"Onde existem mil crenças, tendemos a nos tornar céticos em relação a todas
elas" (Will Durant, A História da Filosofia)
A religião ocupa um espaço muito peculiar como objeto de estudo. Poucos temas foram tão
abordados quanto ela - notadamente pelas ciências sociais - mas igualmente sobre poucos
se tem chegado a alguma análise razoável. Falta um modelo teórico que de conta da
complexidade do fenômeno religioso - e da religiosidade em particular - e sobram doses
monumentais de um arraigado preconceito quanto à religião que caracteriza a mentalidade
ocidental.
Sem entrar em detalhes mais aprofundados e técnicos, as interpretações do fenômeno
religioso ainda são em grande parte tributárias das visões de Durkheim e Marcel Mauss,
Weber e principalmente Marx. Praticamente só há um matizamento dos conceitos
originalmente formulados visando adaptar o modelo aproximando-o da realidade, criar
nuances que nào sejam tào definitivas como as postuladas por estes autores clássicos.
Extremamente digno de nota é o contexto social fortemente secularista no qual estas
teorias são formuladas. De um lado vive-se o auge da Revolução Industrial, a ilusão de
um período de progresso científico, tecnológico e material sem precedentes. De outro
havia ainda a necessidade - muito bem exposta por Edward Said no seu Orientalismo - de
propagar o discurso da superioridade secularista como discurso legitimador da expansão
colonial - que confrontava a sociedade "racional" européia à
"superstição religiosa" oriental.
É neste contexto que brotam estas tentativas de explicação da religião e este carimbo
é claro quando se vê o papel acessório que o fenômeno religioso terá. Durkheim e
Mauss entenderão a religião como uma função essencial ao sistema social, postura que
aparentemente elevando o papel da religião, lhe nega suas especificidades e
características próprias. Tanto que ambos tentarão explicar o conjunto do fenômeno
religioso a partir do animismo por considerá-lo mais simples, mas igual em essência a
qualquer religião (vide "Formas Elementares da Vida Religiosa", por exemplo).
Também Marx até aceita a especifidade do fenômeno religioso mas leh atribui um papel
acessório, derivado com contexto econômico. Em outras palavras nega a existência da
religião externa à realidade econômica e portanto determinada por ela.
A noção de ideologia, tão cara aos marxistas quanto ainda mal delimitada, dá à
religião um papel de legitimador da dominaçào de classes e um
"amortecedor"dos conflitos sociais. Com isto Marx acaba por proclamar que a
ideologia proletária que fará a aparência corresponder à essência pode prescindir da
religião.
Da interpretação deste conceito surgiu a tensa relação entre os partidos comunistas e
a Igreja que muitos, como Frei Beto e Roger Garaudy, tentam pacificar aproveitando-se do
acesso de modéstia que transformou o marxismo de ciência infalível em utopia humanista.
Weber é o único que, sem negar a profunda interação entre a realidade econômica e a
religião, parte do princípio que o fenômeno religioso tem vida própria. Ao contrário
do que afirmam seus detratores, Weber jamais disse que a realidade social, econômica e
política derivava de algum sentimento religioso. O autor, ao contrário, afirmou que as
mensagens religiosas que atendiam melhor às necessidades psicológicas, sociais,
econômicas e sociais de um povo tendiam a "prosperar" e tornar-se dominantes.
Ele também destaca um fato importante que praticamente parte "desapercebido" a
Marx - mas não à filosofia de Garaudy - de que em geral as crenças tiveram um poder
"revolucionário" nas sociedades que surgiram, com o apoio dos oprimidos e à
revelia dos dominadores. Moisés, Jesus e Maomé - para citar os profetas das três
religiÕes reveladas - pregaram contra a ordem estabelecida, o que é de certa forma
inconcebível dentro do universo puramente marxista de interpretação.
Mas a contribuição de Weber que mais interessa aqui é outra, o autor foi capaz de
perceber a existência de "necessidades religiosas" numa sociedade que até
podem ser derivadas de condições sociais, mas tem um papel ativo na interação com esta
realidade. Mais do que isto, estas "necessidades religiosas" produziriam uma
certa seleção natural das doutrinas, selecionando as que melhor as atendem e tornando
"antiquadas" aquelas cuja interpretação da realidade deixa de ser válida.
A sociedade ocidental é viciada no movimento frenético e na mudança, a concepção de
progresso assumiu aqui um forte valor positivo e portanto é muito difícil compreender a
estabilidade - a qual se prefere chamar estagnação, outra palavra carregada de valor,
só que negativo. Saïd mostrou claramente a importância deste discurso justamente no
período em que estas categorias iam sendo formuladas e é evidente o quanto o pensamento
marxista está impregnado desta idéia.
Weber foi capaz de distinguir neste processo religioso dois momentos distintos, enquanto
Marx - influenciado pelo anti-clericalismo iluminista e pelo secularismo industrialista e
colonialista - foi capaz de perceber apenas o momento no qual a religião tenta dar
estabilidade à sociedade. Weber nào nega este caráter conservativo da religião que
tenderia a perpetuar uma sociedade na qual existe correspondência entre a doutrina e as
"necessidades religiosas" através de uma ética econômica. Weber porém
acredita que se as condições sociais mudarem ao ponto desta eítca deixar de
corresponder às necessidades religiosas ou contribuir para produzir bem estar numa
sociedade haverá alguma alteração.
Weber vê dois desenlaces possíveis, em um deles surge uma nova mensagem religiosa capaz
de aglutinar os oprimidos e provocar uma mudança social mais intensa. Em outro cenário,
a incapacidade das novas idéias religiosas não virem ao ancontro das "necessidades
religiosas" acabaria por se impor uma doutrina oficial alimentada pela propaganda do
Estado.
De Weber é importante guardar-se dois conceitos úties à compreensão do papel da
religião na sociedade pós moderna. De um lado a noção que as idéias religiosas, as
"mensagens" pode aflorar na sociedade independentemente de condiçÕes sociais,
econômicas ou políticas determinadas. De outro o conceito de que a sociedade, ou mais
propriamente, os indivíduos que compÕe esta sociedade, tem "necessidades
religiosas".
A partir destes dois conceitos chega-se a um cenário no qual a sociedade está sempre a
produzir mensagens religiosas, mas que só algumas delas irão prosperar porque só
algumas delas atenderão a "necessidades religiosas" existentes. Traçando um
perigoso, mas necessário para facilitar a compreensão, paralelo com a biologia, as
mensagens religiosas passariam por constantes mutações, mas só algumas sobreviveriam ao
serem confrontadas com a seleção natural das "necessidades religiosas".