"Ao observar seus rostos em prantos, devastados, ao fitar esses olhos desvairados,
esgazeados e súplices, revelou-se a mim toda a miséria da Pérsia, almas em farrapos
assediadas por lutos infinitos" (Amin Maalouf, Samarcanda)
O atual radicalismo islâmico que diariamente enche as telas do noticiário internacional
é em grande parte fruto de uma reação a um movimento contrário iniciado décadas
antes, no qual uma elite culta, diplomada por universidades européias, tentava apagar ou
reconstruir a velha tradição oriental pela adoção de valores de estilo ocidental.
Os episódios mais conhecidos desta luta entre reformistas e tradicionalistas estão no
meio político como a Revolução Iraniana de 79, ainda que a mídia pouco se ocupe dos
casos nos quais os reformistas ocidentalizantes produziram regimes monstruosos como o a
Síria, do Iraque e da Turquia.
Mas esta luta também se trava no campo da cultura, em especial da literatura, na qual os
"ocidentalizantes" em geral vem obtendo maiores êxitos. Alguns deles, mais
radicais, pregam praticamente a assimilação cultural ao ocidente, outros defendem uma
integração que se tornou conhecida como a postura do "melhor dos dois mundos".
É difícil saber quantos deste último grupo eram realmente sinceros e quanto não eram
mais que pontas de lança do imperialismo cultural, até porque por controlar muitos dos
meios de divulgação o Ocidente Imperial geralmente fazia com que personalidades sinceras
na busca do "melhor dos dois mundos" - como fala um poeta paquistânes desse
período agitado - transformassem-se em ideólogos da submissào cultural.
O acirramento do conflito político-econômico gerou o que se convencionou chamar -
erroneamente, creio eu - de fundamentalismo islâmicos e uma multidão de intelectuais
sinceros acabou sendo colocada no mesmo cesto dos lacaios do Império Ocidental. Um
exemplo significativo é o do escritor egípcio Nagib Mahfuz, vítima de um atentado de
radicais porque ousava falar da mesma dúvida que Al-Ghazali falava na Idade Média,
daquela dúvida que dialecticamente gera a fé.
É neste contexto que deve ser examinada a obra dúbia de Amin Maalouf,
escritor-historiador franco-libanês. O olhar de Maalouf sobre o Oriente é um olhar
tipicamente ocidental, os defeitos que ele vê sào os defeitos que um ocidental veria, as
virtudes que ele enxerga sào aquelas que um ocidental sensível veria. Como um ocidental
ele vê um exotismo no Oriente demonstrando todas as sinuosidades e segundas intenções
do discurso orientalista - brilhantemente desnudado pelo crítico literário
palestino-americano Edward Said.
Este olhar viciado não tolhe seu talento para contar histórias e realizar uma mescla
suprema e agradável de história e literatura - como em Samarcanda ou na biografia
romanceada de Leão, o Africano - porque a distorção pdoe ser medida, pesada, corrigida
por um olhar crítico.
O problema é queMaalouf tenta se apresentar como um oriental, intenção transparente no
título de seu livro mais conhecido no Brasil - "As Cruzadas vistas pelos
Árabes" - e aí o que antes era uma visão equivocada passa a ser um visào
deturpada, um desonestidade intelectual.
Um exame mais detalhado do "Cruzadas" demonstra que ao contrário do que o
título sugere ele utilizou muito mais fotnes ocidentais - em especial o monumental
calhamaço "História das Cruzas" de Joseph François Michaud e as fontes
primárias registradas por este mesmo autor - do que em fontes árabes.
Isto até seria natural porque as Cruzadas foram muito mais um acontecimento ocidental do
que oriental e com exceção das áreas diretamente englobadas no Teatro de OperaçÕes
das Cruzadas, pouco impacto elas tiveram na historiografia islâmica.
O problema todo é que a partir de uma visão que pinta os europeus como bárbaros
incultos e os muçulmanos como homens refinados - o que é em grande parte um exagero -
Maalouf chega a conclusões inusitadas para tentar explicar porque o fracasso dos europeus
marcou a ascensão da Civilização Ocidental e a vitória dos estados muçulmanos o ocaso
da Cultura Islâmica.
Aqui há um grande contrabando ideológico - do mesmo tuipo desmascarado por Said - que
tenta atribuir este processo à superioridade das instituições ocidentais e à relação
contratual existente na servidão, o que é no mínimo um disparate.
Ele chega mesmo a atribuir os sucessivos fracassos da resistência muçulmana ao caos
dinásticos que seria evitado no ocidente através da primogenitura, o que representa
ignorar todo o processo histórico por detrás disto.
O contrabando ideológico é ainda mais grave em Samarcanda. As duas primeiras partes do
livro são excelentes. Localizadas no período medieval a primeira tenta fazer uma
biografia romanceada de Omar Khayyan e de dois de seus contemporâneos mais famosos, o
competente Nizam Al-Mulk - vizir persa dos sultÕes turcos que dominavam o califado - e
Hassan Al-Sabbah - talentoso jovem que um dia se tornaria o legendário Velho da Montanha,
comandante da igualemnte legendária Ordem dos Assassinos. É à esta ordem que Maalouf
dedica a segunda parte do livro, pura ficção mas que ele tenta dar ares de realidade.
As duas partes seguintes, situadas na Pérsia do início deste século, mesclam ficção e
realidade em doses preocupantes. Curiosamente o livro se torna extremamente atual nestes
tempos de nova rebelião estudantil no Irã, porque o conflito entre a facção
conservadora e a progressista é exatamente o mesmo que hoje assola aquele país.
E curiosamente Maalouf comete os mesmos erros de análise que o noticiário comete hoje em
dia, demosntrando que nenhum dos depois foi capaz de realmente compreender o conflito, nem
a sociedade iraniana ao imaginar que o que se trava lá é uma luta entre pró-ocidentais
e pró-orientais, entre religião e laicismo.