"Sede homens, sim, e não obtuso gado" (Dante, Paraíso V)
A eugenia - tentativa de "melhorar" a raça humana limitando a reprodução aos
"melhores" homens e mulheres - é um fantasma que periodicamente assola a
mentalidade ocidental desde os antigos gregos. Em artigo anterior já havia mencionado o
quanto a eugenia de Platão o ligava até mesmo aos piores momentos do pesadelo do Brave
New World.
A eugenia é um perigo, mas também uma grande bobagem porque em geral visa só os
aspectos aparentes do homem, em especial as características físicas. Nem sempre, porém,
elas se devem a herança genética e, mais grave, o que fez o homem ser verdadeiramente um
homem não foi nunca os músculos ou a beleza, mas sim a inteligência. Fosse o
australopithecus mais forte e talvez ele nunca tivesse se transformado no homem, afinal a
inteligência surgiu para compensar todas estas fraquezas daquele macaco das savanas.
Mas a eugenia, a despeito de ser uma bobagem, é um grande perigo. O horror nazista
demonstra isto com límpido terror. Malgrado sua imbecilidade teórica, a eugenia é a
racionalização de um dos sentimentos mais típicos do homem, aquele sentimento de
repulsa à alteridade que faz eternamente o homem tentar colocar o seu grupo no centro do
mundo e negar aos demais grupos o título de "humano".
Há algum tempo mencionei que por detrás de toda a alucinada paranóia do Unabomber - o
terrorista anti-tecnológico que assustou a comunidade científica americana há alguns
anos - havia alguns raciocínios que assustavam pela coerência. Um desses laivos de
análise cruel mas exata dizia respeito justamente à biotecnologia. Para o Unabomber o
grande risco da manipulaçõa genética era que ela, uma vez aceita, tendia a deixar de
ser optativa para se tornar compulsória.
Dizia ele que aos poucos a adoção de órgãos e tecidos melhorados geneticamente daria a
seus possuidores uma vantagem tal sobre os demai que se passaria a depender deles de forma
inevitável. O homem-máquina seria tõa superior ao homem-homem que só quem não tivesse
meios abriria mão de aprimorar-se.
O filósofo alemão Peter Sloterdijk - enfocado pelo caderno Mais da Folha de São Paulo
deste domingo - defende um ponto de vista oposto, mas que leva a conclusões extremamente
semelhantes de inevitabilidade da manipulação genética. Ainda que a longa entrevista
fale muito pouco sobre seu ponto de vista - mais preocupado em criticar Habermas e a
Escola de Frankfurt - é possível detectar alguma coisa da essência de sua mentalidade.
Diz ele que a manipulação genética é inevitável e o homem jamais deixará de utilizar
as mais poderosas ferramentas de eugenia jamais disponibilizadas. Resta portanto à
humanidade apenas o papel de estabelecer um código de ética da questão que limite a
operacionalização da manipulação genética.
Correndo o risco de ser leviano, já que desconheço em profundidade o trabalho de
Sloterdijk, a idéia em si parece não se sustentar por si mesma. Se a humanidade não
será capaz de deter a utilização das biotecnologias - em especial quanto à
manipulação genética - parece improvável que será capaz de mantê-la dentro de
limites claros.
Diz ele que a inevitabilidade da aceitação destas tecnologias beneficia-se do assunto
não ser trazido às claras. Enquanto persistir a recusa, diz ele, não haverá qualquer
forma de controle social sobre as experiências na área. O reconhecimento - portanto
legitimação - destas experiências parece não melhorar muito a situação do problema,
ao contrário do que diz Sloterdjik.
Enquanto este tipo de experimento continuar banido haverá sempre uma oportunidade de
punir transgressores e evitar abusos, uma vez legitimado só se pode imaginar que os
limites serão cada vez mais ampliados, a cada novo avanço a tolerância ficando mais
elástica. Daí ao mundo do Unabomber no qual os melhoramentos genéticos tornam-se
compulsórios é um passo.
A única chance da humanidade recriar de forma mais terrível - porque viável e real - os
velhos pesadelos autoritários eugênicos - que desde Platão atormentam o Ocidente - é o
banimento completo deste tipo de experiência, a manutenção dos mesmos na condição
permanente de clandestinos sujeitos à perseguição tanto oficial quanto da opinião
pública. Se isto, como avalia o filósofo alemão, não for capaz de evitar de vez as
experiências, ao menos limitará o seu desenvolvimento e se poderá esperar um dia que o
homem, mais sábio, já não se empolgará por este tipo de experiência.