"Não, definitivamente a religião não é uma simples 'secreção' da vida em
sociedade. Porventura não existe na alma humana, seja qual for a estrutura do grupo
social, uma necessidade de elevação, uma aspiração à transcendência, tão bem
expressa pela noção do sagrado, e que a vida em sociedade não é suficiente para
explicar?" (Armand Cuvillier, Sociologia da Cultura)
Em conferência realizada pela Sociedade Brasileira de Sociologia em 1997, na UNB, o
sociólogo Antônio Flávio Pierucci, da USP, avaliou como fracassados os esforços da
Sociologia da Religião se consolidar como disciplina acadêmica. Diz ele: "No apelo
à factualidade empírica da revanche de Deus, que identificam na nova visibilidade
pública da efervescência das culturas e subculturas religiosas, aplaudem o alegado
retorno do sagrado como se representasse o fim do processo de secularização. Uma
profecia a mais, das clássicas, a não se cumprir".
Embora justa no sentido apresentado por ele - que enxerga o evidente comprometimento, no
sentido afetivo-emocional, dos próprios pesquisadores com o tema - a observação parece
ignorar o caráter ainda nascente de uma Sociologia da Religião. É preciso notar que
todo o aparato teórico e metodológico utilizado para estudar o fenômeno social de base
religiosa sofre de alguns problemas sérios, dentre os quais se destaca a indefinição
dos conceitos e o caráter dependente que todos os modelos clássicos atribuem a esfera do
religioso.
A primeira carência de conceito se revela na própria definição do que seria religião.
A necessidade de se pensar um conceito tão abstrato a ponto de poder ser utilizado sem
muitas ressalvas, fale-se do totemismo aborígene ou da altamente hierarquizada Igreja
Católica, é um desafio que ainda não está superado. As definições em geral vinculam
o conceito de religião a uma fenômeno que determina o que é sagrado e o que é profano.
Mas ao fazerem isto acabam por simplesmente empurrar o problema à frente, pois passa a
ser necessário definir o que seria o sagrado. Qualquer definição que defina religião
em função do sagrado - e praticamente todas as definições clássicas o fazem - acaba
sendo contaminada por uma certa tautologia remetendo o leitor a ficar preso em um círculo
vicioso do qual dificilmente ele pode escapar.
Talvez o motivo do equívoco apontado por Pierucci nos sociólogos da religião se deva
não tanto ao comprometimento dos mesmos como "revanchistas de Deus", mas muito
mais devido à imprecisão dos conceitos que levam muitos a considerar as manifestações
religiosas visíveis - o aumento do público nos cultos, a ampliação de publicações e
produtos religiosos, o desenvolvimento dos fundamentalismos - como um Ressurgimento
religioso.
Parece evidente que uma definição suficiente de Religião deveria ser capaz de englobar
não só as religiões propriamente ditas, mas também as tendências secularistas, o
ateísmo e mesmo aquilo que Garaudy chamou de cientificismo. Isto porque de certa forma
estas visões de mundo tem um elevado grau de correspondência com os fenômenos
religiosos, dialogam com eles e de certa forma pretendem substitui-los. Se tomando, apesar
das limitações mencionadas, a noção da religião como definidora do que é sagrado ou
profano, há igualmente no secularismo uma definição do espaço e tempo do sagrado.
Ao mesmo tempo parece ser inevitável desdobrar o que se vem tentado definir como
religião em múltiplos conceitos. Parece evidente que, por mais que sejam termos
relacionados numa mesma equação, existe uma distinção fundamental entre Religião e
religiosidade, entre Religião e Igreja Institucionalizada, entre Religião e Fé. Todas
as teorias clássicas tentam fundir todos estes conceitos e criar um sistema que os
harmonize e parecem ter falhado.
Bordieu demonstrou como apesar do papel paradigmático do modelo Weberiano contribuir
muito para elucidar o fenômeno religioso não é capaz de formar um todo coerente e
precisa apelar a conceitos obscuros e mal definidos como o carisma. Mas igualmente
Durkheim e Mauss parecem ter de recorrer a conceitos mal definidos - e de certa forma
tautológicos - para tentar explicar o fenômeno religioso, com a noção de
"crença".
Marx, seguindo a tradição da filosofia clássica alemã, a despeito do seu "a
religiõa é o ópio do povo" (ironizado por Aron que disse ser o marxismo "o
ópio dos intelectuais") contribui de forma significativa - e pouco percebida - para
a definição do termo ao entender a religião como uma visão de mundo, uma cosmovisão.
Bordieu retoma a idéia no seu "Economia das trocas simbólicas" dando à
religião a característica de uma estrutura estruturante, ou seja, uma estrutura social
que contribui para a definição das outras estruturas. É uma tentativa de harmonizar os
conceitos dos três autores cláasicos e contribuições posteriores simultaneamente
retirando a noção de coerção social de Durkheim - transformada em coerção hierática
- a noção de monopólio hierático e banalização do sagrado institucionalizado em
Igreja de Weber e a noção de religião como ideologia, como forma de organizar os dados
da realidade sensível de Marx.
Escapa a este sistema qualquer maior autonomia do fenômeno religioso em relação ao
conjunto do social. É evidente que existe uma interação entre o religioso, o social, o
econômico e o político que é inegável, mas, à exceção de Weber o conteúdo próprio
de uma doutrina não teria vida própria para nenhum dos outros teóricos. Mas mesmo para
Weber o papel da religião é sempre dependente do social, já que ele vê o social como
"selecionador" das idéias religiosas.
Aqui é preciso aplicar as teorias a si mesmas, "mobilizar contra a ciência que se
faz a ciência já feita" como defende Bordieu, para verificar que como produtos de
um determinado período histórico nenhum dos três autores seria capaz de produzir uma
teoria do fenômeno religioso capaz de dar a ela uma certa autonomia e, principalmente,
dar à esfera religiosa qualquer papel ativo e primordial em qualquer fenômeno religioso.
A noção de uma certa "impostura" ou ao menos de "legitimadora" da
religião que é paradoxalmente consensual nos três autores é típica do pensamento
europeu ocidental no período histórico no qual os três viveram. E esta noção continua
predominante até mesmo nas recentes gerações de sociólogos da religião - ou
sociólogos religiosos como diz Pierucci - ainda que com sinal trocado.