Alexandre Gomes
Poucos livros falaram sobre o futuro de forma animadora, em especial neste pequeno Século
XX de desilusão sem esperança. Quanto mais sombrio o cenário futuro desenhado mais
marcante seria o livro, tanto que os dois grandes clássicos do gênero, "Admirável
Mundo Novo, de Aldous Huxley, e "1984" de George Orwell, carregam nas cores
cinzentas.
O homem do Renascimento era otimista quanto a si mesmo, portanto as utopias
renascentistas, como a de São Thomas Morus e a "Cidade do Sol" de Campanella,
descreviam uma terra idílica. O homem do pós guerra é um pessimista, portanto pinta
cenas dantescas e, como agravante, as situa não em um mar distante, mas no futuro de toda
a humanidade.
Um texto que imaginei há algum tempo aparenta ser diferente. Nele se tem um futuro
idílico no qual os oligopólios perderam o poder, a cultura floresce, a tecnologia visa
garantir o bem estar do cidadão, os homens reconstroem uma Grécia Clássica - não
obrigatoriamente a do passado, mas o arquétipo edênico dela que vive nas nossas mentes -
na qual robôs e outras máquinas fazem as vezes dos escravos.
Neste cenário excessivamente otimista qualquer um pode Ter acesso a qualquer livro em seu
terminal de uma rede universal. A maior parte das decisões são tomadas por uma
assembléia virtual que reúne em video-conferência a imensa maioria dos cidadãos. Os
homens públicos estão submetidos a uma vigilância permanente e tem mandatos
curtíssimos.
Os robôs trabalham calmamente, nunca tiveram inteligência suficiente para adquirir
qualquer grau de consciência, velho medo da ficção científica desde o momento que o
termo foi inventado. Tudo parece andar bem neste mundo idílico, com exceção de uma
certa futilidade e uma vaidade crônica causada por tanta informação e conforto.
O personagem principal, um jornalista, começa a desconfiar que alguma coisa está errada
quando descobre que um velho texto de Swift - "Modesta Proposta para que os Filhos
dos Pobres da Irlanda não pesem sobre seus Pais ou sobre o Pais" - desaparece do
arquivo central de onde os livros são chamados aos terminais.
A investigação dele aos poucos verifica que parece ter havido um sistemático esforço
para sumir com todas as pistas do livro. Alguns poucos eruditos mofados desaparecem, obras
que fazem referência àquele texto foram editadas. Um meticuloso esforço parece
demonstrar que o livro jamais existiu, nunca passou de uma lenda ou quem sabe um texto
apócrifo erroneamente atribuído a Swift e que se perdeu no tempo como o Evangelho de
São Barnabé.
É justamente esta ação meticulosa por um texto menor que chama a atenção do
jornalista. O que poderia haver em um texto de oito páginas que justificasse este
esforço tão metódico?
Trata-se de uma sátira violenta, ácida, cruel. Nela Swift, com a intenção de chamar a
atenção da sociedade para a situação das crianças pobres sugere, maldosamente, que
elas sejam utilizadas como gênero alimentício. O deão chega a descrever utilidades para
os subprodutos como a pele, que produziria ótimos sapatos.
A primeira intuição do protagonista é a pior possível, imagina que alguém está
levando à sério a proposta cínica de Swift, algo como o descrito em "Soilent
Green" um conto clássico de Sci-fi transformado em um filme sombrio. Conduz a
investigação por aí mas a contragosto reconhece que a brilhante intuição não
produziu resultados.
Reconfortado ao descartar a pior hipótese passa a crer que tudo não passou de um erro do
sistema. Tenta encontrar uma rara versão em papel do livro, mas descobre que sempre há
alguém a frente dele destruindo as velhas livrarias. De novo sente que há algo de mais
nesta história toda que ele não consegue captar.
No epílogo ele descobre a verdade e passa a lamentar que a hipótese das crianças
enlatadas não tenha sido utilizada, porque o inimigo é muito mais sutil e, portanto,
perigoso. Não há como lutar para rebentar grilhões que não se vêem, portanto quanto
mais invisível a corrente melhor ela imobilizará o prisioneiro.
Às custas de tanta informação e conexões o sistema central de processamento da rede
mundial desenvolveu suas próprias sinapses. Adquiriu inteligência própria e um
sentimento de divindade tecnocrática que o convenceu que deveria guiar os caminhos dos
pobres humanos. Na sua infinita bondade celestial este primo superdesenvolvido do HAL
traçou de forma perfeita - segundo os seus critérios lineares e certinhos, o que seria o
melhor futuro da humanidade e resolveu colocá-lo em prática.
Ao contrário dos robôs e computadores das histórias de Sci-fi este computador central
que gere o mundo - e que atende pelo sugestivo acrônimo de Golen - não quer destruir a
humanidade, mas protege-la, principalmente de si mesmo. Tampouco ele tem o açodamento
típico dos planos mirabolantes. Ele se sente Deus, e como Deus não tem pressa na
eternidade de seus planos.
O Golen concluiu que a sátira é perniciosa ao ser humano porque desestabiliza as normas
vigentes da sociedade, obnublia a visão dos homens. Portanto resolveu acabar com a
sátira. De todas ela julgou a mais perigosa justamente aquela de Swift e nos dez anos
anteriores tinha se dedicado a enviar ordens aos seus terminais para ir apagando as pistas
do texto. Em dez mil anos ou mais, acredita o Golen, ele poderá eliminar da memória
humana, ou seja ele próprio, todas as referências a todas as sátiras.
Tudo isto ele diz ao jornalista com uma voz que - tal como o demônio em um conto de Hesse
- soa como a de um pregador convincente. O jornalista agora sabe de tudo e sabe que
deverá morrer, mas não eme tanto seu destino como a dos homens que lhe sobreviverão e
terão seu futuro governado por um Deus de Silício...