Alexandre Gomes
Há uma ruptura violenta entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, a
despeito de se falar tanto hoje em ciência, progresso tecnológico e coisas do tipo. O
senso comum é incapaz de perceber a verdadeira essência das coisas e, sobretudo, de
perceber que a aparente ordem que se vê no cotidiano é simplesmente uma arbitrariedade
estabelecida como uma convenção implícita em todo o processo de socialização e
educação.
Paredes não são objetos sólidos, embora estejamos acostumados a vê-la como tal, afinal
há nela mais vácuo entre de dentro dos átomos do que matéria propriamente dita. A
linguagem, em particular, é sobretudo um conjunto de símbolos arbitrários que nos
parecem naturais, óbvios até, porque fomos acostumados a associar símbolos arbitrários
a noções concretas.
O batido, mas excelente, exemplo do número de matizes que os esquimós enxergam no branco
é uma ótima demonstração desta arbitrariedade, assim como o número de cores do
arco-irís, que são 7 para nós mas variam de um a 12 em outras culturas.
Ao mesmo tempo há outro elemento complicador destes processos, já que se o senso comum
pode ser tomado como quase concreto, desnecessária maiores demonstração, a ciência tem
de conformar-se com modelos teóricos para explicar o mundo. Àquilo que parece ser
evidência a ciência tenta explicar com uma suposição abstrata.
Parece ser evidente que a popularizaçõa de conceitos científicos, a crescente
importância da tecnologia na vida do cidadào comum e o acesso às mais variadas fontes
de comunicação diminuiria esta distância. Mas, de fato, parece que só tem aumentaod o
cientificismo - isto é, a ciência rebaixada ao nível de superstiçõa quando chega ao
nível do homem comum.
O brilhante livro de Alan Sokal - Imposturas Intelectuais - baseado em um
"trote" passado por ele numa revista científica - para maiores detalhes cheque
os links: http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/ transgress_v2/
transgress_v2_singlefile.html e http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/ folha.html (este
último em português) - demonstra como podem ser perniciosos os efeitos deste
cientificismo até mesmo para os cientistas, o que não se dirá para o homem comum.
Sokal fez algo muito parecido com o que eu e o amigo Cirilo Braga fizemos num passado
recente quando inventamos Ivonei Pena. Escreveu um artigo cheio de conceitos aparentemente
inovadores, pretensamente baseados nas últimas fronteiras da ciência, adornado por
expressões que não significam absolutamente nada mas soam bem em um texto acadêmico e o
enviou a uma revista científica. A revista não só o publicou como abriu longo debate
sobre o tema no qual uma série de pretensos cientistas e filósofos tomaram parte com
furor.
Assim como Ivonei Pena questionava se a "globalização era realmente globalizante ou
apenas globalizadora", Sokal - no seu artigo-paródia - afirmava: "Em nenhum
lugar esse movimento pode ser identificado mais claramente do que na teoria quântica da
gravitação. Pesquisas recentes nessa área, alimentadas pela metacrítica do
desconstrutivismo, têm liberado a investigação científica de seus velhos pressupostos
objetivistas e, em consequência, trazido a física para uma crescente harmonização com
as humanidades. Tão íntima é essa aproximação que, por exemplo, as teorias
psicanalíticas de Jacques Lacan encontram confirmação em investigações realizadas no
terreno da teoria quântica de campos. E é sintomático observar a dívida da nova
física para com o trabalho de pensadores desconstrutivistas, como é exemplo
paradigmático a teoria da estrutura e dos signos no discurso científico, de
Derrida."
O grande perigo deste cientificismo é seu potencial para transformar-se em um substituto
das velhas máquinas de coerção ideológica, já que sob uma autoridade usurpada passam
a se tornar elementos legitimadores de uma determinada ordem política, social e
econômica. Neste sentido não há diferença entre ele e as religiões tradicionais, já
que ele exerce a mesma função de elemento estruturante, de forma sob a qual o mundo é
compreendido e explicado e pelo qual o caótico aleph da realidade objetiva torna-se um
todo ordenado e separa-se o arbitrário do organizado.
Se há um certo caráter transcendente nas religiões que permitem que elas tenham um
certo caráter libertador e revolucionário - ao menos em alguns momentos -, que seja,
enfim, um contrato social regendo e organizando as sociedades, gerando um grau mesmo que
mínimo de solidariedade e propiciando certo conforto - mesmo que apenas espiritual - o
cientificismo é de uma lógica brutal, individualista e determinista ao extremo.
O tipo de sociedade que pode brotar da dominação ideológica do cientificismo é, na
melhor das hipóteses, aquele estado totalitário e desumano pregado por Platão. Um
Estado no qual a massa deve obedecer cegamente a determinação dos seus
guardiães-filósofos - idéia por sinal muito simpática a tantos cientistas - e na qual
não há espaço nem para a solidariedade e muito menos para a compaixão.
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