"Todas as revoluções não são obrigatoriamente boas (...) mas a história mostra
que algumas eram necessárias e produziram bons frutos" (Dom Helder Câmara)
Interrompo em parte o tema - Religião - que vinha sendo tratado nos artigos anteriores
para à luz de um fato - o falecimento de Dom Helder Câmara - continuar tratando do tema.
Pode parecer estranho, e realmente deve ser, que alguém fora do meio católico, ligado a
outra fé, se sensibilize com o falecimento desta notável figura humana que foi o
arcebispo de Olinda e Recife. Mas é certo que esta estranheza só é realmente estranha a
quem não conheceu o arcebispo.
Ainda que recorrendo ao que provavelmente será um chavão na imprensa nos próximos dias,
é impossível não ver o contraste entre a figura meiga e franzina do arcebispo frente a
toda a sua força interior. Homem incapaz de conhecer o medo - o que demonstra sobretudo o
extremo da sua fé e a certeza de estar agindo com correção - Dom Helder Câmara tece a
coragem de enfrentar tanto os algozes do regime militar como as forças conservadoras
dentro da hierarquia da qual fez parte.
Jamais perguntou se os perseguidos políticos que defendia eram católicos, protestantes,
judeus ou ateus, os defendia não por um sentimento corporativo, mas sobretudo porque nele
os valores humanos - e cristãos - estavam enraizados demais para fazer esta distinção.
Alguém já disse que é fácil amar ao amigo, muito mais difícil era amar àquele que
nos contesta e Dom Helder foi capaz deste amor incondicional a ponto de colocar a vida e a
segurança em risco.
Mas é um fato tangente a esta dedicação que chama atenção à toda a força da figura
franzina do arcebispo. Ele agia não por considerar esta ação um mérito, mas porque a
tinha no seu íntimo como um dever seu como um cristão. Não agia para ser louvado como
exemplo de cristão, mas porque uma ética profundamente arraigada em seu espírito não
lhe mostrava outro caminho senão o que ele tão heroicamente seguiu.
Não tentou jamais ser herói, mas apenas um cristão consciente de suas responsabilidades
com a humanidade, mas este desprendimento o fez ainda mais heróico e exemplar. É
certamente um dos melhores exemplos que se pode ter de uma figura humana rara para a qual
até a omissão - entendida como não fazer tudo que estivesse ao seu alcance pelos seus
semelhantes - era um pecado terrível.
Mais polêmica é a sua interpretação do pensamento social da Igreja que está na raiz
do que depois se convencionou chamar de Teologia da Libertação. Em um documento de 1967
assinado por diversos bispos do terceiro mundo, do qual Dom Helder nãa só foi
signatário como um dos principais autores, está presente uma radical condenação do
capitalismo.
Mais do que isto, o documento assinala que deveria haver um motivo de alegria pelo
surgimento da via socialista: "Se durante um século a Igreja tolerou o Capitalismo
(...), pouco conforme à moral dos profetas e do Evangelho, ela não pode deixar de se
alegrar por ver aparecer na humanidade outro sistema social menos afastado desta
moral".
É evidente que Dom Helder se preocupava com os contrabandos ideológicos do socialismo,
em especial o ateísmo e o materialismo, mas nem por isso deixava de julgar possível
conciliar fé e justiça social em um socialismo humanista e cristão. Indo além julgava
que esta opção era um dever dos cristãos porque colocava em prática os princípios de
solidariedade que estão na raiz do cristianismo.
Este pensamento provoca reações profundas até hoje dentro da Igreja e gerou muitas
críticas tanto sinceras como hipócritas, além de uma incompreensão generalizada. Até
hoje se atribui a estas questões a culpa pela perda de fiéis católicos para outras
crenças num raciocínio que beira o cinismo.
Beira o cinismo porque todos aqueles que criticam esta "opção política" de
padres pejorativamente chamados de "vermelhos" jamais viram qualquer problema
quando os padres alimentavam o poder político dos coronéis. Também beira o cinismo
porque ao acusarem-nos de cripto-marxistas automaticamente os colocam numa posição de
crítica feroz à essência do marxismo, já que a religião para os marxistas seria
sempre um fenômeno acessório das relações econômicas, condenadas apenas a reproduzir
a ideologia dominante.
Mas, principalmente, beira o cinismo porque a dissolução da religião na sociedade
contemporânea - aqui retomando o fio da meada dos artigos anteriores - se dá justamente
pela extrema valorização moral do individualismo e do materialismo - na pregação
consumista - criada pelo capitalismo e que é justamente o alvo principal atacado por
estes sacerdotes.
Dom Helder foi mais que um símbolo desta luta contra o individualismo opondo a ele uma
solidariedade radical que encarna o sentimento de Misericórdia extrema tão pregado e
tão pouco colocado em prática pelas mais diversas fés. Talvez isto explique porque a
figura dele é tão cara até a quem não compartilhe com ele da crença cristã, como eu
que sou muçulmano, afinal ele se tornou um símbolo daquela dedicação ao próximo que
todos os verdadeiros crentes de qualquer fé só podem admirar como um sinal da
Misericórdia de Deus para com os homens.