Posição contra os MaKBeTh
A dimensão trágica do afrontamento político numa tragédia shakespeariana.
É familiar e extensa a galeria dos personagens reais que, a qualquer um, emergem à lembrança, ao percorrer-se a taxionomia das patologias psicossociais, que o paradigma sintético nos permite formular. Marcante, também, pela cumulatividade, em diferentes graus e aspectos, desses desvios básicos na formação da personalidade. Mas, antes de deixar-nos mergulhar na realidade clínica da sua própria identificação, será necessário, ainda, completar o arcabouço teórico, que assegura, ao improvisado auto-analista dessa aplicação paradigmática, o caduceu do conceito, capaz de clarificá-la nos três níveis de sua abrangência, que vai aqui designado como o "Síndrome de MaKBeTh" Nota 5.A psicanálise tradicional compreende, que o indivíduo necessita liberar suas tensões e desejos profundos, construindo-se como uma personalidade equilibrada no adequado manejo das suas relações familiares; e que, na ausência dessa capacidade de realização do Eu-ato, os processos regressivos da personalidade tendem a manifestar-se no campo somático das enfermidades de fundo neurótico - do Eu-Todo arcaico. Assim, também, a sociopsicanálise visualiza, no plano político, uma área de idêntica relevância para a construção da personalidade; afirma, também, que a frustração-repressão do Eu-político, a sua vez, repercute regressivamente sobre o quadro das relações psíquicas - do Eu-ato, sendo "que en este nivel rige el esquema de la desigualdad y la autoridad, el de la relación tradicional hijos-padres." [MENDEL, 1973, vol. 1:17 e vol.2:9]. Além disso, a sociopsicanálise prevê a possibilidade, ainda mais drástica, de uma regressão de caráter secundário e mais radical nas suas conseqüências, quando a frustração-repressão do potencial de desenvolvimento inerente ao Eu-político, não encontrando ambiente propício à sua compensação na derivações do psiquismo, impacta somaticamente na própria esfera do biológico.
A sociopsicanálise de MENDEL focaliza o fenômeno psicossocial corriqueiro, em que o imaginário popular projeta, na figura do governante, o papel do grande pai, como uma decorrência lógica da ocultação das relações políticas entre as classes, no seio das instituições e da própria sociedade. A regressão do nível do político ao plano do psíquico, opera-se, portanto, como uma substituição das tensões emancipatórias da cidadania - com suas demandas de liberdade, igualdade e fraternidade - pelas relações que integram os processos mais elementares da conformação da personalidade - onde prevalecem as relações de dependência, desigualdade e autoridade.
É, sobretudo, relevante à investigação teórica e indispensável à praxiologia clínica na sociopsicanálise, que se identifiquem os mecanismos - tempo e ao modo - que estão associados à manifestação e superposição das psicopatologias, nas regressões do Eu-político aos níveis do psíquico e da matriz biológica das coletividades sociais. É nossa pretensão afirmar, que o modelo paradigmático da epistemologia de síntese oferece um caminho para essa compreensão.
Para trilhar esse caminho do entendimento, será necessário lançarmos mãos de um último conceito - a idéia de um síndrome - que permitirá traduzir para a esfera das manifestações praxiológicas - periféricas ao núcleo sígnico do psiquismo - o risco de frustração das respectivas funções sígnicas. Ao mesmo tempo, esse conceito deverá abrir espaço para a elaboração das relações de sentido, que conformam a realidade e determinam a cristalização dos conteúdos regressivos da experiência, como os défices das funções estruturantes que designam as patologias psicossociais.
Na psicanálise tradicional, as praxiologias regressivas ganharam relevo e se cristalizaram na figuração típica dos "complexos", cuja explicitação e conseqüência é central nas formulações teóricas da psicologia freudiana ou jungiana. Na sociopsicanálise, propomos que a praxiologia correspondente seja articulada pelo conceito do "síndrome". Neste caso, os processos regressivos [primário e secundário] podem compreendem derivações cumulativas, em esferas diferenciadas da personalidade [do psiquismo e da própria base biológica] e integram, portanto, uma sintomatologia mais estruturada e funcionalmente articulada [até mesmo como configurações múltiplas de "complexos"].
Avaliando, dessarte, o papel que o "Complexo de Édipo" desempenhou, na formação teórica da psicanálise freudiana - como na estrutura dorsal da sua construção e consolidação paradigmática, até mesmo pelas suas implicações clínicas; tenho, por seguro, que essa mesma função, o "Síndrome de MaKBeTh" está destinado a cumprir no desenvolvimento da sociopsicanálise, à luz do paradigma sintético e das suas implicações políticas e sociais.
A tragédia individual, como trajetória de Édipo, encontra na tragédia política, como trajetória do casal macbethiano, o seu mais típico correspondente. Como Édipo, o casal macbethiano comete um ato de lesa majestade; diferentemente de Édipo, em plena consciência do alcance dos seus atos. O parricídio inconsciente traduz-se, no ato criminoso originário de MACBETH, em regicídio premeditado.
Enquanto o drama de Édipo se resume no justar contas com a sua própria consciência; a saga do casal macbethiano os conduz, na volúpia dos próprios atos, por regressões múltiplas do nível do político, e pela sua cristalização cumulativa nas patologias básicas da personalidade, a uma derivação trágica de conseqüências, que abrem, no espaço dramático trabalhado pelo gênio de SHAKESPEARE, todo o espectro da sua manifestação.
Na seqüência deste texto, haveremos de explicitar como, nos seus três ATOS, se encenam as três "regressões" sucessivas do político, que caracterizam as praxiologias patológicas do regicídio, fratricídio e suicídio. E suas implicações, ao nível da consciência coletiva, suscitam, também, uma reflexão sobre os conceitos correlatos do epistemicídio, malthusianismo e ecocídio, que emergem nas entrelinhas da grande tragédia. O drama vivido pelos personagens de SHAKESPEARE conforma, em sua expressão própria e acabada, aquilo que passaremos a designar como o "SÍNDROME DE MaKBeTh": o grande ARQUÉTIPO DA CORRUPÇÃO DO PODER.
PRIMEIRO ATO A RACIONALIZAÇÃO PATOLÓGICA DO DESEJO: REGICÍDIO-FILICÍDIO [A] DESCRIÇÃO SUMÁRIA: uma regressão do nível do político. MACBETH, general do Rei DUNCAN, de volta de uma campanha vitoriosa contra os inimigos do trono, em companhia de seu "irmão-de-armas" BANQUO, é afrontado pelas BRUXAS, que vaticinam sua ascensão ao trono. Entusiasmado, MACBETH envia correspondência à sua esposa LADY MACBETH, relatando o fato.
LADY MACBETH atualiza o desejo secreto, originário da ambição em MACBETH: concebe friamente - e exige de MACBETH - o assassinato de DUNCAN. O plano é surpreendê-lo, quando estiver hospedado no castelo de MACBETH, para onde o Rei se dirige, com a finalidade de honrá-lo com prebendas, por seu desempenho na guerra.
MACBETH vacila na execução do plano execrável, mas LADY MACBETH é implacável e lhe impõe a escolha entre ela mesmo e o assassinato político que, afinal, será perpetrado por MACBETH.
Na seqüência dos acontecimentos, LADY MACBETH prepara a cena, tendo colocado a dormir os sentinelas do rei com um sonífero, alcança a MACBETH o punhal assassino. Depois de tudo consumado, auxilia MACBETH a livrar-se dos vestígios de sangue do seu ato nefando.
Finalmente, ao alvorecer daquela noite de horrores, tendo já sido descoberto o crime no palácio, MACBETH adianta-se a todos os súditos estarrecidos e, numa cínica manifestação de indignação, joga sobre os sentinelas - ainda bêbados pelos efeitos do soporífero - toda a culpa pelo acontecido. E vinga neles, ao fio da sua própria espada, a morte do soberano. Num golpe de poder arbitrário, elimina as testemunhas passivas do seu próprio ultraje e afasta de si mesmo a cobrança dos súditos presentes, tornados inermes, pelo terror da violência.
Depois, o casal no condomínio do poder, haverá de desencadear, seletivamente, a repressão sobre a cidadania indignada. Isso que é simbolizado pela perseguição de MACDUFF - um outro general leal ao soberano, que foge para o exílio - e pelo assassinato de sua esposa e filho. Quando, então, se cumpre-se a profecia: MACBETH é rei!
[B] ANÁLISE: [B1] Primeiro movimento: a tentação esquizofrênica de MACBETH MACBETH, que, aparentemente goza das suas faculdades - no pleno desenvolvimento da personalidade, de um bem sucedido senhor da guerra - é defrontado, repentinamente, pela expectativa de uma ambição, que a ambigüidade da profecia, na saudação das BRUXAS, lhe descortina: a conquista do REINO...Diante da promessa: "Tu serás rei..." - instaura-se em MACBETH uma patologia da ambigüidade, que desequilibra sua percepção da realidade e lhe abre a guarda da sua personalidade própria. Diante do vaticínio, que lhe aproxima o objeto do desejo - de forma tão abrupta e fatal, como aparentemente irreal... o RACIOCÍNIO - que haveria de pesar as várias e legítimas formas de realizá-lo - falece em MACBETH. E assim a capacidade de articular os sentimentos e os interesses que, eventualmente, poderiam conduzi-lo ao poder pelo caminho da GLÓRIA.
Na TENSÃO-IDEAL dessa frustração, a impotência em visualizar o caminho à frente - na ultrapassagem da meta-realização que lhe fora proposta - alimenta a fantasia esquizóide da agressão. MACBETH projeta-se todo na realidade da sua própria ambição, que lhe sabe acessível pela traição - ao alcance do seu punhal - bastando para isso RITUALIZAR o ato decapitado da própria consciência, na justificativa do destino fatal.
MACBETH, em caminho de uma clara "regressão no nível do político", que lhe sugere a satisfação perversa da ambição pelo regicídio, não ousa, entretanto, entregar-se por si próprio aos desígnios da sua fantasia esquizóide... pelo que haverá de cristalizá-la na patologia estrutural de um delírio esquizofrênico. Isso que, mais adiante, haverá de se manifestar, numa saga de crimes e alucinações.
[B2] Segundo movimento: o reforço paranóico de LADY MACBETH A psicopatologia social constrói-se numa complementariedade de atos e processos, que podem envolver múltiplo atores sociais, e por isso mesmo designam o conceito próprio de um SÍNDROME. É nesse sentido, que a tragédia focaliza o destino do casal macbethiano. Fria e eficaz, LADY MACBETH manipula com habilidade a fantasia esquizóide de MACBETH, reforçando-a, numa regressão à ambigüidade de uma patologia anterior - essa mesma que se revela na fragilidade de caráter do general do Rei: suas fixações paranóides.Numa terrível carta que lhe envia, LADY MACBETH emula a fantasia narcisista de quem já alimenta o projeto de um fascínora, e lhe confronta o sentimento de dependência, ameaçando abandoná-lo, caso não venha a cometer o regicídio. Consuma-se, assim, o PRIMEIRO ATO, desta fisiografia da corrupção do poder, que nos legou o gênio de SHAKESPEARE.
A DRAMATURGIA DO AMOR, que caracteriza a união bem sucedida de almas gêmeas, no processo gerativo da natureza humana, desfigura-se na AMBIÇÃO PELO PODER, numa REGRESSÃO de ambigüidades irresolvidas, que arma a mão assassina de MACBETH e o leva a violar o princípio da lealdade política [na sua expressão mais radical, como dever de hospitalidade]. A racionalização patológica do desejo cumpre o seu destino fatídico e compromete, definitivamente, a trajetória dos seus personagens na engrenagem trágica da transgressão moral e da punição exemplar.
[B3] Terceiro movimento: a projeção depressiva do tirano. A personalidade ambígua de MACBETH, vestiu-se do seu próprio cinismo; mas não lhe consegue impedir a repercussão culposa. Resolve-a, pela projeção desse sentimento depressivo, em acusação a terceiros - aos subalternos: os sentinelas, a quem LADY MACBETH havia embebedado - sobre os quais descarrega a fúria do seu ressentimento, eliminando-os brutalmente, ainda estupefatos e tontos pelo vinho, sem lhes dar tempo à contestação. A representação é clara: o parricídio-regicídio [ou, mesmo, o tiranicídio como alguns o queiram], como o pecado original de uma nova ordem, projeta, como seqüela a repressão aos que vem de baixo [e, imaginariamente, ameaçam de igual destino ao soberano auto-imposto] Nota 6. O filicídio, que lhe segue, constitui-se uma conseqüência previsível - alimentada pelo ressentimento culposo e pelo ciúme narcisista do casal macbethiano. Na tragédia shakespeariana, expressa-se pela perseguição aos amigos do rei e seus familiares - atinge a MACDUFF, que foge para o exílio, mas terá sua esposa e filho assassinados, por determinação dos tiranos.Surpreende-se aqui a expressão figurada da violência de escalão, que atinge o próximo-imediatamente-abaixo numa escala hierárquica - como o assassinato uraniano dos próprios filhos [é uma alusão da tragédia à opressão dos súditos pelo governante, à repressão da cidadania pelo poder de Estado].
E assim, haveria de percorrer, o casal tenebroso, o caminho dessa complementariedade patológica do parricídio-filicídio, como um desvio do fluxo de uma energia destinada, originariamente - pelo vaticínio das bruxas - à satisfação da vontade que se constitui na apropriação legítima do poder.
O assassinato do pai-governante, no entanto - deslegitima o ato do desejo , que passa a ser experienciado culposamente num processo regressivo, no qual se bloqueia, também, a liberação de energia positiva necessária ao reconhecimento dos filhos-cidadãos. Para o tirano auto-imposto, os filhos da cidadania serão sempre imperfeitos, indignos da sucessão... E sobre eles - como representações de um afrontamento possível à própria tirania - se desencadeia, secundariamente, a fúria do ressentimento, acumulado pela personalidade depressiva, no recalque culposo de sua agressão ao pai arquetipal.
SEGUNDO ATO BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA - FRATRICÍDIO [A] DESCRIÇÃO SUMÁRIA: uma regressão do nível psíquico BANQUO, o fiel companheiro de armas de MACBETH, foi a única testemunha do primeiro encontro com a BRUXAS e, assim também, dos motivos, que a sua truculência poderia originar, para o assassinato DUNCAN. E de BANQUO, por sua vez, foi dito, naquela mesma ocasião, pelas BRUXAS - e na presença de MACBETH - que seria menor, e no entanto maior do MACBETH, nem tão feliz e no entanto muito mais feliz, e que não chegaria a tornar-se Rei, mas que engendraria monarcas.Foi o bastante para que o tirano, tramasse a sua morte e de seu filho. MACBETH sentiu-se ameaçado - de igual para igual - pelo testemunho de BANQUO ao vaticínio das bruxas e pela sua consciência - calcada na profecia - do enfrentamento moral e político, que o distanciaria do usurpador.
MACBETH, então, mais uma vez prepara a cena do crime, pelo expediente da traição. Oferece uma festa, na qual BANQUO é o principal convidado... e manda executá-lo e a seu filho, por dois mercenários, no caminho, antes que cheguem ao Palácio. [BANQUO é morto, mas, até porque o ato criminoso nunca haverá de prevalecer sobre a estirpe dos justos, o destino impôs que o seu filho lograsse escapar à sanha dos assassinos, fugindo para a Inglaterra onde se começa a articular a resistência à tirania.] Depois disso, no banquete preparado para BANQUO, onde se reúnem o lordes do Conselho de Estado, MACBETH será perseguido por alucinações, visualizando a figura do amigo morto, ocupando o seu próprio lugar à mesa. De viva voz - e numa clara manifestação de demência - MACBETH mantém com o espectro do morto um diálogo que revela o seu envolvimento no crime. É quando se abre a oportunidade para o exercício supletivo do poder pela esposa-cúmplice-competitiva.
[B] ANÁLISE: arrogância e truculência no exercício do poder. Na expressão do segundo vaticínio das BRUXAS - que seria BANQUO e não MACBETH, que daria origem a uma estirpe de reis - o gênio de SHAKESPEARE caracterizou, de um lado, a esterilidade do casal macbethiano - como um estigma do respectivo "síndrome"; e de outro, o processo da regressão secundária, que os conduz à banalização da violência - isso que, caracteriza a saga dos seus crimes, como um estado psicopatológico avançado de regressão desde o nível do político.O fratricídio, simbolizado no assassinato de BANQUO, é a representação dessa patologia. Trata-se, aqui, da tipificação de um comportamento regressivo - na esfera psicofamiliar - que se manifesta pelo assassinato de membros do mesmo clã, cuja diferença - mesmo a mais irrelevante e precária - se torna intolerável à personalidade psicótica. No seu limite, como manifestação no plano da consciência coletiva e em escala massiva, contempla-se, aqui, o conceito do genocídio, como assassinato dos membros da mesma espécie, que diferem por raça, cor, etnia, gênero, religião, enfim, por quaisquer discrimes reais ou imaginários, que os tornem alvos do auto-amor desenfreado de uma personalidade narcisista, e/ou do ressentimento culposo de uma personalidade depressiva.
De fato, o narcisismo de MACBETH, não lhe permite tolerar esse fato, muito simples, de olhar-se no espelho mágico da profecia, e ali defrontar-se com seu leal amigo BANQUO, como o progenitor de uma dinastia. O "Complexo de Branca de Neve" Nota 7, que faz do rei, naquele conto de fadas, um pai débil e fracassado - e da madrasta uma rainha assassina - assoma os domínios da política mundana e reproduz-se, exemplarmente, na dramaturgia de MACBETH.
O vaticínio das bruxas expõe o condomínio de poder do casal-Estado, à emergência e força dos filhos de BANQUO. MACBETH - como o pai débil de Branca de Neve - projeta em BANQUO toda sua frustração e despeito - isso mesmo, que haverá de revelar a sua fragilidade de caráter, como o amigo desleal - a figura arquetípica de um traidor entre iguais. E LADY MACBETH, sua "esposa infernal", encena uma representação da BRUXA-MADRASTA do conto de fadas.
Consumado então o segundo ato - pelo assassinato de BANQUO - o TIRANO-DÉBIL torna-se vítima de alucinações culposas. Visualizará o amigo morto ocupando o seu assento nas reuniões do Conselho de Estado, e sobre ele projetará a culpa e o ressentimento pelo seu fracasso na gestão do Reino. Demonstrará nisso, a extrema fragilidade de sua personalidade e os efeitos do processo regressivo neste plano, como desestruturação do próprio equilíbrio psíquico. Isso que, de alguma forma, lhe faz escorregar o poder de entre os dedos e revela, por detrás do grotesco e do truculento - como recusa à alteridade de BANQUO - a face oculta da fixação autista, que destila arrogância e auto-suficiência, sintomas claros de incompetência governativa.
O controle do Conselho de Estado, flui, então, às habilidades "diplomáticas" de LADY MACBETH e, nesse episódio, o gênio de SHAKESPEARE revela, com sutileza, a emergência de um novo tipo de agressão, disruptiva, agora, do próprio conluio criminoso. É quando LADY MACBETH, ferinamente, desfaz sobre a demência de MACBETH, perante os lordes do Conselho de Estado. É o começo do fim, que será antecipado pela separação do casal-Estado, e virá por obra de MACDUFF, e dos filhos de BANQUO e DUNCAN.
TERCEIRO ATO AUTOPUNIÇÃO DA CONSCIÊNCIA FRUSTRADA: SUICÍDIO. [A] DESCRIÇÃO SUMÁRIA: uma regressão do nível biológico. O Estado entra em decadência. Desfalece o condomínio do poder. LADY MACBETH, vítima de enfermidade mental, gradativamente aliena-se do exercício do poder e da própria realidade. Ao final comete suicídio. MACBETH descansa sobre uma terceira profecia das Bruxas: que não será derrotado por filho de mulher e nem enquanto a floresta de Birmam não subir a colina de Dunsinane e marchar contra ele.Nesse meio tempo, os excluídos do Reino planejam e desencadeiam a revolução para tomada do poder. Comandados por MACDUFF, que é nascido do ventre de uma mulher morta; e disfarçados com os ramos das árvores da floresta de Birmam, os revolucionários chegam ao castelo de MACBETH.
Expondo-se, temerariamente, porque se acreditava invencível, MACBETH parte para o enfrentamento pessoal da rebelião, onde mata ao filho do nobre SIWARD, que comandou a invasão; e, depois de conhecer, na identidade de seu oponente, o despojamento da sua invencibilidade, arrisca o próprio destino no confronto armado, e nele é morto por MACDUFF. O crime é castigado e a ordem é reconstruída.
[B] ANÁLISE: auto-suficiência e morte. O assassinato primordial de DUNCAN, cobra do casal macbethiano suas derradeiras regressões. De um lado, a enfermidade mental, gradativamente, aliena a percepção da realidade em LADY MACBETH, fixando ritualisticamente a sua atenção numa imaginária impureza, que lhe teria manchado o corpo. O gênio de SHAKESPEARE reconstitui, aqui, a regressão dessa personagem ao momento arcaico da evolução da sua personalidade; assim, sob a forma de uma doença autista, LADY MACBETH somatiza o crime, numa reconstrução alienada do seu Eu-Todo.É o primeiro momento do epílogo, que SHAKESPEARE conduz como uma saga de auto-destruição. ELA, a feiticeira da ambição alheia, termina pondo um fim, pelas próprias mãos, ao sofrimento do corpo, indelevelmente manchado pelo crime primordial. ELE, o fantoche da própria ambição manipulada, havendo um tempo passado, e confiante na terceira profecia das bruxas, repousa o fim dos seus dias, na decadente autoconfiança, que se expressa na ilusão da sua invencibilidade.
"Não haverá filho de mulher que o derrote", disseram-lhe as BRUXAS... "e nem isso acontecerá antes que a floresta alcance ao seu castelo!" Genialidade de SHAKESPEARE, ou mera coincidência, o fato é que o destino do tirano revela e cumpre, em todos os seus detalhes, uma terceira e definitiva regressão do político, agora ao nível da própria matriz biológica [e, por que não, ecológica] da existência humana.
Onde a Justiça humana não socorre os degredados do poder, uma outra JUSTIÇA, que não é geração da própria humanidade; mas que é tão consentânea ao seu destino, como a imortalidade da PHÊNIX, que renasce das cinzas da sua matéria sem vida - e tão exuberante como a força da natureza que alimenta a vida de uma floresta - haverá de cumprir os seus desígnios!
MACBETH, o contra-herói dessa tragédia, refugia-se inutilmente em seu castelo, contra a revolta da própria vida, cuja destruição promoveu no seu entorno; pelo que, se vai submetendo inconscientemente, no isolamento da sua condição, ao corte dos laços do poder e do destino, que haverá de exaurir a sua força.
A revolução, que se estrutura na Inglaterra, representa, na intuição genial da SHAKESPEARE, uma desforra da natureza contra quem a violentou. MACDUFF, que assume o comando, é filho retirado às entranhas de uma mulher morta; e a revolução, cujas tropas assomam às muralhas do castelo de MACBETH, veste a camuflagem dos ramos cortados à floresta, que, certamente, o domínio ilusionário de MACBETH procura manter afastada do seu castelo.
HUMANIDADE, que se renova desde a própria morte da sua natureza, e NATUREZA que se rebela contra a repressão da sua FORÇA, unem seus esforços contra o aleijão moral desse pequeno déspota... que nem sequer percebe os sinais da sua condenação.
O delírio terminal de MACBETH, cuja força ainda lhe permite cobrar a vida de um filho a SIWARD, o vencedor de Dunsinane, antecipa, pelo gênio de SHAKESPEARE, a encenação de um drama muito contemporâneo. Julgando-se indestrutível, o protagonista da grande tragédia da corrupção do poder, no derradeiro estágio do seu comportamento regressivo, investe contra a NATUREZA que invade o seu castelo. É a figuração profética do ecocídio, o crime da destruição do seu meio-ambiente pelo ser humano.
Mas, ao fim dessa derradeira invectiva, reduzido apenas à impunidade que ainda lhe sustenta a vida, haveria o tirano de conhecer o seu destino e desencadear, pela sua recusa de a ele render-se, a provocação tácita da própria morte. É o que se configura no seu enfrentamento com MACDUFF, que lhe revelou não ter nascido das entranhas de uma mulher viva, tornando-se, por isso mesmo, capaz de oferecer-lhe em combate o Juízo e o Castigo.
A ordália guerreira de MACBETH, que então joga contra MACDUFF o desafio das maldições, que deixou conduzir o seu próprio destino, decide pela vitória da VIDA, que assim renasce das energias liberadas pela MORTE.
Notas:
5. A grafia utilizada neste texto para MaKBeTh [com M, K, B e Th maiúsculos] releva a intenção diferenciar-se o ARQUÉTIPO da interação social, que expressa na grande tragédia, vis a vis da mera denominação do personagem literário de William Shakespeare, cuja grafia nos chega como MACBETH. Expressa, também, a etimologia arcana do conceito elaborado pelo dramaturgo esoterista, que o compõe com as 4 letras do alfabeto hebraico: Mem, Kaph, Beth e Thau - as quais designam o sentido do próprio texto, respectivamente: a MORTE como o destino (Arcano 13), a FORÇA como instrumento de poder (Arcano 11), a AMBIGÜIDADE como condição da vida (Arcano 2) e o MUNDO como síntese da Grande Obra (ARCANO 22), em que "Uruboros" - a serpente egípcia - resta dominada e abocanha a sua própria cauda. (Retorna ao texto) 6. Para uma abordagem deste tema específico, remeto o leitor à discussão do Capítulo 5 de "Democracia Plebiscitária", onde concluo: "É difícil aceitar como justificativa para a condenação dos tiranos à morte a condição de um novo começo. Robespierre, que sustentava o direito de não se julgar o rei, e sim matá-lo, para que a Pátria possa viver (apud Aydos 1992, p. 53) sucumbiu à lógica do próprio argumento e foi guilhotinado para que a Convenção pudesse governar. Pelo ângulo de sua conseqüência, esse argumento condiciona o governo da cidadania à morte dos seus inimigos públicos, notórios e incontestáveis. É significativo que, com Robespierre e o tiranicídio, positivado como direito da cidadania, se instaure, em tempos modernos o terror das execuções burocráticas, do que os assassinatos de Sócrates e Cristo, e os Tribunais da Inquisição, foram prenúncio e advertência. A experiência dos povos tem demonstrado que o terror não sustenta a democracia, ao mesmo tempo que a institucionalização da democracia não prescinde da contribuição dos seus próprios inimigos. (...) Se o regícídio (como parricídio) é a reação impulsiva da condenação de um tirano (filicida), ambos estes comprotamentos são regressões do nível do político, que deveria presidir as relações de autoridade numa sociedade sadia. Rotinizar essa patologia abriria espaço para uma regressão de segundo grau: a instauração do terror no seio da cidadania (fratricídio). (...) Para além do direito de resistência, que justifica o estado de beligerância contra os opressores da cidadania, e nisso esgota o campo de legitimação da excepcionalidade, o tiranicídio é o primeiro ato de uma nova ordem - da cidadania vitoriosa. Nào há de ser legitimada como fundação, a manifestação direta da sobernia, que não puder ser rotinizada como prática de decisão plebiscitária. Há nisso que ser consistente e radical - como, efetivamente o foi a Convenção do Terror com Robespierre. Ou se introduz critério de eleição para condenar à morte os inimigos da democracia e da humanidade (aceitando o risco de cometer injustiças e a certeza de sistematicamente absolver os poderosos e os vencedores), ou se abstém de assim legitimar o tiranicídio... " [AYDOS, 1995: 50/51] (Retorna ao texto) 7. Aqui já se antecipa o epílogo de Macbeth, eis que:"os pais que, como a rainha, atualizam seus ciúmes edípicos paternos quase destroem seus filhos e certamente se destroem". BETELHEIM, Bruno: A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978: 254. (Retorna ao texto)