"Eu decidi imaginar sob que nova aparência o despotismo poderia voltar a aparecer no
mundo - vejo uma multidão infinda de homens semelhantes e iguais que, sem tréguas,
buscam em torno de si mesmos pequenos prazeres minúsculos, de que enchem a alma. Cada um
de per si, mantendo-se como num refúgio à parte (...) Acima de todos eles eleva-se um
poder imenso e tutelar, que se encarrega de lhes encontrar prazeres e de velar pelo seu
futuro" (Toqueville, Democracia na América)
Ninguém, ou quase ninguém, pode ser contra o progresso, e qualquer luta contra a
modernidade está fadada pela história ao fracasso. Desta constatação verdadeira se
extraem muitos corolários absolutamente falsos, todos eles baseados numa inevitável
supremacia do novo, racionalizada pela crença do homem moderno de que "tudo que é
novo é bom".
A publicidade captou muito bem esta sensação, tanto que rotineiramente tenta nos
empurrar produtos - muitas vezes inúteis - sob o argumento de que são
"modernos", utilizam "a mais nova tecnologia", representam "um
avanço em relação ao que existia antes". Esta fetichização do
"moderno" está profundamente arraigada nas mentalidades contemporâneas de
forma a se tornar mais ou menos automático a associação entre "ser moderno" e
"ser bom". A ideologia "modernista" organiza o mundo segundo esta
linha de valor muito clara, ainda que implícita, centrando-se da dualidade Moderno/Antigo
em substituição ao Bom/Mau.
A moralidade decorrente desta cosmovisão só poderia ser fluida, porque o que ontem era
correto hoje se torna errado porque já se tornou antigo, já foi superado pelos novos
acontecimentos. No limite esta moralidade cotidianamente superada por si mesma equivale a
moralidade nenhuma e a Ética só passa a fazer sentido enquanto está na moda, sendo como
a maior parte dos produtos espirituais da modernidade, pouco mais que um rótulo vazio
repetido à exaustão.
A essência da modernidade modernista é como a essência do Tônico Bungay de Wells (1):
um produto sem qualquer qualidade mas que é comprado à exaustão devido à publicidade
massiva e multiplicado em mil [produtos diferentes, alguns dos quais sem a menor relação
com a panacéia original. A metáfora, por sinal, é do próprio Wells que tinha a exata
intenção de ironizar esta imagem peculiar da ciência transformada em superstição
publicitária para alardear produtos de utilidade nula ou duvidosa.
Como ideologia que é, esta visão contamina todo o conhecimento do ser humano e acaba se
infundindo até mesmo em áreas como a epistemologia, como demonstrou recentemente o
episódio Sokal (2)- que originou o livro Imposturas Intelectuais - no qual fica evidente
a noção de que basta ser moderno, basta estar sintonizado com as últimas descobertas
científicas para fazer sucesso na comunidade acadêmica, ainda que não se tenha nada a
dizer. Em um processo mais ou menos homólogo ao que Edward Said identifica em "O
Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente" e "Cultura e
Imperialismo"(3), criou-se um discurso acadêmico em torno da modernidade que age
coercitivamente para impor uma pré-noção segundo a qual a última teoria sempre será
melhor que a anterior, pelo simples fato de ser nova e que qualquer texto com mais de uma
década está fatalmente superado.
Se até a Torre de Marfim da Academia é invadida pelos "modernismos", o que
não se dirá da mídia. Manuais de Jornalismo da década de 40 já alertavam para o fato
que inovações tecnológicas estão entre os principais assuntos que despertam interesse
no leitor. Até aí não há problema, o problema é a generalização deste conceito e a
sua caracterização como elemento organizar central de uma visão de mundo no qual tudo
que é novo é necessariamente melhor que o que é velho.
A primeira consequência desta visão alucinante do mundo moderno é a suprema
relatividade de tudo, a segunda é a sensação de impotência do homem frente a uma
ciência mistificada e fetichizada. Da ambição iluminista de assegurar ao homem o
supremo controle sobre a natureza e sobre si mesmo se produziu o contrário, um homem
escravo de um processo criado por ele, mas que - justamente devido a esta mistificação,
que Garaudy chama de cientificismo(4) - ele julga onipotente e, paradoxalmente,
transcendente. Enfim, do esforço iluminista de conter ou assassinar Deus, criou-se uma
idolatria da ciência transformada em ideologia, fetiche de uma sociedade que já não é
mais capaz de perceber como produto seu a algo que idolatra.
Huxley parece ter percebido isto com clareza ainda na década de 30(5) e entendido que uma
das principais consequências da construção de uma Utopia modernista seria o próprio
sufocamento da ciência e a sua substituição por um simulacro de natureza
ideológico-religiosa. Diz o Dirigente Mundial Mustafá Mond à página 278 do Brave New
World, tentando explicar ao Selvagem os sacrifícios necessários à estabilidade social e
emocional: "esse é outro item do preço da estabilidade. Não é a arte a única
incompatível com a felicidade; a ciência também o é; temos de mantê-la cuidadosamente
acorrentada e amordaçada". Quando questionado sobre o axioma hipnopédico de que
"a ciência é tudo", o cínico dirigente esclarece: "toda a nossa ciência
não passa de um livro de cozinha, com uma teoria ortodoxa de culinária que não se
admite ser posta em questão, e uma lista de receitas que não deve ser aumentada".
(1) O texto de Wells está disponível na íntegra na Internet (em inglês) nos
endereços: ftp://uiarchive.cso.uiuc.edu/pub/etext/gutenberg/etext96/tonob10.txt e
http://www.literature.org/authors/wells-herbert-george/tono-bungay/
(2) Para saber mais sobre o assunto: Sokal, Alan e Bricmont,Jean - Imposturas
Intelectuais, Record, Rio de Janeiro, 1998. Há uma entrevista em português com o autor,
disponível na Internet na página:
http://www.physics.nyu.edu/faculty/sokal/entrevista_USP.html, que também inclui links
para o artigo original e suas repercussões na mídia
(3) Ambos os textos foram editados em português pela Companhia das Letras
(www.companhiadasletras.com.br)
(4)Garaudy, Roger - Apelo aos Vivos, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981, páginas 44-58.
(5) Huxley, Aldous - Admirável Mundo Novo, Bradil, Rio de Janeiro, 1969, páginas 269-294