Neste atual período de extrema descrença e materialismo é relativamente natural que
acabe por ganhar espaço mesmo no senso-comum a noção de que a religião é um
instrumento de dominação da população. O sentimento expresso na frase célebre de Marx
- "A religião é o ópio do povo", parafraseada de forma sagaz por Raymond Aron
que proclamou que o "marxismo é o ópio dos intelectuais" - é tomada como uma
verdade absoluta em meios cada vez mais diversos.
É natural que Marx proclamasse isto, afinal jamais poderia de pensar segundo um homem da
sua época na qual se glorificava a supremacia da ciência e do governo secular.
Praticamente não houve autor contemporâneo a Marx que não compartilhasse da sua mesma
visão e o velho filósofo foi, de certa forma, vítima da mesma visão ideológica que
tanto condenava.
Como já foi dito antes, a opção secularista era uma peça fundamental de justificação
ideológica do colonialismo. Embora não utilize o conceito de ideologia, Edward Saïd
desmascara de forma minuciosa o discurso orientalista do período no qual este secularismo
era peça fundamental.
Na Idade Moderna a Europa legitimava sua agressão ao resto do mundo a partir do
"alargamento" das fronteiras da cristandade, pelo desejo misericordioso e
humanitário de levar às nações "bárbaras" o conhecimento da palavra de
Deus.
A segunda onda colonial, posterior à Revolução Industrial, irá se legitimar pelo
alargamento das fronteiras da Razão e da Ciência, pelo desejo tão misericordioso e
humanitário de libertar os "povos primitivos" das suas superstições,
crendices e estruturas sociais antiquadas e arcaicas.
A nova onda colonial, auto-entitulada globalização, tenta se legitimar não só pelos
motivos anteriores, mas também pelo desejo igualmente misericordioso e humanitário, de
libertar o mundo das estreitas limitações das suas economias primitivas, libertar o
homem do terceiro mundo das suas instituições políticas conservadoras e de seus valores
comunitários ultrapassados.
Marx, involuntariamente, acaba por ser uma peça deste processo de legitimação da
aventura colonial tanto como Bartolomeu de Las Casas involuntariamente acaba por legitimar
a escravidão negra ao tentar evitar a escravização do indígena. Por mais que Marx
tenha auto-proclamado seu conhecimento livre da ideologia - o que permitiu aos
intelectuais marxistas um alto grau de panfletarismo nos textos que deviam ser acadêmicos
- fica claro que também ele era "contaminado" - e muito - pela ideologia do seu
tempo.
Saïd é brilhante em seu já citado estudo sobre o Orientalismo (Companhia das Letras,
1990, 370 páginas) porém ele utiliza um referencial teórico baseado na noção de
Discurso de Foucault que privilegia esta distorção orientalista mais como uma coerção
- tanto criadora como inibidora - que considera o discurso orientalista como o único
possível. Parece evidente, contudo, que para além deste poder coercitivo do discurso
existe uma noção ideológico fortemente implantada através de todas as instituições
que se refletem numa forma particular de ver o mundo do qual o ocidental não poderia se
furtar porque não tem cosnciência dela.
Ao contrário de Marx, parte-se neste artigo do pressuposto que não é o imperialismo
econômico que exige um discurso legitimador - embora este exista em um momento posterior
de interação entre as idéias e as relaçÕes sociais, econômicas e políticas.
Defende-se aqui, num raciocínio similiar ao de Weber em "A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo" e "Psicologia Social das Religiões Mundiais",
que a mentalidade "ocidental" impulsiona a opção imperialista e, encontrando
ambiente propício, passa a se expandir e acaba sendo consolidada como uma doutrina.
O raciocínio parece inusitado, mas examine-se as mais diversas culturas do mundo e se
verá em todas elas um forte componente etnocêntrico. Jamais houve uma cultura que não
se considerasse o centro do universo e a "raça" mais importante. No ocidente
esta noção evoluiu ao longo dos séculos para uma visão que disfarça em graus e
matizes diferenciados o conhecimento eurocêntrico em universal, com todas as
consequências políticas, sociais e econômicas deste fato.
A "Globalização" é apenas um momento extremo deste processo de
racionalização do etnocentrismo. Em essência não é um mecanismo distinto do que faz
os esquimós se chamarem de "inuits"(homens) e atribuirem a outros nomes
pejorativos; processo similar ao encontrado em qualquer outra cultura.
É evidente que esta visão de mundo que considera as instituiçÕes ocidentais como
superiores - mais racionais, mais científicas, mais sagradas, mais verdadeiras ou coisa
do tipo - é um excelente discurso para racionalizar a dominação - em especial quando
absorvido e aceito pelos dominados - porém é preciso ver que este discurso pré-existe
aos impérios.
Ou seja, o fato deles se expandirem no vácuo de uma expansão imperial, na qual ele se
torna importante, ele não depende de uma expansão imperial para existir. Como já foi
dito, ele está presente em todas as culturas em conceito e está profundamente enraizado
na cultura ocidental, a ponto de já ser contestado por alguns sofistas que começam a
criticar o discurso racista grego.