Fernando Pessoa foi capaz de sintetizar esta necessidade do eu-vitorioso no "Poema em
linha reta", aonde seu heterônimo Alvaro de Campos questiona: "Nunca conheci
quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo".
Tentamos ser semi-deuses e heróis quando seria bastante que fossemos humanos.
Romper a muralha criada por este outro eu, que nos quer sempre fortes, belos e sábios é
certamente o mais elevado passo que se pode dar em relação à própria liberdade. Mas
este umbral Não pode ser transposto pela razão, como já disse em artigo anterior
Virgílio não podia guiar Dante além do Paraíso Terrestre, para chegar ao fim da
jornada o poeta precisou que Beatriz lhe mostrasse o caminho até a luz.
Há me todos um conflito entre o nosso eu verdadeiro e aquele que criamos para nós, raras
vezes o primeiro consegue ser vitorioso, e mesmo quando ele obtém a rara vitória em
geral somos velhos demais para colher os frutos desta libertação. Alguns buscam esta
alforria no persistente abandono da sociedade, na tentativa sucessiva de irritar seus
carcereiros, mas ao fazer isto só conseguem aumentar o peso dos grilhões que tem no pé
porque a favor ou contra continuam a ter os outros como referencial.
Borges foi capaz de obter esta liberdade e por isto sua obra é sincera. Paradoxalmente
obteve maior sucesso por isto porque a multidão de escravos admira o homem livre porque
sabe que ele já não pode mais ser destruído.