Mencionei há poucos dias que um dos poucos autores norte-americanos dos quais gostava era
Steinbeck, ainda que com algumas restrições, porque há diversos Steinbecks e não é
fácil supor que o mesmo autor de "Ratos e Homens" "Vinhas da Ira"
seja o autor de "Doce Quinta-Feira".
As "Vinhas da Ira", em especial, sempre me impressionou pela violenta crítica
social de um lado, pelo experimentalismo formal de outro e principalmente por encontrar no
livro tanta semelhança com a situação brasileira, embora descreva cenas americanas.
Quando li o livro pela primeira vez ainda não se falava do MST, embora o movimento já
devesse existir já que está completando 20 anos. Mas as descrições que Steinbeck fez
em 1939 dos acampamentos de agricultores migrantes que iam do meio-oeste - onde os bancos
produziram multidões de Sem-terra - até a Califórnia, certamente também descreveriam
com perfeição um acampamento do MST.
Quando li de imediato estabeleci a semelhança entre a saga dos Okies - nome pejorativo
pelo qual os migrantes eram chamados, fossem de Oklhoma ou de outro estado do Meio-oeste -
e a dos migrantes nordestinos.
Há até mesmo uma passagem curiosamente similar ao brasileiríssimo O Quinze de Rachel de
Queiroz, no qual um dos migrantes faz o percurso de volta alertando os migrantes que o
paraíso prometido não existe, mas não consegue ser ouvido porque todos o imaginam como
um vagabundo.
O enredo básico da história narra a jornada dos Joad, agricultores falidos de Oklahoma
que depois de perder as terras iniciam uma longa jornada até a Califórnia, pintada como
uma terra de prosperidade aonde um homem que não tema o trabalho é capaz de ganahr altos
salários na colheita de frutas e, se souber poupar, até conseguir ter sua prórpia
terra.
Como eles milhares de oturos agricultores falidos buscam o oeste cruzando estradas sem fim
e desertos terríveis em velhos calhambeques. O autor alterna três histórias que se
sucedem em capítulos, como se houvesse três livros em um único, recurso experimental
que já havia sido usado no Admirável Mundo Novo e no ultra-experimental 1919 de John dos
Passos.
O primeiro capítulo de cada três fala da Família Joad, o segundo faz quase que um
ensaio teórico sobre o tema abordado no capítulo anterior e o terceiro conta a mesma
história com personagens anônimos, demonstrando que os Joads eram apenas um caso.
A festejada versão para o cinema, que se tornou um clássico, é muito inferior ao
original não só por abreviar significativamente a história - quase que só falando da
viagem em si - como por perder este caráter tripartite do livro.
Steinbeck não se limita a descrever a viagem, fala da gestaçõa de um mundo próprio que
aos poucos vai criando suas leis. Fala de um mundo onde a miséria não afastou a
dignidade e ainda fez brotar a solidariedade extrema. Solidariedade, por sinal, é a
grande mensagem do livro, por mais sombrias que sejam as cenas descritas nelas acaba por
estar configurada a esperança, e é a solidariedade que dá esta esperança.
Difícil imaginar um livro tão anti-americano quanto "Vinhas da Ira", um livro
que retrata a miséria, denuncia com violência a exploração, fala da esperança na
união da coletividade ao invés de exaltar o individualismo. Certamente há mais do que
se apelidou de realismo socialista em Steinbeck do que em duas dúzias dos escritores
soviéticos da mesma época para os quais realismo socialista era louvar Stalin e a nova
sociedade inspirada por ele.
Curioso é que Steinbeck jamais foi demonificado nos Estados Unidos, "Vinhas da
Ira" não só ganhou prêmios, como o Politzer, como foi um sucesso de público e um
ano depois de lançado já era transposto para o cinema não por algum diretor
experimental, mas pelo consagrado John Ford.
Algum contemporâneo dele que ousasse ser tão anti-soviético quanto ele foi
anti-americano dificilmente sobreviveria no Império de Stalin. Mais do que fazer uma
crítica social o autor demole os pressupostos da ideologia americana, ainda hoje tão
arraigados, coisa que seria inadmissível naquela que se dizia a pátria do Realismo
Socialista, onde rpedominavam os romances burocráticos.