"Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que também ele era uma
aparência, que outro o estava sonhando" (Borges, As Ruínas Circulares)
Não há nada tão intrigante na misteriosa filosofia de Platão do que a Alegoria da
Caverna. Base de filosofias contrapostas, centro de teologias e místicas, tanto
heréticas quanto ortodoxas. Esta multiplicidade de significados simbolizados por um
único mito revelam as múltiplas emanações do pensamento platônico através dos tempos
e das culturas.
Correndo o risco de ser prolixo - já que é razoável supor que os poucos a se
aventurarem a ler estas páginas conhecem Platão - tento resumir a alegoria. Alguns
homens passam toda a vida em uma caverna, presos de tal forma que, voltados para o seu
fundo, não podem ver o exterior da caverna, mas apenas as sombras dos seres que passam
pela entrada. Acostumados a esta visão, tomam as sombras pelos seres reais, vivem e
pensam em um mundo no qual as sombras é que sõa reais. Um deles se liberta e sai da
caverna, enxergando pela primeira vez a realidade e volta para contar a verdade aos seus
companheiros que, tomando-o por mistificador, o matam.
A multiplicidade de significados é aí evidente. É mais ou menos evidente tirar daí uma
noção que o mundo que consideramos real é na verdade ilusório e que a maioria dos
homens não é capaz de enxergar a essência por detrás das aparências das sombras.
Neste sentido Platão está na raiz do tão popular quanto mal definido conceito de
ideologia, alimenta correntes filosóficas tão distintas quanto o idealismo e o marxismo
e até mesmo o frio positivismo.
Também impulsionou as mais variadas correntes religiosas, em especial aquilo que se
convencionou chamar de gnose - raiz de boa parte do pensamento místico contemporâneo -
impulsionada pelo desejo da superação das limitações do conhecimento humano presos na
caverna de sombras que tomamos por reais. Não foi difícil para eles associar a imagem
daquele que traz a verdade vindo de fora da caverna ao de um salvador, vinculando a
salvação ao conhecimento da realidade, sentimento que estimulou tanto a busca da verdade
quanto, nas suas fases de decadência, a pura especulação ociosa e de pouca ou nenhuma
utilidade, passando até mesmo por momentos brutais, como a da seita ismaelita conhecida
no Ocidente como "Ordem dos Assassinos" que se sentia à vontade para eliminar
seus inimigos porque "eles não eram reais".
Mas é outro sentido do pensamento platônico que será abordado, a validade das imagens
que temos do mundo e, em especial, da sociedade. Tal como os homens na caverna de Platào,
nós enxergamos o mundo a partir de sombras, embora tenhamos a ilusão de que estas
sombras são o mundo real. Isto é verdade em um sentido físico na medida que enxergamos
as coisas através da luz que elas refletem e nòa as próprias coisas, como a ciência
já demosntrou; mas é verdade também em um sentido mais profundo, na medida que
atribuímos significados e sentidos ao que vemos não segundo eles próprios, mas em
funçõa dos valores, da visão de mundo, que recebmos através da nossa cultura.
Existe uma organização simbólica na nossa mente que provê sentido para o que vemos e
sentimos e permite que compartilhemos esta interpretação com outros do nosso grupo.
Mesmo de forma inconsciente, sempre há algum grau de interpretação do que se vê, do
que se sente que é inevitavelmente compartilhada com os outros em algum grau. A própria
linguagem é, neste sentido, uma ideologia que molda a realidade segundo um conjunto de
valores e crenças, uma codificação da realidade como as sombras da caverna.
Uma determianda visào de mundo, porém, vai além de simplesmente dar forma à imagem da
realidade que se forma em nossa mente, mas também determina a forma como o próprio
pensamento irá se formar. É por isso que as cosmogonias religiosas podem nos dizer tanto
sobre uma determianda cultura, afinal ao destacar alguns elementos e menosprezar outros,
ao conceber o mundo de tal ou qual forma, doutrina o pensamento para "enxergar"
as coisas que são importantes para uma determinada cultura.
Não deve escapar ao leitor ao fato que esta camada translúcida através da qual
enxergamos a realidade só pode ser eficiente se for invisível, se produzir sombras que
tal como as da Caverna de Platão, forem tomadas como realidade. É um processo que se dá
nos níveis mais profundos da consciência e não um mero "disfarce" da
realidade que pode ser desvelado facilmente como imaginou Marx. Talvez seja por isso que
as várias visões de mundo se julguem, as únicas verdadeiras, afinal as cavernas dos
vizinhos são sempre mais escuras...
A civilização ocidental, talvez mais do que qualquer outra, esforçou-se por passar por
universal e para isto sempre imaginou que a ciência exerceria o papel libertador de
permitir que se enxergue a realidade. Esta suposição acabou por criar uma sombra da
própria ciência, o cientificismo, ou seja a ciência transformada em fetiche e
mistificada a ponto dela própria transformar-se em ideologia.
As Ciências Sociais, mesmos presas a um certo sentimento de inferioridade frente às
chamadas Ciências Exatas (por si só uma noção ideológica) que limita seu poder de
compreensão e análise ao prendê-las a uma concepção newtoniana de ciência, deram uma
contribuição significativa - fruto das mais diversas escolas que infelizmente não
conseguem se entender - para se compreender este véu entre a realidade e nossa
percepção. Mais do que isto, demonstraram a importância social e a inevitablidade deste
obscurecimento da realidade, ainda que só tenham chegado a esta conclusão após
esforços monumentais para desvelar a realidade.
Infelizmente, um dos véus - aquele que faz os cientistas sociais buscarem uma pretensa
isonomia metodológica com as ciências ditas exatas - talvez os impeça de enxergar todo
o potencial da Sociologia do Conhecimento buscando ao invés de neutralizar ou
contrabalançar os limites ideológicos do sujeito, ou mesmo de admitir a impossibilidade
de se enxergar diretamente a realidade, uma modelo ideal de compreensão da realidade que
seja capaz de apreendê-la não através de seus símbolos, mas diretamente. Todos, por
fim, acabam sendo mais ou menos culpados do pecado que atribuem ao positivismo, o de
tentar ver as coisas de fora para vê-las como sõa na realidade, estratégia baseadas em
duas premissas suspeitas: a de que existe um "lado de fora" e a de que é
possível chegar até ele.