Ibn Khaldun (1332-1406) foi o último grande pensador muçulmano da nossa Idade Média,
ainda que fruto de todo o conhecimento produzido pelo mundo islâmico, sua originalidade
é surpreendente. Compartilha, de certa forma, com o destino do seu meio já que depois
dele não só a produção cultural do mundo islâmico decai como do ponto de vista
político o Oriente Médio perde seu poder de iniciativa estratégica - excetuando-se em
parte o Império Otomano que ainda manterá a iniciativa até o século XVII ou XVIII.
A primeira coisa que chama a atenção em Khaldun é que - a exemplo de Maquiavel, seu
êmulo ocidental - jamais encontrou um porto seguro nas muitas cortes pelas quais passou.
Vítima ele também das constantes intrigas palacianas e da inveja de mentes menos
brilhantes, não raro precisou fugir no meio da noite para preservar a vida.
Isto fez com que Khaldun servisse na maioria das cortes maghrebinas, atuando ora como
conselheiro real, hora como juiz, ora como diplomata, ora como refugiado político. Chegou
durante muito tempo a esconder-se entre as tribos nômades do Sahara - na atual Argélia -
e foi neste ambiente que escreveu seu trabalho mais conhecido "Al-Muqaddimah".
Embora ela fosse inicialmente planejada como uma introdução a um livro maior - "A
história das dinastias do Maghreb" - os prolegômenos à obra acabaram por ser muito
mais importantes que a obra em si.
A Muqaddimah não é um livro fácil de ler - a tradução espanhola do Fondo de Cultura
Económica que tenho à mão tem 1170 páginas - e em muitos pontos o texto é
extremamente prolixo, como se já Não houvesse motivos suficientes para ele ser extenso,
uma vez que tem a pretensào de inventariar o conhecimento da humanidade. Na parte que
mais interessa a este artigo, contudo, ele é relativamente objetivo.
Na nota introdutória da edição do FCE, de autoria de Elias Trabulse do Centro de
Estudios Históricos del Colégio de México, o comentarista destaca o caráter
multifacetado da obra de Khaldun. Diz ele"Ele tem sido comparado por sua idéia de
história com Políbio e Tucidides, Por sua 'dúvida metodológica' com Descartes e
Montaigne; por sua 'ciência nova' com Vico; por suas teorias políticas com maquiavel e
Bodin; por seu 'determinismo geográfico com Montesquieu e Buckle; por sua idéia de
progresso com Condorcet; por seu fatalismo filosófico e pante;ismo com Herder e Hegel;
por sua idéia de 'homem natural' com Rosseau; por sua concepção das diversas raças com
Gobineau; por sua idéia da servidão do homem civilizado com Nietzsche; enfim por suas
teorias sociológcias foi feito precursssor de Comte e Durkheim e por sua interpretação
materialista da história é comparado a Marx".
E provavelmente seria possível encontrar muitas outras analogias, eu mesmo verifiquei uma
estranha similaridade entre o trecho de Khaldun no qual ele comenta a linguagem e as
teorias de Saussure que deram origem à linguística. Se como observa Trabulse ele não
pode ser considerado sem se levar em conta toda a produção intelectual do mundo
islâmico que o antecede, por outro lado ele parece ter sido o último herdeiro desta rica
tradição.
O que chama mais a atenção da Teoria da História de Khaldun é o senso de que ela é
feita de ciclos nos quais um império nasce, se desenvolve e decai até ser conquistado
por outros ou esfacelado por tribos diversas. Sete séculos depois Toynbee e Kennedy
farão praticamente a mesma análise que ele fez. Mas o grande diferencial não está só
nesta análise, mas sobretudo ao fato dele não estabelecer nenhum juízo de valor sobre
este ciclo.
Khaldun não diz que a fase na qual os conquistadores sào ainda bárbaros nômades é
superior ou inferior à fase na qual são conquistadores sedentarizados e envoltos em um
ambiente de luxo, riqueza e cultura. Simplesmente observa que este seria um processo
inevitável e como tal as duas fases são indispensáveis.
Muitos comentadores de Khaldun quiseram ver na sua teoria da asabyya - forte espírito de
corpo tribal que daria aos nômades a força para conquistar impérios - um enaltecimento
destes nômades. Alguns chegaram mesmo a ver uma certa dose de racismo ou pelo menos de
algum desprezo nietzchiano pela civilização e suas regras que envileceriam o homem.
Mas um leitor mais atento logo vê que ele destaca que as grandes realizações culturais,
a alta cultura, o conhecimento mais elevado, só pode ser obtido nas civilizações
sedentárias. E Khaldun conhecia bem esta alta cultura, herdada dos antepassados
andaluzes, que lhe granjeou tanto o respeito como a inveja pelas cortes mediterrâneas.
Mesmo assim, não deixou de considerar que aquele mundo no qual ele era importante estava
condenado a desaparecer, para depois ressurgir sobre nova forma.