Marx falou em sua obra da fetichismo da mercadoria, processo pelo qual o valor de uso de
um determinado produto era suplantado pelo seu valor de troca, com a consequente
percepção do mesmo apenas como uma "mercadoria" na qual era impossível; que o
homem reconhecesse o seu trabalho. A despeito de inúmeros pecados do qual o marxismo - e
não Marx - são culpados nas ciências humanas, este conceito da fetichização é
certamente um dos mais úteis para se compreender a realidade do mundo pós-moderno,
apropriadamente chamado de sociedade de consumo.
Este conceito de transformação em mercadoria "fetichizada" operou resultados
fantásticos quando manuseado pelas mãos cuidadosas dos estudiosos da Escola de Frankfurt
- em especial Adorno, mas também Benjamim e Horkheimer - gerando outro conceito muito
utilizado - mas pouco compreendido - o de "indústria cultural".
Não é raro se ver o conceito aplicado até mesmo de forma positiva, demonstrando o
desconhecimento de seu verdadeiro sentido. Em essência e muito a grosso modo,
"Indústria Cultural" significa a transformação de bens culturais em meras
mercadorias. Neste processo elas deixam de ser obras de arte destinadas à apreciação do
público para se transformarem em produtos de consumo.
Adorno é especialmente radical e pessimista quanto a este processo que na visão dele
destrói o valor cultural dos produtos e aliena o homem do prazer da arte. Para ele este
processo de mercantilização dos bens culturais é um esforço do sistema para se
apropriar inclusive do tempo de lazer e ócio do trabalhador, alienando-o de si mesmo e da
humanidade não só durante o tempo de trabalho.
Ao mesmo tempo a Indústria Cultural esforça-se para transformar toda a obra cultural em
algo o mais palatável possível e com isto nivela por baixo toda a produção cultural,
como ele defende por exemplo, no ensaio "O fetichismo na música e a regressão da
audição".
O conceito de fetichização dos bens culturais, tal como é desenvolvido em Adorno,
talvez forneça uma pista importante para se compreender também outros aspectos da
sociedade pós-moderna. Até que ponto Não é possível falar, por exemplo, de uma
fetichização da fé, transformando a salvação em mera mercadoria e a apreciação das
palavras reveladas como um setor específico da indústria de espetáculos?
Consumiria-se pregações assim como se consome a música da moda na FM, não pelo valor
intríseco da mensagem, pelo prazer e reflexão que ela proporcionaria, mas da mesma forma
como se consome um iogurte ou se veste uma roupa de grife.
O espaço mal delimitado entre o sagrado e o profano - distinção essencial e comum a
todas as religiões - deixa de ter qualquer sentido prático nesta "Indústria
Hierática" e passa até a ser visto de forma simpática a adoção de práticas
antes consideradas profanas - como a adoção de estratégias de marketing - em
substituição às práticas rituais tradicionais.
Nesta religião mercantil o conteúdo da mensagem em si deixa de ser importante,
transformando-se em ponto secundário como determinante da fé. Em seu lugar passa a
ocupar o centro de todo o processo apenas o aspecto da eficiência dos meios para se
comunicar com os fiéis - medido nòa mais em termos de adequação ao seu conteúdo
religioso, mas sim na quantidade de fiéis que é capaz de atingir.
Evidente que este não é um processo pacífico. Ele provoca reações mesmo quando o
fenômeno desta mercantilização não é percebido em sua concretude e totalidade pelas
lideranças religiosas. De um lado ele provoca a onda de fundamentalismos que invade as
mais diversas fés, que para se opor à dissolução de conteúdo das fés mercantilizadas
aferram-se à letra da Revelação.
Curiosamente este tipo de reação acaba também por ser mercantilizado e Não é estranho
que os tele-evangelistas americanos - pioneiros deste processo de mercantilização -
sejam em geral fundamentalistas. Contudo é preciso ver que a mercantilização aqui se
refere mais à adoção de uma visão competitiva e destituida de conteúdo do que ao
simples uso da religião como uma fonte de renda de proporções industriais.
Esta última é apenas um momento extremo, talvez uma consequência, de um outro processo
muito mais sutil que aos poucos anula as diferenças entre uma religião e um ramo
específico da indústria de entretenimento. O resultado do processo, que é o que
interessa aqui, é a perda de sentido religioso de se frequentar algum culto.
Os chamados "fundamentalismos" centram grande parte do furor de seu coro ao
imperialismo e à globalização demonstrando que mesmo sem ter este conhecimento completo
do fenômeno da mercantilização, são capazes de identificar em algum grau a
correlação entre a interpenetração cultural que a globalização traz de contrabando e
esta dissolução dos valores religiosos.
Outros meios de resistência a este processo, como o desenvolvimento de uma crença
religiosa que enfatiza mais a prática cotidiana das mensagens religiosas, encontram-se em
uma situação inusitada de não atenderem às necessidades religiosas das suas
comunidades. E mesmo este fato acaba por ser utilizado como argumento em prol da religião
mercantilizada.
Cria-se então um sistema de valores tipicamente capitalista no qual a verdade religiosa
passa a ser medida em função do número de fiéis que ela é capaz de mobilizar e não
por seu conteúdo intríseco. A oposição recente entre o padre pop-star reunindo
multidões enquanto igrejas de tipo tradicional ou com sacerdotes ligados à Teologia da
Libertação vazias é bastante elucidativa a este respeito.
Mas este fenômeno não é de forma alguma exclusivamente católico, ou mesmo cristão.
Denominações protestantes mais tradicionais são dadas como "ultrapassadas"
por nem de perto chegarem aos inflados números obtidos pelas novas seitas que utilizam em
larga escala são recursos modernos de propaganda e marketing para vender o seu peixe. Nem
mesmo o ascético budismo escapa deste processo, como fica claro ao se ver o Dalai-lama
posando de garoto propaganda de idéias um tanto quanto alheias ao budismo e se tornando
de líder religioso em mais um ícone da sociedade de consumo.
Esta salvação-mercadoria é preocupante não só porque esvazia de conteúdo mensagens
religiosas que atendem a uma necessidade social, mas também, e sobretudo, porque leva no
extremo às diversas fés a uma postura de enfrentamento e colisão, a um comportamnto
similar ao da concorrência acirrada de companhias que lutam sem limites para obter mais
consumidores. Esta noção acaba por tornar impossível qualquer perspectiva de
entendimento futuro.