vti_nexttolasttimemodified:TR|04 Jul 2000 18:47:48 -0200 vti_title:SR|Shared Top Border vti_modifiedby:SR|edaydos

O RESGATE DO OSTRACISMO PARA UMA ATRIBUIÇÃO POSITIVA DE RESPONSABILIDADE POLÍTICA*

por Eduardo Dutra Aydos

Em todas as cidades se pode encontrar esses dois partidos antagônicos, que nascem do desejo do povo de evitar a opressão dos poderosos e da tendência destes últimos para comandar e oprimir o povo. Desses dois interesses que se opõem surge uma de três conseqüências: o governo absoluto, a liberdade ou a desordem. (MAQUIAVEL: O Príncipe)

A primeira tese que essa análise formula, trás à reflexão uma das mais apontadas e decantadas mazelas do regime, que é a irresponsabilidade política dos nossos governantes.

Para aprofundar este questionamento, será necessário explicitar, previamente, o significado dessa responsabilidade. Isso que se viabiliza mediante a resposta a um conjunto clássico de interrogantes: o que é responsabilidade política? quem se pretende que deveria ser responsável? por que? quando? como? perante quem?

Por definição, a responsabilidade se constitui pela investidura de uma incumbência sobre coisa ou fato (res), a que corresponde um direito de avaliação, cobrança e sanção (ponderare).

Responsabilidade política e república, assim, têm uma raiz semântica comum e uma implicação mútua de significado. De fato, é quando se publiciza um campo da atividade humana, que se torna possível cobrar sentido à ação de outrem. O princípio republicano delimita o espaço para a necessária apropriação da soberania - como o dever de exercitar a cidadania - e, nesta mesma operação, lhe assegura a jurisdição dos atos que ali vierem a ser praticados, revestindo-os do princípio da responsabilidade.

Quando política, a responsabilidade refere o dever dos representantes realizar o bem público e, em contrapartida, o direito de avaliação, cobrança e sanção, que lhe é correspondente, será exercido pela cidadania. Daí, como derivação prática, a república se confunda com a periódica manifestação da vontade da soberania na investidura dos mandatos, no direito de voto.

Distingue-se o conceito de responsabilidade política - como princípio ativo ou dever de realizar alguma coisa, que refere o campo do direito público, da responsabilidade civil - que interdita ao cidadão o campo das ações delituosas ou danosas ao direito de terceiros.

Do primeiro conceito, decorrem formas e mecanismos de cobrança de expectativas positivas de conduta, dispensando-se sua prévia tipificação e configuração para efetiva sanção pela cidadania, eis que concernem ao campo da criatividade social e se fundam em julgamentos de valor, como direito subjetivo da cidadania. Do segundo, decorre o princípio da justiça retributiva, baseada na comprovação da conduta negativa, como descumprimento da lei, necessária a prévia tipificação do ilícito e a configuração plena da culpa para aplicação da sanção, eis que concerne ao campo da positividade jurídica e se funda no pressuposto da objetividade possível do seu intérprete e executor. Dessa conceituação retiram-se conseqüências relevantes para a engenharia institucional da democracia, pela vinculação de formas e mecanismos de cobrança aos tipos diferenciados de responsabilidade.

Estende-se o conceito de responsabilidade política aos atos, e expectativas de atos, exercidos pelos incumbentes no âmbito de sua investidura, ou seja, no âmbito das funções para as quais foram dignificados com o mandato popular. A responsabilidade política, é, por definição, permanente, significando isso que os mandatários, a qualquer tempo durante o mandato ou após o mesmo, poderão ter que responder pelo dever assumido de realizar o bem público. Quanto ao modo, diverge a definição no que respeita aos mecanismos de cobrança e ao elenco de sanções.

No elenco de sanções, adotadas nas democracias contemporâneas, distingue-se, num extremo, as que disciplinam o exercício da responsabilidade política do mandatário, restringindo o seu direito de ação - como interdição ao dever de realizar o bem público (que denominaremos atribuições positivas de responsabilidade). Entre estas, destacam-se as sanções que atingem a incumbência, em si, pela cassação do mandato (recall) ou pela negação do mandato em processo competitivo/seletivo (derrota eleitoral), daquelas que restringem a própria capacidade do incumbente para exercer mandatos (inelegibilidade). Firma-se aqui, o recurso ao imediato exercício da soberania, como reserva dos poderes delegados. O mesmo princípio, assiste à faculdade de exoneração ad nutum, com que o gestor público retira de um incumbente os poderes delegados em relação de confiança.

Num outro extremo, situam-se as sanções que cobram ao mandatário, do elenco de seus direitos pessoais e civis, a punição pelo flagrante descumprimento da lei. Incluem-se, entre estas sanções, o confisco dos bens resultantes de enriquecimento ilícito, a privação da liberdade e, no seu limite, a pena capital (que denominaremos retribuições de responsabilidade). Neste caso, a sanção será retributiva do ato, que é irresponsável por ferir as normas do direito positivo, configurando delito ou dano, mediante punições graduadas de acordo com a sua gravidade.

Em região limítrofe das atribuições positivas de responsabilidade e da justiça retributiva, um elenco de sanções à responsabilidade, atinge os direitos do mandatário na sua própria cidadania. É o caso das cassações de direitos políticos, que incluem, não apenas a capacidade de exercer mandatos (ser eleito), como também o de exercer funções públicas (mesmo em cargos de carreira) e participar na própria formação do consenso (votar, alistar-se em partidos, participar ostensivamente de campanha eleitoral, etc.). Para legitimação desta sanção a democracia vem procurando tipificar o crime de responsabilidade, pelo que a respectiva sanção, formalmente pertence ao domínio da justiça retributiva. Não obstante, a subjetividade ou ambigüidade no eventual enquadramento destes ilícitos - como é o caso da falta de decoro no desempenho da função - e o caráter sumário, as vezes mesmo plebiscitário, do julgamento, aproxima-os das características próprias às atribuições positivas de responsabilidade.

Responsabilidade política e quadros metainstitucionais

A prática da institucionalização democrática tem vinculado os mecanismos de cobrança aos tipos de sanção pretendida, fixando critérios que atendem a uma lógica própria destes institutos, cuja combinação define os regimes políticos ou seus quadros metainstitucionais (Stepan e Skach, 1993), para usar conceito mais contemporâneo.

Para atribuições positivas de responsabilidade, a regra básica é o recurso à direta expressão da cidadania, seja pelo recall (critério forte) ou pela renovação periódica do mandato em processo eleitoral (critério fraco); supletivamente, uma instância intermediária - o Parlamento, subroga-se nesta prerrogativa da cidadania, elegendo e destituindo, pelo voto de desconfiança (critério forte), os detentores de mandato Executivo. Para retribuições de responsabilidade, a regra básica é que o direito de cobrança e sanção, embora originário da soberania e, por conseguinte público, seja exercido indiretamente, pela instauração de processo para a configuração da ilegalidade e seu julgamento, em instâncias institucionais aptas, sejam estas independentes (critério forte) ou inter pares (critério fraco), assegurando-se ao réu a presunção de inocência e a ampla defesa.

Todos os regimes democráticos contemporâneos adotam a periodicidade das eleições como condição mínima da responsabilidade política. Limita-se a aplicação conhecida do recall a mandatos legislativos em sistemas de voto distrital. Para a cassação ad nutum de mandatos executivos, a correspondência do recall é o voto de desconfiança imotivado, o que o torna característica marcante de um conjunto estruturado de incentivos e regras decisórias: o parlamentarismo. Esse sistema de governo, com voto distrital, reúne, portanto, três níveis de atribuição positiva de responsabilidade (dois deles critérios fortes): a periodicidade das eleições (porém limitadas ao Legislativo); o recall para mandatos legislativos; e o voto de desconfiança para mandatos executivos.

O sistema de representação proporcional cria impedimento prático à institucionalização do recall para mandatos legislativos, eis que o questionamento de um mandato individual exigiria a convocação de eleição geral no âmbito da respectiva circunscrição. No presidencialismo, por outro lado, os mandatos executivos não são suscetíveis de atribuição positiva de responsabilidade por um critério forte, eis que não se lhes aplica o instituto do voto de desconfiança. No presidencialismo com representação proporcional (caso brasileiro), portanto, a cidadania carece de critérios fortes para a atribuição positiva de responsabilidade política.

No presidencialismo brasileiro, a cidadania não deixa de exercer diretamente a sua reserva de poderes delegados, em cobrança da responsabilidade política dos incumbentes, mas, exclusivamente, através de um critério fraco: a periodicidade das eleições para renovação dos mandatos. É o que tem municiado o questionamento do seu quadro metainstitucional, atribuindo-se-lhe como conseqüência a irresponsabilidade política da elite dirigente neste país.

De fato, a periodicidade eleitoral é um critério para a sanção à responsabilidade política, que não se pretende pontual, senão processual. E que não se pretende exclusivo para a configuração da democracia, muito embora as circunstâncias históricas do presidencialismo no Brasil o tenham reduzido à fragilidade deste recurso.

Pelo voto, a cidadania, gradativamente, poderá selecionar os mais aptos ao governo, desencorajando pelas derrotas eleitorais aos que não lhe conquistarem a confiança. Este critério, no entanto, não garante a efetiva aplicação da sanção de responsabilidade política a casos individuais: basta um candidato desistir de concorrer à reeleição, para excluir-se da possibilidade de uma atribuição positiva de responsabilidade, mediante a derrota nas urnas; posteriormente, contando com a pouca memória da cidadania, poderá retornar ao processo eleitoral sem o estigma de uma irresponsabilidade declarada. Mesmo concorrendo a mandato consecutivo, um incumbente poderá excluir-se da atribuição positiva de responsabilidade política se a sua base eleitoral for diferente daquela a que serviu no mandato anterior. Isso é favorecido pelo sistema de representação proporcional e pela duplicidade dos processos eletivos: proporcional (para mandatos legislativos) e majoritário (para mandatos executivos). É o caso de legisladores que, ao longo de um mandato, trocam de público, cultivando bases políticas diferentes daquelas que lhes asseguraram a investidura. É o caso, também, de péssimos governadores ou presidentes, que se elegem para cargos legislativos graças ao privilegiamento de seus redutos eleitorais, em detrimento do conjunto da circunscrição que os investiu no mandato executivo.

Lacunas de responsabilidade, tensões plebiscitárias e cesarismo

A indisponibilidade de um critério forte, para atribuições positivas de responsabilidade no presidencialismo com representação proporcional, deixa a descoberto necessidades objetivas de cobrança e sanção. Uma alternativa de supri-las ocorre, pelo deslocamento da direta expressão da cidadania à exigência de sanções retributivas.

Este deslocamento atinge, inicialmente a região limítrofe dos crimes de responsabilidade. Contamina com tensões plebiscitárias o campo jurisdicional, introduzindo o viés dos julgamentos políticos, como presunção de culpa, desqualificação da prova e negação do direito de defesa. No seu limite, esse deslocamento provoca a delegação de autoridade a um ditador (que pode até ser um órgão colegiado ou representativo, como o Parlamento ou a Convenção do Terror), para cobrar a responsabilidade política, como expectativa de ação, mediante aplicação discricionária de sanções retributivas. Do que resulta o autoritarismo cesarista e, no seu extremo, o totalitarismo pela indistinção das esferas do público e do privado, submetidos ambos à tutela das razões de Estado. (Da mesma forma a intangibilidade de soluções efetivas para a responsabilidade criminal, favorece a reivindicação da justiça privada, dos linchamentos aos grupos de extermínio; dos saques urbanos às invasões de terras).

O autoritarismo nas suas nuances, que respondem a graus de deslocamento na esfera do público e do privado, é um processo dinâmico e complexo, resultante de falha na tecitura institucional - ou seja, no arcabouço estratégico - das democracias. Nenhum sistema de governo, por isso mesmo, lhe está completamente imune ou a ele condenado. Com o voto distrital e recall, o sistema presidencialista nos Estados Unidos agrega um mecanismo de cobrança (de critério forte) pela cidadania que, conjugado à extensão do mecanismo eleitoral periódico para os mandatos legislativos e executivos, lhe assegura razoável nível de desempenho e controle da responsabilidade política, embora indisponha de um instrumento plebiscitário para a cassação de mandato executivo ao estilo do voto de desconfiança parlamentar.

Poderia se argumentar, que o nível de desempenho e controle da responsabilidade política, que se pode surpreender no sistema americano de governo, concerne mais à cultura política e aos mecanismos informais de organização da sociedade civil (grupos de pressão) naquele país, do que ao seu quadro metainstitucional. De fato, é possível que assim efetivamente aconteça, o que serve, no entanto, para estabelecer o caráter multifacetário da democracia e dos seus instrumentos.

Nos limites dessa análise, enfatizamos o levantamento dos processos formais de cobrança e sanção de responsabilidade na democracia. Não é lícito esquecer, sem uma referência, o quadro partidário e os processos informais de atribuição positiva de responsabilidade política, entre os quais se destacam: a ação dos grupos de pressão, o ethos burocrático e a cultura política. O incentivo à realização do bem público, a inibição e sanção de comportamentos irresponsáveis, por conta desses mecanismos e processos, agrega sentido e eficácia aos mecanismos formais de cobrança e sanção trabalhados neste texto. Foge, no entanto, ao escopo dessa análise, o aprofundamento de suas implicações, senão para confirmar uma intuição preliminar: são vários os caminhos da democracia e nenhum é intrinsecamente melhor, do que aquele que a experiência de cada povo e a sua prática democrática conseguirem realizar.

Não se veja nessas conclusões, a demissão do cientista político da sua própria análise, mas a percepção de que, tirando o reconhecimento básico da soberania popular, as opções da democracia não são doutrinárias, porém estratégicas, táticas e operacionais. Serve, também, a menção à importância do quadro partidário e dos mecanismos informais de cobrança e sanção de responsabilidade, para revelar, na ausência dos seus efeitos positivos, a crucialidade de um conjunto articulado e efetivo de formalidades, capaz de retroagir sobre a cidadania no incentivo e sustentação dos padrões de comportamento desejados.

Defendemos a tese, que o sistema presidencialista é, potencialmente, mais flexível, do que o parlamentarismo, para agregar e operacionalizar critérios fortes de cobrança e sanção à responsabilidade política - o que lhe assegura vantagem estratégica como ferramenta de engenharia institucional. De plano, o presidencialismo estende aos mandatos legislativos e executivos, a periodicidade do processo eleitoral direto (critério fraco), eliminando uma intermediação crítica no processo do recrutamento político pela cidadania. Uma primeira dimensão de consistência, exigível de um quadro metainstitucional presidencialista, para uma contribuição positiva à institucionalização democrática, é a agregação de mecanismos secundários (preferencialmente fortes), para atribuição de responsabilidade política aos incumbentes de mandatos legislativos.

No caso brasileiro, essa exigência torna indispensável uma reforma eleitoral, porquanto o sistema de representação proporcional vigente é carente desse requisito, além de apresentar outras graves distorções já fartamente exploradas pela literatura especializada. Discute-se, neste particular, a adoção do voto distrital puro ou do modelo alemão de representação proporcional com voto distrital, que aparentemente ganha mais consenso entre os analistas e políticos envolvidos no debate. O importante, para não perder-se a oportunidade, com divagações e fantasias, é a percepção clara de que o aspecto essencial dessa reforma será o reforço da capacidade de cobrança e sanção de responsabilidade política - tema da nossa reflexão.

Neste particular, cabe registrar a viabilidade dos dois modelos em discussão, desde que respeitadas as respectivas características e introduzidos os mecanismos de cobrança correspondentes. Espera-se que o legislador brasileiro ao introduzir a mudança necessária não copie o acessório, esquecendo o que é essencial para a consistência da reforma. Agregando-se à parte distrital de qualquer um desses sistemas a faculdade do recall, se terá assegurado um mecanismo forte de cobrança de responsabilidade política, ao menos para a metade dos mandatos parlamentares eleitos em distritos (na hipótese de implantação do sistema misto). A adoção plena do modelo alemão teoricamente agrega, também, um segundo mecanismo forte de cobrança, que é a lista bloqueada dos candidatos proporcionais. A expectativa é que, livres do controle direto das comunidades, os deputados proporcionais terão sobre sua atuação o controle político da disciplina partidária. (Essa última hipótese enfrenta, no entanto, no Brasil, o inconveniente de construir-se sobre um sistema partidário enraizadamente oligárquico, podendo vir a desencadear, por isso mesmo, um efeito contrário ao desejado, autonomizando-se ainda mais os detentores dos mandatos, relativamente ao controle e cobrança dos seus eleitores.)

Restaria, ainda, indisponível, no campo das atribuições positivas de responsabilidade, um mecanismo de cobrança ao exercício dos mandatos executivos, mais pontual e eficaz do que o processo eleitoral. Embora não o tenham claro, é sobre essa lacuna, que focalizam os argumentos contrários ao presidencialismo, quando registram a tendência empiricamente constatável, segundo a qual esse sistema estimularia a sociedade política a periodicamente reivindicar golpes militares (Stepan e Skach, 1993, p.231).

Presidencialismo com ostracismo: uma alternativa séria, conseqüente e indispensável, para a consolidação democrática

A questão atual da recorrência endêmica da ruptura institucional - ou do recurso ao golpe de estado - implica, antes do mais, numa resposta à questão substantiva, que o texto de Maquiavel já perscrutava: quem é o oprimido e quem deve exercer a soberania?

Assim, quando a teoria democrática formula o conceito de cidadania - já postula normativamente o povo como soberano. A nobreza ou qualquer outra oligarquia passam à condição de uma simples elite, cuja relação com a soberania é acessória e instrumental. E o prospecto da governabilidade democrática, que reconhece a inevitabilidade da sua presença e a crucialidade da sua circulação, passa a visualizar como seus maiores inimigos a corrupção do poder absoluto e a ociosidade da classe dirigente, que promovem a conspiração, justificam a resistência e induzem a alienação da soberania, como alternativa de sobrevivência, face a intolerável opressão.

Para o seu enfrentamento, a democracia tem postulado a necessidade de freios institucionais ao descontrole das elites, capazes de preservar a soberania e o interesse da cidadania. Tal é o sentido, que essa análise empresta aos mecanismos para atribuição positiva de responsabilidade política, que o princípio do governo republicano tem formulado. Caberia razão aos críticos doutrinários do presidencialismo, se esse regime, enquanto tal, fosse insuscetível de oferecer resposta ao problema da responsabilização política da sua elite executiva.

Já vimos que, por meios informais, o presidencialismo real - em nações de democracia avançada se sustenta como fórmula política, capaz de assegurar razoável patamar de responsabilidade política. Cabe, no entanto, investigar se, nas condições oferecidas pelos países em transição, que tentam consolidar democracias, onde o quadro partidário é frágil, o ethos burocrático é corporativo, e a cultura política é conformista e autoritária, o presidencialismo ofereceria alternativas para a cobrança da responsabilidade política. E se seriam essas capazes de manter sob controle o processo endêmico do autoritarismo ou, como o pretendem alguns, o fantasma do presidencialismo plebiscitário... como se o termo plebiscitário enquadrasse um juízo de valor negativo.

Exatamente, porque não se visualiza no termo plebiscitário uma característica, em princípio antidemocrática, mas ao contrário uma referência à soberania do povo, essencial à democracia, esta reflexão inclina-se a buscar no exemplo histórico das democracias plebiscitárias, o antídoto para o abuso do mandato popular em cargos executivos. É o que nos leva a explorar a possibilidade de resgate de um instituto ancilar da democracia grega.

Seguramente, a forma mais radical e contundente de atribuição positiva de responsabilidade política numa democracia foi a institucionalização do ostracismo. Instrumento de legítima defesa da cidadania, contra a apropriação indébita do poder social, este instituto apresenta duas características, que o distinguem, do mero reconhecimento do direito de resistência da cidadania e da justificação da violência, no golpe de Estado ou no tiranicídio.

Diferentemente do primeiro, que estabelece o princípio da sobrevivência com dignidade na desordem, que é opressão; o ostracismo é rotina de trabalho de uma ordem estabelecida para assegurar a liberdade. Ao contrário do segundo, pelo qual se funda a excepcionalidade no trato da cidadania e a desigualdade no julgamento dos incumbentes, recusando ao tirano as garantias de processo, até mesmo para privação do direito pessoal inalienável, que é a vida; o ostracismo rotiniza o direito de opor-se uma interdição legítima ao exercício de mandatos futuros a quem se demonstrou inconveniente na gestão da coisa pública.

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Há diferença essencial entre a sanção imposta no tiranicídio e no ostracismo, embora o caráter ainda não republicano da cidade-estado grega, que integrava na polis o público e o privado, permitisse aproximar a excomunhão da cidade do conceito de morte física (Aydos, Marco Aurélio, 1992).

Mesmo assim, os gregos diferenciavam formalmente estas sanções - Sócrates foi condenado à morte, não foi objeto de ostracismo. É com base na extrapolação dessa diferença, e levando em conta a evolução da democracia no governo republicano, que podemos resgatar o ostracismo, como um instituto, capaz de contribuir ao aperfeiçoamento das instituições democráticas em nossos dias.

Na complexidade da sociedade contemporânea, reconhecida também a distinção entre as esferas do público e do privado, torna-se desnecessária, ao ostracismo, a condição de exclusão física (por deportação ou morte).

Trata-se, antes, de configurar aqui uma interdição ao exercício da ação político-eletiva (aqui visualizada como exceção de inelegibilidade). Nestes casos, a sanção implicaria numa configuração mínima da cassação de direitos políticos, tradicionalmente praticada nas democracias contemporâneas. Institucionalizado o ostracismo, a aplicação de sanção com a utilidade prática dessa penalidade (cassação de direitos políticos), estaria afastada da região limítrofe da justiça retributiva pela limitação dos seus efeitos (ao campo da ação eletiva e governativa dos atingidos) e pelo seu inequívoco caráter plebiscitário. O instituto configurar-se-ia, indubitavelmente, como um critério forte de atribuição positiva de responsabilidade.

Como conseqüência provável, a pressão plebiscitária sobre as instâncias institucionais da justiça retributiva seria consideravelmente reduzida. A cassação plena de direitos políticos, poderia ter assim, um curso processual compatível com o princípio da ampla defesa, minimizando-se a possibilidade de configurarem-se os perigosos precedentes do julgamento político, como esteve próximo de acontecer, se efetivamente não ocorreu, no clima que, de alguma forma, presidiu o impeachment do presidente Collor de Mello.

Tal como o visualizamos, em roupagem contemporânea e compatível com o quadro metainstitucional do presidencialismo, o ostracismo configuraria uma condição rotineira de avaliação a posteriori, para o desempenho dos principais cargos executivos (prefeitos, governadores e presidente da república). Ao fim do seu mandato, na própria eleição do substituto, a população pelo voto de sim e não diria se mantém ou não a condição de elegibilidade do incumbente.

Na hipótese da reeleição vir a ser introduzida em nossa sistemática constitucional, o incumbente concorreria no primeiro turno em ambas as modalidades do sufrágio - eleição e ostracismo. Mesmo eleito, ou qualificado para o segundo turno, pela soma dos votos eleitorais, esta condição somente se efetivaria pela aprovação da sua elegibilidade no sufrágio do ostracismo. Essa sistemática introduziria, provavelmente, na postulação de uma reeleição, um obstáculo adicional - sem negar, no entanto a sua possibilidade. Ao enfrentar o sufrágio do ostracismo em uma condição competitiva com outros pretendentes ao próprio cargo, o candidato à reeleição enfrentaria um teste duro de sobrevivência política. Um contraponto útil, entretanto, à vantagem competitiva da própria condição do governante, eis que concorreria para coibir o vício possível da inevitabilidade das reeleições - o principal risco da eventual adoção desse instituto.

Aos ostracisados, seriam mantidos todos os direitos civis e os direitos políticos inerentes à pessoa, como o voto e a função pública da carreira, com a interdição, no entanto, dos atos políticos relacionados com o processo eletivo ou governativo (participação em campanha eleitoral, elegibilidade e possibilidade de designação para cargos de confiança ou de nomeação política).

Entenda-se, assim, por ostracismo, a exceção imposta ao exercício de capacidade eletiva (ou fiduciária), cujo fundamento não concerne à igualdade substancial do incumbente, enquanto pessoa, mas ao livre e expresso consentimento da cidadania. Acrescente-se, como fundamento desta exceção, que o incumbente terá ocupado publicamente posição institucional de poder, portanto assimétrica em relação com a cidadania, que lhe assinalou o estigma de uma identidade indesejada. E, como só há duas maneiras de obedecer em liberdade (a fórmula da autoridade): o consentimento ou a identidade com o legislador (Aydos, Marco Aurélio,1992), pelo ostracismo, como exceção de inelegibilidade, em ato próprio, personalizado e circunstanciado, a promessa do consentimento se lhe nega e a identidade se lhe recusa contra o futuro.

Para a cidadania e a sociedade organizada, a rotinização do ostracismo se apresenta, assim, como um sucedâneo do golpe de estado e, no seu limite, do tiranicídio, liberando o quadro institucional das respectivas tensões. O que se terá de calibrar, provavelmente, são as regras de duração dos mandatos governativos, com vistas a tornar mais efetivo o instituto, reduzindo-se a extensão do mandato e abrindo-se espaço para uma ou várias reeleições.

A necessidade de continuidade administrativa, sendo contemplada pela liberdade de reeleição, será utilizada, inclusive, como argumento para assegurar a sobrevivência política dos mandatários. De outro lado, a extensão reduzida dos mandatos assegurará a efetividade do controle e a desnecessidade da ruptura institucional. Com o ostracismo, o critério fraco da periodicidade eleitoral se acrescenta de um critério forte para atribuição positiva de responsabilidade política, que será tanto processual (atuando sobre o recrutamento da elite dirigente), como pontual (atingindo todos e cada um dos mandatários executivos).

É bem verdade, que a função governativa, com o ostracismo, será estigmatizada de forte desincentivo - será necessário coragem e desprendimento para candidatar-se a um cargo, que poderá encerrar a carreira política do incumbente. Mas não é exatamente isso, que lhe consignaria qualidade?

Aos aventureiros, a magnitude do risco provavelmente desencorajaria. Aos golpistas de toda a estirpe, como aqueles que se acostumaram a se eleger com os pobres e a governar com os ricos, o ostracismo provavelmente arrefeceria. Se veriam constrangidos a levar a sério a condição primeira da democracia, que é a necessidade de um governo consistente com a vontade e o julgamento da maioria. Quanto aos homens de boa estirpe, que a carreira não seduz, senão pela oportunidade do serviço à causa da cidadania, as eventuais "injustiças" do processo, as aceitariam como a taça de cicuta pelo filósofo grego, que amava a cidade ao ponto de compreender, que a dignificava em se matando, que a conservava em se perdendo.

Isso é tão mais verdade, porque a rotinização do ostracismo, atingiria a gregos e troianos, honestos pela sua truculência e desonestos pela sua insídia, demagogos pela sua incompetência e tecnocratas pela sua insensibilidade, reformadores carentes de persuasão e conservadores destituídos de razão. Nivelaria por cima, o que o processo eleitoral tende, nas circunstâncias da democracia brasileira, a nivelar por baixo, atraindo, pelo excesso de incentivos, individualistas e inescrupulosos à investidura dos cargos eletivos, transformados em patrimônio profissional de uma autopretendida classe política. Como conseqüência, a desobstrução das artérias esclerosadas da nossa vida política, abriria espaço para lideranças mais comprometidas com a missão do serviço público, do que com as suas mordomias, sem prejuízo da remuneração digna, compatível com o exercício da missão.

A reforma das atitudes, que o cotidiano da política democrática demanda, exige estruturas de sustentação. A institucionalização do ostracismo é uma alternativa séria, conseqüente, e até mesmo indispensável, para a consolidação democrática de uma sociedade em transição que, definitivamente, no descortino de um horizonte político, optou por um regime de direta investidura do mandato executivo.

*Excertos de: AYDOS, Eduardo Dutra: "Democracia Plebiscitária: Utopia e Simulacro da Reforma Política no Brasil", Porto Alegre/Canoas, Ed. da Universidade/UFRGS, Centro Educacional La Salle de Ensino Superior, 1995, páginas 58/69 - Este texto esteve disponibilizado no site Política Hoje em julho de 1999.

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