"A mente oriental abomina a precisão, (...) o europeu é um raciocinador conciso
(...), ele é um lógico natural mesmo que Não tenha estudado lógica" (Cromer,
Modern Egipt; citado por Edward Saïd em Orientalismo)
Alexandre Gomes
Impossível falar no Oriente Médio sem que venha à mente as imagens de terroristas
fanáticos, mulheres veladas, religiosidade exacerbada. Estas imagens logo evocam outras
mais abstratas, como a do fedain se matando em um ataque suicida na esperança de
alcançar o paraíso nos braços das huris em meio a rios de vinho. Assim como é
impossível também nào imaginar ditaduras sanguinárias oprimindo o povo com base em um
discurso que se utiliza da religião para fins políticos, quando não econômicos.
Pouco importa se as imagens são verdadeiras, o importante é o contraste, não só para
justificar a intervenção imperial lá - explicitada sem margem de dúvida por Saïd -
mas também para justificar, racionalizar a sociedade daqui - abordagem que parece ser
original.
O contraponto do fedain é sempre o jovem promissor e alegre do ocidente, jamais o
delinquente juvenil que vive por um fio para obter os produtos da última moda ou o
playboy que perde a vida em um "racha", ou os dois quando morrem de overdose.
O contraponto da mulher velada é sempre a mulher independente e bem colocada, jamais
aquela mulher obrigada a entrar no mercado de trabalho para que a família não morra de
fome, submetida a dupla ou tripla jornada de trabalho, nem a mulher miserável abandonada
pelo marido que habita as periferias.
O contraponto da imagem do líder sanguinário e corrupto é a "racionalidade
intríseca" das instituições ocidentais, jamais a corrupção política e eleitoral
que se vê em toda parte, ou o tecnoburocratismo frio e lento que prefere ver números ao
invés de pessoas.
O contraponto do fanatismo é sempre o apego do ocidental à Ciência e à Razão, jamais
o gélido individualismo e materialismo que congela a solidariedade e os valores
humanitários em prol de um consumismo sem sentido ou ética.
Imaginar que tal situação no "Ocidente" justifica a do "Oriente"
seria, é evidente, aceitar o mesmo erro argumentativo do Orientalismo, seria, digamos,
contruir um Ocidentalismo, uma visão enviesada com sinal trocado. Igualmente seria
construir uma visão "ocidentalista" imaginar que tudo que vem do Ocidente é
por natureza pérfido e mau.
É evidente que este "Ocidentalismo" nào tem a força nem a estrtura da
máquina orientalista descrita pro Saïd. O primeiro é, de certa forma, um outro
subproduto do último, que se demosntra tão eficiente a ponto de pautar o diálogo entre
os dois.
Contudo o debate nas "fronteiras ensaguentadas do Islam" - como descreveu um
autor - tem sido de lado a lado marcado por Ocidentalismos e Orientalismos. Grande parte
da propaganda islâmica dirigida não só ao "ocidente", mas ao próprio
"oriente", bate-se na superioridade e sabedoria das intituições
"orientais", quando não se limita a apenas responder de forma defensiva às
críticas orientalistas, deixando portanto que esta ideologia do ocidente estabeleça a
agenda da discussão.
Paradoxalmente, é em um dos países apontados mais frequentemente como símbolo desta
mentalidade "oriental", o Irã, que vai se encontrar um debate de tipo novo.
Para começar a discussão é importante destacar o caráter inovador da República
Islâmica do Irã, tomada como tipo ideal de regime "fundamentalista" na,
pasmem, incorporação de instituições ocidentais.
E estas idéias eram mais do que novas. A teoria que permitiu harmonizar a ideologia
islâmica com um governo representativo tripartite de tipo ocidental, o Velyet-e Faqih
(Domínio do Jurista) foram divulgadas por Khomeini entre 69 e 70 numa série de palestras
durante seu exílio no Iraque.
Em um trabalho de natureza teórica ainda muito pouco explorado Khomeini
"reconstruiu" as instituições ocidentais sob uma ótica muçulmana e xiíta.
Os três poderes de Montesquieu foram submetidos pela teoria de Khomeini à vigilância e
orientação de um jurista muçulmano cujas qualidades sejam amplamente aceitas ou, na
ausência deste, por uma comissão de juristas. Da mesma forma criou-se um Conselho de
Vigilância que controla os poderes , por exemplo, exige certas qualidades morais de quem
pretenda disputar um cargo eletivo.
Não se pretende discutir aqui se este sistema é bom ou ruim, é democrático ou não,
mas sim frisar a sua importância como elemento de coesão nacional durante o processo
revolucionário. Um dos grandes efeitos deste sistema foi o de unir um país partido em
duas partes, uns desejando um país com instituições ocidentais e outro desejando um
país no qual as tradições religiosas fossem respeitadas.
O sangrento debate em torno deste tema já tinha mais de um século quando a Revolução
eclodiu. Khomeini conseguiu a quase unanimidade - da esquerda reformista à direita
religiosa - justamente proque conseguia harmonizar projetos diferentes de país em uma
propsota cujos valores e princípios eram aceitáveis por quase todas as partes. O impasse
entre os diversos grupos políticos, sociais, econômicos e religiosos passava a poder ser
resolvido dentro da esfera institucional.
Evidente que este debate institucional não poderia ser desenvolvido nos turbulentos anos
pós-revolução, com intensa luta entre tantas facções degenerando, geralmente, em
conflitos armados, expurgos, radicalização ideológica. Contudo a instituição
sobreviveu a Khomeini, mesmo que a um altíssimo custo em vidas comum a qualquer
revolução.