O Forum “Social” Mundial

 

  A fins de Janeiro deste ano celebrou-se em Nairobi (Kénia) o VII Forum Social Mundial. O FSM hoje já resulta conhecido como o maior referente “altermundialista” -“por umha globalizaçom alternativa”-, graças à atençom mediática que o capital lhe tem prestado. É logo um bom momento para recuperar a memória dos seus inícios (fins de 2000, começos de 2001) em Porto Alegre, onde tiveram lugar as três primeiras ediçons e mais a quinta. Faremo-lo através dumha série de textos de companheir@s brasileiros, quem por essas datas se agrupavam em vários colectivos autónomos* e na Rede Anticapitalista de Belo Horizonte. Compartimos em linhas gerais a sua análise e denúncia de entom, a que lhes motivava a rejeitar participar neste foro, explicando mui bem quais interesses representa este organismo desde as suas origes.

 

 

INDICE DOS TEXTOS

 

Não iremos ao Forum "Social" Mundial! E não estamos sós! (2001)

 

Comunicado de Comunidade Piracema (2001)

 

Mais do mesmo... Novamente afirmamos:

Não vamos ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre!!! (2002)

 

Considerações extemporâneas sobre a nossa não-ida ao FSM (2002)

 

Seremos diretos: SOMOS CONTRA O F$B!!! (2003)

 

 


 

 

FSM 2001

Não iremos ao Forum "Social" Mundial! E não estamos sós!

 

  Companheir@s,

 

  Nós não iremos ao autoproclamado Forum Social Mundial. Em nosso coletivo, há um "consenso" de que tal Forum é a tentiva dos setores da esquerda tradicional, a velha esquerda estatista e burocrática, de apropriar-se da luta contra a "globalização" capitalista numa perspectiva nacional - desenvolvmentista. É a esquerda que quer o capitalismo "humanizado"; que quer "socializar" a mercadoria; que quer governar o Estado. Não é à toa que se realizará em Porto Alegre, escolhida, aliás, como capital permanente do evento: é o laboratório dos governos da esquerda oficial em nosso país, com o PT à frente.

 

  O Forum é uma articulação que vai desde a Conferência dos Bispos Católicos (CNBB), passando pela degradada CUT, os partidos da esquerda institucional, o MST, até organizações empresariais.

 

  A estrutura do Forum é hierárquico, verticalizado, como sói de ser esses eventos da esquerda burocrática. Palestrantes/conferencistas, de um lado, e, de outro, público espectador. Não tem nada a ver com as nossas experiências horizontais, democráticas, autônomas, organizadas desde baixo, como no N30, M1, S26 e assim por diante. Aliás, é preciso que se diga: nenhum dos grupos que estão organizando o FSM participou de nenhum dos dias de ação global contra o capitalismo!!!! Eles não se sentiriam bem: o que eles sabem fazer são os velhos congressos de "representantes" que não representam ninguém, manifestações que mais parecem "showmícios", campanhas eleitorais mais estetizadas do que as dos partidos tradicionais da burguesia...

 

  O que eles querem com esse Forum?

 

        1. Apropriar-se de uma luta da qual não participam: os dias de ação global conta o capitalismo;

 

        2. Absorver a crítica anticapitalista numa elaboração de um projeto de administração capitalista, cujo centro a ilusão de uma política de "desenvolvimento nacional";

 

        3. Catapultar-se eleitoralmente como alternativa de governo.

 

  Nós não vamos ao Forum Social Mundial. Nem nós, nem a grande maioria (se não a totalidade) dos grupos que vêm participando das lutas em nosso país contra a farsa dos 500 anos, das ações globais, que rejeitaram a burocratização e a partidarização do II Encontro Americano pela Humanidade e contra o Neoliberalismo...

 

Coletivo Contra-a-corrente

6 de Dezembro de 2000

 

 


 

  Compas, camaradas,


  Disseminou-se a partir de Fortaleza a mensagem lançada pelo Coletivo Contra-a-corrente: um inequívoco posicionamento sobre o Fórum Social Mundial, ao qual também não iremos.


  A direita e a esquerda do capital, no mesmo período, nas mesmas datas — de 25 a 30 de janeiro de 2001 —, reunirão suas cúpulas, em Davos (Suíça) e em Porto Alegre (Brasil). Respectivamente, em Davos, a cúpula de direita do Império; em Porto Alegre, a cúpula de esquerda do capital (os socialistas legalistas de todos os matizes). Em Davos, o Fórum Econômico Mundial (FEM); em Porto Alegre, o autoproclamado Fórum Social Mundial (FSM).


  A reunião de Davos, por tudo que expressa de cinismo e hipocrisia, por tudo que tentará decidir e manter inconfessável, será alvo da fúria da sabotagem, será contestada local e mundialmente. Não se medirão esforços para a sabotagem da reunião de Davos.


  Um robusto aprendizado nas lutas vem sendo bem exercitado e será sentido também em Davos: de Chiapas a Bolonha, de Genebra a Karnataka, de Birminghan a Genebra, de Londres a Colônia, de Seattle aos levantes do Equador, de Washington a Praga, de Buenos Aires a Cochabamba, de Rosário à Colômbia, do Brasil à Nice. Enquanto as cúpulas, cada uma em seu circo, promovem em seus encontros, nós, ingovernáveis dessa terra, faremos avançar mais e mais a composição de classe na mobilização irrefreável das autonomias, do poder da insubordinação: horizontalmente, sem delegações ou representações, cada uma e cada um, todas e todos, sem centralismos, em todos os lugares....insones, incansáveis, na inteligência da cooperação, como poder constituinte incancelável, como antagonismo difuso: sem estado, sem partidos, sem patrões.


  Diferente da reunião da direita do capital e sua publicidade seletiva de inconfessáveis razões totalitárias, a reunião da esquerda do capital está cercada de muita publicidade e com certeza atrairá honestos mas desavisados lutadores, ativistas, militantes da luta concreta, ativ@s e inquiet@s camaradas, assim como em 1999, em dezembro, fomos atraídos para o II Encontro pela Humanidade contra o Neoliberalismo, em Belém do Pará. Naquela ocasião, tudo fazia-nos crer que participaríamos de um encontro de lutadores para a troca de experiências de luta; tudo fazia-nos crer que seria um encontro em tom zapatista. Não passou de uma tentativa de manipulação realizada por uma tendência interna do maior partido da esquerda do capital no Brasil, o Partido dos Trabalhadores. A “Força Socialista” tentou amesquinhar um encontro continental reduzindo-o a um encontro para a autopromoção de sua administração municipal e seu “modo petista de governar”.


  Aqueles e aquelas que foram para se conhecer e que agora lutam junt@s, rebelaram-se, forjaram um espaço liberado e subverteram um encontro que desde então traz o gosto amargo de um triste aprendizado comum e planetário: o único partido admissível é a própria classe em movimento. O único partido que pode existir é a dinâmica de composição e recomposição de classe do proletariado em toda a sua diversidade, pluralidade, multidimensionalidade e singularidades, em toda a sua autonomia de classe e experiências autonomistas no antagonismo difuso da luta de classes. O único partido é a auto-organização de classe nas lutas, como subjetivação revolucionária e como sujeito composto de infinitos sujeitos singulares, necessariamente cooperativo e inteligente (a inteligência da cooperação), como poder ativo de insubordinação.


  Muito do que aprendemos em Belém pode ser lido no balanço do II Encontro, que realizamos ainda como Comitê Santa Maria pela Humanidade contra o Neoliberalismo, texto que pode ser encontrado na página www.ucm.es/info/eurotheo/papeles.htm. Torna-se importante que esse balanço seja lido e que uma densa reflexão seja feita. Estamos abertos à polêmica e à discussão sobre tal material.


  Agora, com o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, muita coisa se recoloca para nós: os primeiros documentos divulgando o fórum já denunciavam em seus interstícios o que também para a cúpula da esquerda do capital precisa ser mantido inconfessável, insuspeito, oculto: a esquerda do capital precisa legitimar-se, precisa capitalizar —e essa é a palavra mais adequada— o saldo das lutas que não travaram. Capitalizar e apropriar-se, acumular capital “político” para seu projeto de alternativa institucional. Acumular o capital da hegemonia, para usar suas próprias palavras. Sendo toda e qualquer hegemonia sempre dominação, posição e reposição da clássica separação entre quem manda e quem obedece, quem pensa e quem faz, da sociedade política e da sociedade civil, do público e do privado, em uma palavra, o modo burguês de organizar a vida das pessoas enquanto tuteladas. Ao dizer que a partir de sua realização, só então entraremos numa nova fase da luta internacional, os documentos confessam toda a arrogância que toda a proposta hegemonista traz em si: uma referência retórica à Batalha de Seattle, a lista dos convidados para serem as estrelas do espetáculo, etc. Tudo denuncia: minimizar a luta concreta e por-se como o demiurgo do que só então passa a ter sentido e relevância porque receberá o toque de Midas que fará do profano algo sagrado; do vil-metal, ouro puro.


  Nos documentos relativos ao FSM, nada há sobre a Ação Global dos Povos, e quando os últimos embates aparecem como evidência inequívoca são sempre caracterizados como expressões do espontaneísmo e da imaturidade dos movimentos, “carentes” que estão de supostas lideranças (adivinhem quem?!?) ou então de pretenso programa (adivinhem qual?!?).


  Eis a pretensão do fórum, dar conteúdo e programa àquilo que é vazio de proposições. Assim, serão feitos esforços no sentido de responder às debilidades do sistema capitalista, na tentativa de achar saídas “responsáveis” e “conseqüentes” aos desequilíbrios causados pela irracionalidade do sistema. Contestações antagonistas surgem a cada momento, mobilizamo-nos para desestabilizar o sistema e seus regimes e, enquanto isso, a esquerda do capital sugere que ser responsável é comprometer-se com a governabilidade do Império e com a sustentabilidade de seu desenvolvimento inconfessavelmente terrorista, totalitário e exterminador.


  Aos ventos contestatórios de Fortaleza esboçamos o carinho de nosso acolhimento.


  Nós também não iremos ao Fórum “Social” Mundial!!!

 

Comunidade Piracema

20 de dezembro de 2000

 

 


 

FSM 2002

Mais do mesmo... Novamente afirmamos:

Não vamos ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre!!!

 

  Aqui estamos, mais uma vez, ajudando a semear em palavras/atos o desejo e o esforço prático de que nossa resistência cotidiana não seja despotencializada e capturada pelas armadilhas do sistema único do mercado e do Estado, hoje personificado e materializado pelo poder quase absoluto das corporações transnacionais e por seus instrumentos decisórios e executivos em escala mundial.

 

  Este esforço que ora empreendemos pretende dar prosseguimento ao que foi expresso em uma nota anterior, elaborada conjuntamente, em janeiro/fevereiro de 2001, pelo Coletivo Acrático Proposta, Coletivo contra a corrente e Comunidade Piracema. No interior daquela nota eram indicados os motivos pelos quais esses coletivos não foram ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, realizado - sob os aplausos dos capitalistas e sob as luzes de sua mídia -em janeiro de 2001. Muito mais do que uma continuidade do anterior, este manifesto é resultante da crítica prática elaborada desde há algum tempo e que, a partir do antagonismo cotidiano ao sistema capitalista, luta contra as suas leis de mercado, contra a representação e a passividade.

 

  Se nesse momento novamente nos manifestamos pela não ida ao espetáculo de Porto Alegre, versão 2002, é também porque a trajetória histórica de nossas lutas - as lutas d@s de baixo - demonstra que a participação em e a legitimação dos espaços construídos pelo inimigo em nosso meio, só podem servir para desviar nossas melhores energias e preparar derrotas traumáticas e sistemáticas.

 

  Pois bem... Não fomos e não vamos ao FSM. E não tememos os rótulos que possam advir dessa atitude. Afinal, sabemos que a esquerda do capital, obediente e discípula dos valores do mercado e do Estado, aprendeu a separar, dedurar e classificar ao gosto de suas ideologias quem, nos movimentos sociais, não reza em suas cartilhas. Mas já levamos porrada demais e, felizmente, aprendemos que se misturar com o inimigo é como semear trigo em meio ao joio, ou seja, é condenar o trigo à asfixia.

 

 

FSM 2002 - A re-edição do espaço concedido das cúpulas, da recaptura e do falso diálogo

 

  Mais uma vez, milhares de todos os continentes acorrerão ao FSM: governos de esquerda, entidades clericais, ONGs, intelectuais, catedráticos, estudantes, grupelhos ideológicos detentores de toda verdade ou de humildes meias-verdades, políticos profissionais, sindicalistas, ou seja, representantes e especialistas de toda espécie; igualmente, gente desavisada e curiosa, muitos turistas e até mesmo indivíduos e coletivos revolucionários, organizados ou desorganizados, alguns honestos e de boas intenções. De fato, o arco-íris perde feio para a infinidade de cores que vai se estabelecer em Porto Alegre, em fins de janeiro e início de fevereiro de 2002. Perde feio exatamente ali onde a diversidade de cores do arco-íris é uma diversidade real, ao passo que o falso arco-íris do FSM é o inútil arremedo da diversidade que o mercado e os estados conseguem produzir quando para isso se esforçam.

 

  Mas até já podemos antever os resultados desse espetáculo: a promessa de lutar contra e em prol de muitas coisas. Lutar contra o domínio do capital especulativo sobre o produtivo, contra o modelo econômico excludente (mas nunca contra o próprio capital e seus estados); reivindicar por mais verbas sociais, pela taxação do capital especulativo, pela participação popular, cooperação e autogestão local, enfim, por medidas concretas de incremento da cidadania plena, num esforço em desenvolver o protagonismo da sociedade civil, ampliar e democratizar ainda mais os programas e as finalidades das instituições globais de crédito financeiro para projetos sociais, esforços há muito sugeridos pelos setores hoje hegemônicos do capital transnacional, através do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros instrumentos. Os protagonistas do FSM lutarão por muitas coisas, desde que pelo bem do estado democrático de direito e por um bom desenvolvimento capitalista com distribuição de renda e justiça social - como se isso fosse possível sob o domínio mundializado do mercado e do sistema de estados - sempre sem pôr em xeque o próprio desenvolvimento capitalista.

 

  Num jogo de cartas marcadas, o único protagonista real é quem as dá; @s demais jogador@s são apenas coadjuvantes que, conscientes ou ludibriad@s, colorem e ajudam a corroborar a farsa. É desse modo que o FSM se constitui como um espaço das cúpulas, dos dirigentes e chefes da sociedade civil burguesa, para os quais a condição de assalariad@ é o objetivo essencial a ser atingido, desde que com bom salário e capacidade de consumo. Eis a garantia básica de que haverá sempre eleitores e bases políticas, sindicais, etc para garantir a fortaleza e a legitimidade das instituições democráticas e da representação e o poder que necessariamente elas comportam. O FSM é um paraíso dos especialistas de esquerda, um exemplar exercício das separações entre os que pensam e os que fazem, os que falam e os que assistem e/ou ouvem, os que decidem e os que executam. A passividade que concede fôlego ao sistema é fortalecida no FSM através de suas palestras e pequenos arranjos cosméticos, como as oficinas e os acampamentos que tentam seduzir a juventude e muit@s anticapitalistas. Estes acabam, no final das contas, envolvid@s como massa manobrada ou, no máximo, como vanguarda crítica, pois têm seus discursos e iniciativas autônomas engolidas por uma supremacia oficial que só poderia ser neutralizada e destruída através de espaços que lhes fossem antagônicos desde a raiz e em tudo.

 

  Um espetáculo como o FSM é um momento central do sistema, pois tem o objetivo de forjar um pacto social democrático que ponha rédeas no movimento contestatório mundial sob as mãos dos fiéis ideólogos e representantes da esquerda do capital. Como alternativa de administração do sistema mercantil-estatal, com relativa influência nos meios sociais de resistência cotidiana, a esquerda do capital procura, desesperada, recuperar para a ordem as lutas e organizações autônomas d@s de baixo para enquadrá-las nesse pacto. Desde Seattle e, principalmente, após as insurreições do Equador, da Bolívia; desde Gênova, e mais recentemente na insurgência d@s proletarizad@s que vivem sob e contra o Estado argentino, a esquerda do capital busca desesperadamente implementar esse projeto de despotencialização e captura da autonomia. Eis a verdadeira intenção do FSM: colocar a rebeldia sob o domínio institucional, intenção esta que ultimamente tem tomado mais fôlego devido ao clima de "guerra e anti-terrorismo", fato que exigiria mais moderação, cautela e sapiência dos "movimentos antiglobalização", segundo os hipócritas ideólogos de plantão.

 

  Não pode haver no FSM lugar para a horizontalidade das relações diretas. Antes, o FSM credencia-se como espaço de cúpula dos agentes do capital corruptores das resistências parciais cotidianas. Enquanto os agentes hegemônicos do FSM estimulam na vida cotidiana as hierarquias próprias do mundo da mercadoria, as resistências autênticas e as lutas sociais perdem cada vez mais a capacidade de se desenvolver como iniciativas autônomas, diretas e solidárias, como uma negação prática do capital capaz de se contrapor aos ataques diretos ou sinuosos que este realiza com a finalidade de impedir uma ação coletiva anti-mercado e anti-Estado.

 

  Da mesma forma que o esforço das demais forças da ordem democrática do capital, o FSM estabelece, através do falso diálogo, sutilmente, a conservação das hierarquias. O falso diálogo se dá antes e além do próprio estabelecimento do FSM, já que a existência de um espetáculo como o Fórum só é possível a partir do espetáculo cotidianamente vivido por muitas organizações e lutas de resistência; basta observarmos como os valores e métodos da ordem estato-mercantil, como a tutela pelas lideranças, o ativismo, o autoritarismo, o verticalismo organizativo, o machismo, a homofobia etc. estão arraigadas em várias destas experiências de "resistência". Não podemos falar de relações diretas, de horizontalidade e de diálogo prático em espaços que não estejam fundados na socialização direta de experiências efetivas de luta contra o capital.

 

  Além dos seus promotores, também irão ao Fórum os autoproclamados revolucionários de várias gradações vanguardistas, dos leninistas e guevaristas aos troskos e maoístas; ali, irão para espernear, denunciar e demarcar, buscando obter ganhos à sua posição, depois de terem devidamente esclarecido, com a ajuda da ideologia revolucionária de suas bíblias, os "iludidos", mas "honestos" e "combativos" transeuntes do FSM. Entretanto, o Fórum precisa ser criticado não essencialmente devido ao reformismo da esquerda brasileira, de ATTAC & Cia., suas hegemonias, suas políticas e seus programas burgueses, mas sobretudo porque, independentemente de quem o coordene ou o conduza, o FSM é um espaço baseado na sociabilidade burguesa, com suas representações, separações e passividade, fundado no falso diálogo e na falsa diversidade e na tolerância próprias do mundo burguês democrático. Como parte do espetáculo, os grupelhos autoritários candidatos à vanguarda radicalizada são desde sempre também parte do espírito democrático do Fórum e não por acaso tão estatistas quanto os seus promotores, embora em defesa de um suposto "estado revolucionário". Todos fazem parte do espetáculo porque afinal é necessário ao espírito burguês que haja no Fórum, como no parlamento ou nas entidades sindicais, as oposições, as vozes "radicais" dissonantes participando dos momentos "horizontais" - e, de preferência, juvenis - do evento. Afinal, "outro mundo é possível" e tanto mais será "outro" quanto mais colorido for o espetáculo do espaço consentido de Porto Alegre. Que o mesmo - o capital e o estado - seja aquilo que se afirma por baixo desse falsamente outro, é coisa já dita e sabida...

 

 

Por espaços antagônicos aos espaços do sistema único do mercado e do estado

 

  Há, contudo, diversos compas de luta anticapitalista, que conosco têm atuado cotidianamente no embate autônomo contra o capital, que desejam aproveitar a estrutura do Fórum para constituir espaços paralelos ao FSM a partir dos quais seja possível avançar na interlocução entre os movimentos e coletivos autônomos e libertários.

 

  A aspiração presente nas convocatórias a esses espaços paralelos, aspiração de construir espaços autônomos de diálogo e socialização de experiências, é também a nossa. Tod@s @s anticapitalistas autônom@s e libertári@s, tod@s aquel@s que construímos cotidianamente a auto-organização e a luta contra as hierarquias, a começar pelo combate à hierarquia do trabalho assalariado, pensamos ser fundamental constituirmos espaços autônomos que materializem, de maneira autônoma, o diálogo entre as resistências que buscamos efetivar cotidianamente pela rebeldia dos nossos corpos, mentes, afetos e palavras. Tod@s nós desse campo anticapitalista e anti-hierárquico reconhecemos desde o princípio ser o FSM um espaço do capital. Entretanto, vári@s compas, ainda assim, consideram não haver problemas em ir até o espaço do Fórum e aproveitá-lo para a constituição de atividades paralelas, desde que tais atividades mantenham efetivamente o seu caráter autônomo.

 

  Mas perguntamos: poderá ser autônomo um espaço construído à sombra do manto dos reis e dos padres? Poderá ser efetivamente autônomo um espaço construído à sombra do mercado e do Estado? Acreditamos decididamente que não. A ida ao FSM "aproveitando" a estrutura montada pela esquerda do capital compromete a capacidade autônoma de gerir as lutas por nós instituídas na medida em que nos põe concretamente a reboque das iniciativas da esquerda do capital. A necessidade de ir ao Fórum, aproveitando sua estrutura para subvertê-la não é mais do que a confissão de nossa própria incapacidade de autonomamente construir espaços de socialização no antagonismo real ao capital.

 

  Só será autônomo, efetivamente, um espaço estabelecido por meios autônomos, pela decisão e pelo esforço comum de construir e coordenar espaços de diálogo entre @s que nos movemos, na luta cotidiana, a partir da insurgência concreta contra o capital e o Estado.

 

  Não é só um problema de método ou de opção. O que está em xeque nessa conjuntura é a própria possibilidade de avançarmos na nossa resistência autônoma. Existem hoje condições para que ergamos momentos e espaços permanentes de diálogo direto e efetivo que sejam concretamente antagônicos àqueles criados pelo sistema com o objetivo de nos confundir e de dissimular com cantos de sereia a real intenção de neutralizar e minar passo a passo nossos esforços de negação ao capital. Insistir em permanecer a reboque dos esforços da esquerda do capital e do estado é abrir mão da nossa própria ação autônoma de criar espaços autônomos de diálogo.

 

  Não acreditamos que esse caminho que propomos seja nem o mais cômodo nem o mais rápido, muito pelo contrário. Para efetivá-lo, teremos que nos multiplicar em milhares e milhões, teremos, sobretudo, que aplicar os nossos melhores esforços em tecer esse diálogo real e permanente, quebrando a lógica das separações, das disputas, das igrejas. Mas alguém já aprendeu a nadar sem entrar na água?

 

  Tais espaços de diálogo, devemos construí-los como algo inseparável de nossas resistências cotidianas contra o mercado e o estado, de modo que os diálogos das experiências signifiquem a socialização de nossos esforços práticos, idéias e sentimentos, que partamos aí da nossa experiência real de luta e não das ideologias. Trata-se, pensamos, de constituir uma cultura de luta autônoma antagônica à "cultura política", própria da esfera do estado. Dizer-se contra o mercado e o estado e espalhar aos quatro ventos tal "boa nova" é fácil, pois podemos dizer tudo o que queiramos (inclusive no próprio FSM). Difícil e necessário é construir pela e na experiência prática as tentativas permanentes de tod@s @s que resistimos de dialogar horizontalmente; difícil e necessário é desenvolvermos nossas lutas com diversidade, criatividade e autonomia, adotando cotidianamente atitudes que constituam embrionariamente a sociedade sem estado nem mercado que queremos para inventar um mundo radicalmente outro.

 

  Até aqui não fomos capazes de constituir entre nós espaços permanentes de diálogo que fossem além dos contatos em ações pontuais, como nos dias de ação global. Os espaços mais demorados de encontro e discussão que fossem modos de diálogo prático permanentes e trocas de experiências a partir do diverso que somos, até aqui, não foram priorizados por nós. Talvez, sequer tenhamos nos dado conta da importância da construção desses espaços através de meios autônomos. Mas quando surge uma iniciativa decretada pelo estado como esta do FSM, muitos correm até ela. Ora, compas, pensamos que já passa da hora de tornarmos ato aquilo que temos dito: ação direta contra o capital e o estado é, necessariamente, ação direta CONTRA eles. Ir ao FSM em ônibus financiados pelo estado é uma negação em ato do que dizemos. Aproveitar espaços construídos pela esquerda do capital significa utilizar a sua própria lógica, conforme a qual recomenda-se usar as instituições para transformá-las. Não estamos, é evidente, dizendo com isso que @s compas que estão indo ao FSM são, tod@s, à imagem e semelhança da esquerda do capital, reformistas como ela. O que dizemos é que, a despeito de nossas boas intenções, ao usar o raciocínio de aproveitar espaços, entramos num perigoso terreno que é o de abrir mão da autonomia de nossas lutas. Tesão verdadeiro procura o que deseja e não simplesmente deseja o que encontra.

 

  Basta que pensemos numa atividade prevista para março deste ano e o modo como até aqui temos nos relacionado com ela para que nos demos conta do descaso com que temos tratado a autonomia das nossas lutas: trata-se do ANTI-BID, primeira manifestação do calendário da Ação Global dos Povos que acontecerá sob o estado brasileiro, mais exatamente em Fortaleza entre os dias 7 e 13 de março de 2002, por ocasião da reunião executiva do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Aproveitar o momento de combate ao BID para estreitarmos o diálogo e a troca de experiências entre @s vári@s indivíduos e setores anticapitalistas que vivemos sob o estado brasileiro e em outros países, construindo junto com a manifestação contra o BID um espaço de troca de experiências e de diálogo efetivamente autônomo, parece-nos ser algo fundamental, que deveria estar ocupando as nossas discussões. Ao contrário, estabelecemos uma separação entre a "ação" e o "encontro", como se a autonomia que temos para construir a ação direta de combate ao capital não fosse possível quando se trata de discutir os caminhos de nossa luta.

 

  Que estranha atração exerce o FSM sobre nós? Será impossível nos colocarmos a tarefa concreta de construirmos espaços autônomos? Muit@s nos dirão que não são atividades excludentes e que podemos participar de ambas ou priorizar o ANTI-BID e ainda assim ir ao FSM. O que concretamente queremos perguntar às/aos divers@s compas de luta anticapitalista que pretendem ir ao FSM é: quais são os esforços que efetivamente foram desenvolvidos até aqui para construir espaços autônomos de troca de experiências e idéias? Por exemplo, o Congresso da AGP, em Cochabamba, não mereceu da maior parte de nós um esforço nem parecido com aquele de construir espaços paralelos no FSM. Tampouco houve ressonância à proposta de constituir um encontro de anticapitalistas autônomos que vivem sob o estado brasileiro. Até quando permaneceremos incapazes de nos pôr a dialogar concretamente, desenvolvendo para isso os nossos melhores esforços e energias?

 

  Esperamos que em março, em Fortaleza, possamos estar o maior número de anticapitalistas anti-hierárquicos e que possamos construir ali, no calor da ação direta, espaços assembleários de discussão da ação e da luta cotidiana. Esperamos que aquel@s que não possam estar em Fortaleza, construam suas mobilizações em suas cidades, como nos demais dias de ação global. Mas, concretamente, pensamos que a ida ao FSM, além de consistir num profundo equívoco, na medida em que fortalece um espaço do capital e do estado, significa a confissão de impotência ou de cegueira quanto à possibilidade de constituirmos, por nossos próprios meios, o espaço de diálogo na insurgência contra o capital. Não execramos aquel@s anticapitalistas que, de fato, irão ao FSM, pois a nossa crítica fundamental é ao espaço ali constituído e ao que ele significa como despotencializador de valiosos esforços. Apenas lamentamos que muit@s d@s que lá estarão presentes não poderão ir para Fortaleza durante o ANTI-BID. Mas a tais revolucionários dizemos: "rosa também se muda do campo para o deserto, de longe também se ama quem não pode amar de perto" (versos tradicionais do sertão do Piauí).

 

  

Uma última observação...

 

  Esta nota é um esforço inicial de contraposição ao FSM, esforço ao qual chamamos que tant@s outr@s compas possam somar-se, assinando e multiplicando a sua divulgação massiva, antes, durante e após o FSM.


  Um abraço forte!

 

Janeiro de 2002, sob os sons e as cores da insurreição

d@s proletarizad@s contra o estado argentino.

 

Coletivo Acrático Proposta (Belo Horizonte)
Proletarizad@s contra a corrente (Fortaleza),
Alguns anticapitalistas do Rio Grande Sul e do Ceará,

Moésio Rebouças (São Paulo), Anselmo Malaquias, Tomás Bueno (Pirenópolis)
vivendo sob e contra o estado brasileiro

 

 


 

 

Considerações extemporâneas sobre a nossa não-ida ao FSM

 

  Com o apoio dos meios espetaculares de informação e mistificação, do grande capital privado e do aparato estatal iniciou-se, com muitas luzes e aplausos, para após alguns dias concluir-se de modo pálido e sem charme, ainda que róseo, o Fórum Social Mundial (FSM),em Porto Alegre, Brasil, em Janeiro deste ano.

 

  Ali, durante alguns dias, os candidatos a gerentes do sistema, ainda que candidatos a postos muito inferiores na atual hierarquia mundial do capital, reuniram-se para dar legitimidade contestatória às recomendações de "democratização", "participação", "diminuição da pobreza", "cooperativismo" e "desenvolvimento ecologicamente sustentável"; recomendações que, desde há alguns anos, o Banco Mundial vem fazendo aos governos nacionais e locais. Anunciado como contraponto propositivo ao Fórum Econômico Mundial, realizado anualmente na cidade de Davos, na Suíça, o qual reúne diretamente em assembléia os senhores do mundo e seus mandatários mais próximos, o FSM foi pensado e realizado (e por isso obteve o apoio do sistema, desde a cobertura ampla e diária da rede Globo nos noticiários, no seu canal a cabo, e nas telenovelas ao aparato estatal colocado a seu serviço) para se constituir na via de integração do "movimento antiglobalização" aos mecanismos de negociação que o capital mundializado tem buscado criar. Em outras palavras, um instrumento de pacto social mundial; em conseqüência deste conteúdo, a sua forma e sua dinâmica fundaram-se, desde logo, na estrutura vertical e hierarquizada que compõe a sociedade atual.

 

  Composto e determinado em sua dinâmica essencialmente por todas aquelas fatias da contestação consentida, reunidas em Porto Alegre para se apropriar programaticamente do que o capital mundial quer e precisa para a manutenção de um sistema que já não pode ser reformado, senão nas idéias e suas ilusões, o que só é possível na medida em que ele próprio se aproprie das contestações verdadeiras dos de baixo: eis o que foi, efetivamente, o FSM e também o que ele demonstrou-se ser em sua declaração final.

 

  Mais de mil jornalistas, em sua maioria estrangeiros, funcionários das principais empresas e agências internacionais de informações; centenas e milhares de funcionários de ONGs, sociólogos, assistentes sociais e arrivistas de toda espécie; a classe média democrática e ressentida, com seus políticos, mandatários e carreiristas sem desânimo; sindicalistas, estudantes com aspirações intelectuais e progressistas, professores, artistas e escritores que, antes de sustentarem a contestação social, sustentam-se dela – eis, enfim, de que se compôs essencialmente o público do FSM. Ao lado desses, e em muitos aspectos, em oposição a eles, toda uma multidão minoritária e subordinada de movimentos e ativistas, cujas diferenças entre si e deles com o próprio Fórum, serão reconhecidas e analisadas posteriormente.

 

  

O FSM reproduziu a lógica do mercado e do Estado

 

  O Fórum Social Mundial, reconhecido nessas características, não expressou só uma "conspiração" do Estado, do capital e seus reformistas tentando se apropriar do movimento antiglobalização. Essa é, desde sempre, a astúcia própria do sistema que busca integrar a si toda forma de contestação, tal qual a mercadoria faz com tudo o que pode ter uso, real ou ilusório:integra o outro, destruindo-o enquanto outro, submetendo-o à sua loucura identitária, onde toda potencialidade do conflito deve ser dissolvida. Assim, antes de tudo, o FSM foi uma armadilha integradora, uma tentativa de conduzir todo o antagonismo para o interior mesmo da lógica mercantil e institucional. Os funcionários do capital – nos governos, nos partidos e ONGs – apenas realizam essa lógica que, afinal, não lhes é "imposta", posto que ela é, desde sempre, aquela sob a qual se movem pois toda outra língua lhes é estrangeira.

 

  Daí que toda a sua perspectiva "propositiva" nada mais seja do que a ideologia própria dos portadores de mercadorias, pequenos e grandes, que no mercado, têm a ilusão de negociar livremente, tanto quanto nas eleições parlamentares e para os governos, onde têm a ilusão de decidir livremente; que têm a ilusão de determinar, com suas falas e propostas de acordos – adequadas desde o início às "tendências do mercado" – os resultados da negociação. Não é necessário dizer, mas sejamos redundantes, esse é o falso diálogo, a fala de personagens cujo texto não foi escrito por ninguém, mas determinado pelo movimento realista e autonomizado das coisas. É o mesmo movimento realista que move o capital, onde o lucro quer produzir mais lucro e os homens servem às coisas e não as coisas aos homens.

 

 

No movimento “antiglobalização” nem tod@s são anticapitalistas

 

 Que o FSM se realize como tentativa de apresentar-se como síntese das lutas "antiglobalização", é só a realização daquilo mesmo que caracteriza toda a esquerda institucional e sua tentativa permanente de tornar-se porta-voz das reivindicações, para incluí-las - uma vez mais e sempre - na lógica da "diversidade consentida" do mercado e do jogo eleitoral. Um outro mundo é possível diz o FSM. A tentativa de traduzir o realmente diverso no mundo falsamente plural do mercado e do Estado apresenta-se, ainda uma vez, como tentativa de colorir de tons diversos o cinza do mundo único do capital e do Estado. A tentativa integradora não é puramente exterior ao "movimento antiglobalização", uma vez que inúmeros setores da esquerda oficial efetivamente têm sido parte de tal movimento, que caracteriza-se, antes de mais nada, por uma grande heterogeneidade. Com efeito, Bové, Le Monde Diplomatique, ATTAC e Cia. Ltda. são parte de tal movimento e ainda que - no caso particular do Brasil - a esquerda do capital jamais tenha mexido uma palha nas mobilizações e dias de ação Global, ela é, no entanto, em nível mundial, uma das suas componentes, efetivamente presente em seu interior. Em determinados lugares (na França, por exemplo, mas não apenas lá) ela é a própria tônica de uma contestação que - nesses casos – já nasce morta, pois integrada e comprometida até a alma com o sistema.

 

  Na heterogeneidade dos "movimentos antiglobalização", encontramos, como uma das expressões do anúncio de Seattle - anúncio de uma resistência mundial, tão mundial quanto a economia deles - a AGP, que em dias de protestos horizontais e internacionalistas, apresenta-se como coordenação de lutas convergentes contra o capital transnacional e suas instituições. Tais dias de Ação Global encheram-nos a imaginação e impulsionaram-nos as mentes e as mãos; protestos que, sem dúvida, anunciam a necessária e central luta em nível mundial contra o capital transnacionalizado e suas instituições.

 

 

Os perigos de um ativismo especializado e separado

 

  Entretanto, mesmo entre esses setores anticapitalistas do "movimento antiglobalização" - ligados ou não às iniciativas da AGP - e a partir dos próprios impulsos de Seattle, uma série de ilusões começou a tomar corpo. Trata-se, neste caso, da tendência à construção de um movimento especializado e separado. A perseverança unilateral dos "dias de luta contra o capitalismo", como se jornadas pudessem derrotá-lo, termina por constituir a tendência de um movimento separado – e, com ele, uma consciência separada e, portanto, ilusória – do antagonismo cotidiano contra todas as faces da barbárie capitalista; e isso, precisamente, após a boa promessa, anunciada em Seattle, da convergência das críticas práticas que, sob os diversos aspectos da vida cotidiana, se insurgem contra a sociedade mercantil. Tal convergência pode se instituir, por seu desenvolvimento, como crítica de totalidade da vida cotidiana submetida ao sistema único das alienações do capitalismo contemporâneo.

 

  No entanto, transformando o calendário deles em calendário de nossos protestos, terminou-se por constituir, em determinados setores, uma cultura de apartação entre as mobilizações mundiais e o antagonismo cotidiano e, em conseqüência, uma militância também apartada, separada e iludida; uma militância especializada que, na autocontemplação estetizada da imagem de seus feitos, contenta-se em substituir a crítica prática de milhões desde as fábricas e bairros pelo enfrentamento desenraizado. Age-se aqui como o pequeno mercador que reconhece que o diálogo não define os rumos da negociação, e o substitui pelos gritos; com isso, ele quer alterar os rumos da negociação, mas não a sua existência mesma. Ou como o pequeno quadro da esquerda oficial, que, ao “descobrir” que no parlamento nem tudo é negociável, radicaliza no discurso mas não altera em nada a crença no próprio parlamento. Em outras palavras, o ativismo separado, ainda que o mais radicalizado, tem tantas ilusões quanto são ilusórias as crenças dos pequenos comerciantes e as do parlamentar “radical”. Tal indignação, puramente aparente, é na verdade a confissão da própria impotência. Enquanto resistir  entre nós a tendência do ativismo separado e substitucionista, seremos sempre presas fáceis da recaptura, da re-subordinação, da recuperação.

 

 

O diálogo prático é o caminho para a convergência das autonomias

 

  Pensamos que da convergência das múltiplas práticas à crítica de totalidade (que deve ser diversa na forma e nas motivações, mas "unitária" no combate ao identitarismo totalitário do mercado e à opressão tirânica do Estado), é forçoso que construamos um tempo e um espaço próprios; um tempo que não é aquele dos projetos, aprovações e financiamentos estatais ou privados, tão rapidamente encaminhados, como aquele que se deu no Fórum Social Mundial, nem o espaço analítico das instituições organizadoras da falsa sociabilidade, do falso diálogo. A crítica de totalidade há de ter um tempo próprio, o vagaroso e enriquecedor tempo da conversação, cujo critério é o da argumentação legítima, posto que fundado no diálogo real, o diálogo entre os diversos setores sociais que realizam a crítica prática cotidiana do capitalismo.

 

  Há de ter um espaço autônomo, não cedido ou mitigado, mas conquistado como o espaço mesmo da insurgência, da rebeldia e parte da resistência à organização estato-mercantil das vidas e dos lugares vividos.Enfim, um tempo-espaço que resista a ser re-subordinado na medida em que absoluta e intransigentemente fundado na autonomia mesma da experiência antagonista. Que seja, assim, a expressão da constituição do diálogo real, não só o diálogo da experiência, mas o dizer comum dessa experiência, a co-produção do comum; em outras palavras, ser conscientemente coerentes com o que temos feito. E nisso, precisamente, mais do que simplesmente convergir eventualmente, tecer a totalidade da negação ao mundo alienado da mercadoria, do dinheiro, do capital, da hierarquia sócio-estatal e de suas ilusões. Tecer, com a força das palavras ditas em atos e tornadas conscientes de si, uma trama outra, a da insurgência tornada, assim, incapturável, pois dita e feita.

 

 

O FSM foi uma armadilha de captura e despotencialização do antagonismo

 

  Mas precisamente porque apenas começamos a dialogar e a percorrer esse tempo-espaço co-produzido, e face às ilusões que no nosso próprio interior passou-se a alimentar num movimento separado (e, portanto, novamente especializado), o chamado decretado pelo Estado e o capital, para o Fórum Social Mundial, teve tanta repercussão junto a movimentos de base e ativistas – e não apenas junto àqueles cujo antagonismo ilusório (pois separado e especializado) é, por natureza, vocacionado à  recuperação, mas, infelizmente, também alguns daqueles que, de fato, buscam, desde o seu cotidiano, superar as determinações do sistema. É neste último caso onde encontra-se, seguramente, a principal contradição presente no Fórum: a contradição entre o conteúdo da ação de diversos movimentos e ativistas, potencializadora da crítica de totalidade e a consciência ainda parcial, acerca de sua própria prática antagonista. Tal parcialidade lhes permitiu mover-se a um espaço o qual, precisamente, implicava – ainda que momentaneamente - a "neutralização" do antagonismo, a sua despontecialização.

 

  Muit@s companheir@s honestos e combativos, com os quais compartilhamos, inclusive corporalmente, o combate nas ruas, foram ao FSM, com o intuito de "demarcar", "denunciar”. Ao lado deles, com a mesma intenção, outros de outro feitio – os eternos candidatos a "dirigentes" da humanidade, os neoleninistas e neobolcheviques de várias marcas. Num caso e noutro, somos forçados a dizer, não apenas a intenção formal, mas o ato real da ida ao FSM resultou estéril e espetacular.

 

  Quanto aos primeiros, no entanto, mais que isso: a ida ao Fórum Social Mundial, no momento em que se davam, na Suíça, ainda uma vez mais, como em Seattle, Washington, Praga, os combates ao topo da hierarquia capitalista diretamente reunida em assembléia mundial, implicou uma despontecialização, de fato, da nossa capacidade antagonista. Em janeiro, o que o mundo inteiro leu e viu nos mass media foi a contraposição falsa e o diálogo falso entre Davos e Porto Alegre, ao passo que a afirmação real de antagonismo em ato pel@s companheir@s na Suíça era "tornada" apenas a "face mais radical" dos que em Porto Alegre buscavam soluções mais "humanas" e "justas" para a globalização. Ora, se há algo que pode ser dito sobre a presença de inúmeros setores antagonistas no FSM, é exatamente que tal presença, constituindo a fundamental contradição deste Fórum, implicou ali a neutralização da sua ação, estabeleceu uma esquizofrenia que é própria do mundo da mercadoria e suas separações; opôs, pela presença no Fórum, o conteúdo da sua ação à ausência de uma radical recusa à subordinação a qualquer espaço-tempo neutralizador de sua ação antagonista.

 

 

Diálogo entre nós!  Guerra aos dirigentes!

 

  Não se trata para nós, como o é para o neotrotskismo "radical" e todas as frações neobolcheviques, de propor às lutas concretas do proletariado – que eles consideram, metafisicamente, já em si revolucionárias – um programa "revolucionário" estatista e nacional-desenvolvimentista (não-pagamento da dívida externa, fora FMI, defesa das estatais etc.), apenas na forma internacionalista. Trata-se, isto sim, de ressaltar que fora do reconhecimento pelo próprio proletariado do conteúdo antagonístico de suas lutas, elas não são em si mesmas revolucionárias. E esse reconhecimento não é, insistimos, uma revelação exterior, "científica", trazida desde fora por vanguardas, especialistas ou dirigentes, mas, necessariamente, construído pelo e no diálogo prático entre os sujeitos reais das lutas proletárias; esse diálogo de quem faz e – ao fazer – diz a si mesmo o que faz. Este diálogo consciente que pode, enfim, e só ele, potencializar o diálogo prático, já agora em ato e que começa a ser comum. En la Tierra, como en la Tierra...

 

  Quando @s noss@s companheir@s resolvem, de modo estéril e espetacular (repitamos), assinar uma nota com os candidatos a "dirigentes revolucionários", nota estatista e nacional-desenvolvimentista (Declaração dos jovens anticapitalistas contra o Fórum Social Mundial), fazem concessões aos irmãos siameses dos promotores do FSM; e isso porque, já antes, ao irem ao Fórum, o haviam feito aos próprios promotores dele. Que tal nota expresse, pelo seu título, o mesmo método da esquerda oficial, que não se questione um segundo sequer sobre a pretensão de reunir num falso mundo a diversidade que realmente somos, apenas acrescentando um "destruindo o capitalismo" puramente estético, é só a demonstração do que dissemos. Que o mundo que queremos ver substituindo a este é um mundo anticapitalista, não há dúvida; mas precisamos ser conseqüentes com isso, reconhecendo que a ruptura com o mundo único do mercado e do Estado é, forçosamente, a construção de um mundo onde caibam muitos mundos, e por isso, co-produzido - no diálogo prático - a partir da diversidade que somos e que, contra esse mundo unificado, insistimos em ser. Tal reconhecimento passa a anos-luz da nota em questão, vanguardista e cheia de pretensas verdades e verdadeiras mentiras como é toda a "esquerda oficial" em suas ideologias... O lugar da experiência e da troca é algo que não existe – e nem poderia existir – ali.

 

  Tornar o Fórum um lugar no qual pode-se ilusoriamente fazer a crítica dele mesmo é torná-lo falsamente o lugar do diverso, do diálogo, de encontro e socialização das experiências de crítica prática; para isso serviram, como, aliás, os promotores do FSM já haviam previsto e querido, as oficinas alternativas, o acampamento da juventude,  as declarações críticas. Ora, o FSM foi – e isso estava desde o princípio claramente previsto– o espaço da falsa diferença, da falsa multiplicidade que em verdade só reproduz o simulacro da diferença que, no mercado, encontramos entre as várias (logo)marcas ou entre os diversos partidos nos parlamentos e em todas as instituições do sistema; quando a diferença real não se nega de modo extremo e inequívoco a ser capturada e falseada, torna-se uma falsa diferença. Permitir que a luta autônoma fosse recapturada e tornada dócil e tragável pela presença no FSM é parte do equívoco brutal de enxergar em tal espaço um espaço autêntico de diálogo, um espaço no qual a multiplicidade que somos pudesse ter lugar.

 

  Que, em nossa opinião – a qual manifestamos, claro, como parte do diálogo efetivo com o qual estamos comprometidos –, o caminho é outro, disso não pode haver dúvida. Um caminho que, a rigor, não há que ser inventado mas que estamos já construindo. Basta olharmos para nós mesmos, para nossas ações e as ações que se desenvolvem à nossa volta, comprendermo-nos e compreendê-las, intensificando e generalizando o negativo que, ainda germinalmente, está em ação. Falemos o que fazemos! Façamos o que falamos!

 

 

Uma última palavra...

 

  Para finalizar, uma observação se faz importante aqui. Nós, coletivos autônomos, que elaboramos e assinamos essa nota, não o fizemos senão como parte de um diálogo prático; não no sacrifício das diferenças, mas num esforço em que essas diferenças apareceram a partir de uma mesma preocupação prática, já em diversos aspectos comum, e de uma reflexão comum, que, no entanto, não busca a unanimidade. Assim, os pontos de vista que aqui expressamos conjuntamente têm, sem dúvida, tensionamentos com os pontos de vista mais particulares de cada qual dos coletivos, mas tais tensões se inscrevem no experimento do que, esencialmente, afirmamos aqui: o experimento do "consenso heterogêneo" como experiência que constitui a convergência das autonomias.

 

Belo Horizonte, Fortaleza, Santa Maria, entre janeiro e fevereiro de 2001,

 

Coletivo Acrático Proposta

Coletivo contra-a-corrente

Comunidade Piracema

 

 


 

 

FSM 2003

Não-Cooptados, Contra o Mercado e o Estado

Seremos diretos: SOMOS CONTRA O F$B!!!

 

 

FÓRUM $OCIAL BRA$ILEIRO:

 

RESPEITÁVEL PÚBLICO,

O ESPETÁCULO DEVE CONTINUAR!

 

 

  Mais de seis meses se passaram e novamente nos encontramos na necessidade de manter recente a afirmação de nosso repúdio e negação radicais às táticas dos capitalistas de sucção das rebeldias gritantes da atualidade através de mecanismos como Fóruns $ociais, difusores da falsidade democrática e do pacto cidadão colocados em mesa aos povos do mundo. Antes a cunho mundial, sob o desígnio de um Fórum $ocial Mundial, para a discussão de questões sociais, econômicas, culturais no mundo, esse posicionamento tático de Estados e das esquerdas do capital frente aos movimentos sociais ofensivos -desde os já existentes das necessidades ccotidianas mais imediatas, como os movimentos de trabalhadores pela ocupação de espaços, até os movimentos de rua surgidos do calor das mobilizações antiglobalização, contra as reuniões de cúpula, iniciados em Seattle em novembro de 1999- aparece como resposta obscena às exibições de autonomia, autogestão e afronta à forma de dominação vigente em eras de modernização.

 

  Hoje a cunho local, o mesmo evento se repete, auto-intitulando-se Fórum $ocial Bra$ileiro, como atratividade seca e insípida, com os discursos prontos e cheios de impacto, preparados para nos convencer de que estamos errados por nos auto-organizar e buscar diretamente atracar nossos corpos e desejos contra os espaços do simulacro estatal-mercantil. Sabemos que os Fóruns $ociais são espaços que aparecem como prolongamento dos empreendimentos burgueses que visam a farsa de serem espaços da pluralidade para que, através desses empregos, se conclua a cooptação e desarticulação das resistências em autonomia frente ao Estado e suas instituições. Como face suavizada de encontros de cúpula como OMC, BM, BID, FMI, FEM, os Fóruns $ociais complementam o comboio dos gângsteres corporativos para a interminável ressurreição do capital, ocorrendo de forma maquiada e eufemística para a atração e o enfraquecimento das iniciativas despegadas dos meios institucionais. As táticas de arrebanhamento por parte desses burocratas falsários ­tanto a ala empresarial como a estatal - mantêm seu rumo, com o endosso essencial da esquerda reformista; essa mesma esquerda que, na cínica cartilha democrática burguesa quer negociar o pacto de classes, querendo silenciar a tortura que sofremos a cada dia, ao cedermos nossa criatividade em troca de ceder mais criatividade aos que se apropriam do que produzimos - tentando nos convencer de que "outro mundo é pó$$ível" sob as linhas tortas traçadas no capital.

 

  Nos resta questionar se realmente devemos saltar de cabeça nessas ridículas alternativas de coerção, construídas pela mesma laia que aplica esforços maiores para atacar constantemente as iniciativas de ocupação e gestão direta e autônoma de espaços que contraponham, longe do território burocrático-corporativista, às concessões da ordem dominante. Já é satisfatório se conseguirmos enxergar que participar de um evento como esse - nos espaços especializados ou nos acampamentos paralelos ao Fórum - significa legitimar a absorção, por parte do Estado e dos patrocínios capitalistas, dos potenciais autônomos urgentes para espaços edificados justamente para despotencializá-los. É satisfatório, pois, a partir daí, enxergaremos que o equívoco não é inocente. O Fórum simplesmente não se encontra, em momento algum, na postura de representar coisa qualquer: jamais representará os levantes nas ruas de Seattle, Quebec, Gênova, São Paulo, nem a rebelião argentina, como ousam discursar seus concessionários, mas representa, sim, mais um motivo para que ocupemos as ruas contra ele próprio, nós que já o fazemos contra a OMC, o FMI, o BM e companhia.

 

  Os movimentos sociais no Fórum: cooptação proclamada pelos capitalistas, a democracia burguesa dando seus passos rumo ao aniquilamento da resistência:

 

  "O I Fórum Social Brasileiro é um espaço político, democrático e plural de debates da sociedade civil e é parte do processo do Fórum Social Mundial - FSM." (Relato de indivíduo pró-F$B sobre primeiro seminário de organização cultural do Fórum $ocial Bra$ileiro em agosto de 2003.)

 

  A clareza vista no discurso da organização do Fórum é a mesma que torna mais visível a forma como este aparece enquanto método estratégico de sufocação do grito da radicalidade e conter o potencial autogestionário que se transfigurou mais visivelmente desde Seattle, nas ruas.

 

  Quando em fevereiro de 1998 foi lançada a coordenação geral de ações globais contra a globalização do capital -a AGP (Ação Global dos Povos)- em Genebra, um novo caminho era seguido no cenário contestatório mundial frente ao capital e sua manutenção pelos Estados. Um compromisso ainda mais radicalizado era assumido, com os povos tomando as ruas e, violenta ou pacificamente, colocando suas caras a tapa frente às reuniões de cúpula das grandes corporações mundiais. Após tal investida, o mais adequado era criar formas mais eficazes do que a repressão para conter a urgência desses  movimentos  sociais frente ao momento  histórico  em  que  nos situamos.

 

  Essas "formas eficazes" seriam nada mais, nada menos que um espaço materializado sob todos os tipos de discursos pró-democrático, pró-autogestão, pró-alternativo e ocupacionista que poderiam ser utilizados  para  seduzir as lutas latentes, e ainda patrocinado por algumas das muitas  corporações  contra  as  quais  se  colocam  alguns  dos movimentos sociais do mundo inteiro que vão ao Fórum.

 

  Um espaço paralelo é gerado para as "Juventudes", que atuam nestes convictos  de  que não estão inseridos na totalidade  do  programa  do Fórum; uma ilusão, já que a programação estimada pelos organizadores do Fórum consiste exatamente em atrair para seus discursos, de todas as formas possíveis, esses focos de resistência que consentem com a legitimidade do Fórum em acampamentos que ocorrem no interior deste, num espaço cedido pelo Estado e pelos financiadores do cassino global capitalista. Esses acampamentos paralelos são apenas a reprodução de qualquer falsidade democrática que venha a afirmar que todos têm um lugar quando se diz respeito a reconstruir o capital. Os acampamentos da  juventude  são parte dos esforços empregados pelas esquerdas ortodoxas e pelos capitalistas para  puxar para o terreno deles o que resta da resistência emergente, a fim  de  enfraquecer as lutas e tirá-las do ambiente público e  vulgar das ruas, onde a revolta se figuraria explícita demais.

 

  A carta de princípios do F$M, por exemplo, por ter sido plagiada, em grande parte de suas teses, do manifesto da AGP, cai em imensas contradições quando busca suavizar a idéia aplicando termos humanizadores em meio às frases de impacto. Ao mesmo tempo em que cita o fato de se posicionar  "contra  a  dominação do  mundo  pelo  capital",  fala  em "reforçar iniciativas humanizadoras em curso" e deixa esclarecido que o F$M quer alternativas à globalização capitalista, almejando uma lógica econômico-política que possa ser justa para todos; desejo fantasioso e nocivamente  enganador.  Ainda  toca  descaradamente  na  intenção  de apaziguar as resistências, o que as tornaria amáveis às lentes midiáticas e aos olhos patronais, já que a AGP assume, de forma declarada, "uma atitude de confronto, por não acreditar que o diálogo possa ter algum efeito em organizações  tão  profundamente antidemocráticas e tendenciosas,  nas quais o  capital transnacional é o único sujeito político real" (Item 3 da carta de princípios da AGP).

 

 

Reacionarismo representativo e anti-revolução

 

  "O  Fórum $ocial Mundial (...) não expressou só a 'conspiração' do Estado, do capital e seus reformistas tentando se apropriar do movimento antiglobalização. Essa é, desde sempre, a astúcia própria do sistema que busca integrar a si toda forma de contestação, tal qual a mercadoria faz com tudo o que pode ter uso real ou ilusório: integra o outro, destruindo-o enquanto outro, submetendo-o à sua loucura identitária, onde toda a potencialidade de conflito deve ser dissolvida." (Considerações  extemporâneas sobre  nossa  não  ida  ao  F$M  -  Nota coletiva assinada  por ggrupos anticapitalistas de Belo Horizonte,  Fortaleza  e Santa Maria em 2001.)

 

  Sabendo que, em tempos atuais, é colocada à mesa a relação de explícita apropriação da crítica prática que ainda restou em tensões de rua, os coordenadores do F$ não perdem tempo em amaciar o teor discursivo que, por sinal, é a parte mais atrativa do Fórum, juntamente com a milionária campanha midiática que segue na linha de frente -colocando-se, de forma pretensiosa, enquanto representante de um tal movimento de movimentos que em momento algum obteve a participação efetiva de seus assinantes. O passo essencial da esquerda do capital e demais pactuantes em direção a mais real demolição das lutas que foram construídas até então vem de sua necessidade  incômoda de se colocar na frente dos movimentos que se formam e se sustentam PELA luta - e não conquistam cargos para viverem ATRAVÉS dela, como o faz grande parte das traíras burocratas esquerdistas. Conseguindo um grande magnetismo diante das forças ainda fixas em ideais e práticas, a esquerda, o Estado, as corporações, enfim, todos por trás desta  farsa política e social que envolve o F$B, agora querem colocar em discussão, no mesmo evento, uma aliança cooperativa e cooptativa dos movimentos sociais que se entregaram ao canto harmônico do espaço cedido pelos capitalistas para o Fórum, enquanto esses mesmos movimentos vão sofrendo, gradualmente, degeneração crônica.

 

  Sem se criticar, de modo qualquer, o modo como as relações de produção e reprodução vitais no  capital se dão baseadas na mais grosseira exploração de nossos cascos objetivando lucros intermináveis para meia dúzia de iluminados,  enquanto  não  temos controle  sobre  absolutamente  nada daquilo que ocorre dentro deste mesmo processo, os espaços que eles nos cedem se desenvolvem exatamente para que essas realidades sejam ocultadas e favorecidas ao desprezo. Eles querem alternativas a um sistema que se baseia unicamente na acumulação econômica e nega de todas as formas o que se afirme para o ser humano! Uma piada ou um simples jogo de paciência com nossas caras!  Enquanto eles negociam o resgate de um capitalismo eficiente como em tempos passados, quando as forças produtivas ainda começavam a se desdobrar de forma eficiente, as gerações passadas e futuras continuam a ser sacrificadas sob seus discursos humanitários e participativos, que simplesmente nos colocam à frente dos bombardeios para confirmar-lhes sucesso.

 

  Eles querem dizer que é ali que se forma um movimento real, no espaço deles, na estrutura luxuosa e especialista de suas consecuções, onde as redes nacionais de TV podem, sem espiar, pular como abutres sobre a carcaça  da  resistência, e até mesmo deixar claro o quanto aqueles "seres desordeiros e incontroláveis" ou -como diria o pelego José Genoíno, patrono do  PT - "anarquistas", foram, com  êxito, surrupiados, enganados, domados pelo discurso integrador e falso-coercitivo. Podem chamar-nos do que quiserem, até mesmo selar em nossos traseiros qualquer estereótipo ideológico que os caibam à mente, os fatos não mentem: seus tempos de glória  estão  ameaçados,  pois não nos cansaremos de, em nosso cotidiano, cutucar suas espinhas e ocupar e autogerir nossos próprios espaços!

 

 

Ao extremo da hipocrisia: uma conferência sobre e pela cooptação

 

  "Diz-se que a 'democracia está realizada'. Tal afirmação soa de um modo tão constipador quanto a oferta neoliberal de emprego: 'Qualquer emprego é melhor que  nenhum!'. Enquanto isso, os traços  de luta ainda combativos, mas seduzidos pela eloqüência de qualquer discurso pró-democrático, se afogam em seu próprio grito: 'Qualquer participação é melhor que nenhuma!'. Não é de se surpreender que o ambiente do Fórum, dentro e fora, apresenta de forma ainda mais nítida a mercadoria que se tornou o ato de se 'fazer política', e o modo como se pode adestrar os elos ofensores da ordem  de  um  modo  tão viável." (O Fórum $ocial Mundial: A Atração Inacabada -  Panfleto lançado em fevereiro de 2003 pela Rede Anticapitalista de Belo Horizonte.)

 

  A ousadia dos reformistas pelegos do F$B chega a tal ponto que, no limite da mentira, se inclui num programa de explícita absorção dos movimentos radicalizados, uma conferência sobre cooptação, vinculando o Estado e os movimentos sociais. O título é: Estado e Movimentos Sociais: cooperação, repressão e cooptação. Tudo está muito claro; é apenas mais uma tentativa de, em tempos de completa anemia no seio das tendências de luta não apegadas ao Estado – ao menos em solo brasileiro, ao menos quando se diz respeito ao fato de muito mais da metade dos focos que se propõem anticapitalistas irem ao Fórum, talvez até com uma expectativa de transformação em alguma coisa – rebuscar a mera escassez de força ainda contida nesses movimentos para o interior do ambiente do Estado e da crítica modernizadora de capitais. As emendas sob as quais se limita o Fórum são as mesmas rezadas durante toda a história para a humanidade, durante todo o desenvolvimento da forma-mercadoria, que, por sinal, somente foi efetivado a partir das ações objetivas desta mesma humanidade.

 

  Com toda a certeza, virão, a partir daí, todos os discursos que dignifiquem a existência de um comboio conspirativo o qual é o F$B; desde o resgate da soberania cidadã, até uma construção democrática de alternativas para a globalização do capital. Todos esses discursos pomposos para elevar aos sonhos social-democratas o mesmo lucro do qual vivem os magnatas de hoje. A questão nacional, sempre colocada em destaque, é a melhor forma de contundir as massas e levá-las ao desespero pela participação em qualquer circo que aparecer. Sim, a democracia está, de fato, realizada, e o que leva à constipação é exatamente o fato de ela constar, por si só, substancialmente, na nossa própria condenação à incapacidade, e na nossa auto-afirmação enquanto escravos em legítima aceitação.

 

  Com essa amostra mais descarada da hipocrisia que o Fórum representa, ainda pode-se notar, além do conteúdo, a forma completamente verticalizada como se colocam os espaços do Fórum. Claro, óbvio. Se as relações sociais que se determinam sob um aparelho do Estado e sob as designações mercantis se dão de tal forma, o espaço do F$B, que é exatamente o reflexo mais nítido de tudo o que já existe no mundo de mercado, não seria diferente. Estudantes (secundaristas, calouros, mestrandos, etc.), a trupe das ideologias (“istas” em geral), democratas, empresários (pequenos, grandes, médios), cristãos, sem-teto/terra, amantes de Lula, etc. estarão todos a interagir numa só cabine de falsidades, onde essa diferença, completamente abstraída pelos conceitos mercadológicos, é colocada a ver, quando somos diferentes apenas porque temos a coloração de pele ou a ideologia ou a opção sexual diversificados e quando somos iguais, pois somos cidadãos. Os de baixo escutam, enquanto os exploradores e especialistas vomitam seus dogmas reformistas. Um acampamento paralelo é criado para abrigar e bajular os “desajustados”, as possíveis ameaças, os que complementam a festa com suas presenças ainda mais lamentáveis. E assim está concebido o mais efetivo mecanismo de pacto social já proposto – para além das fábricas, campos e escolas – em todos os tempos. A festa dramaturga, onde as marionetes estão propostas a ser nós mesmos.

 

 

Paraíso de reformista é a miséria

 

  “Seguindo o mesmo fio condutor desses ‘democratas’, que não é outro senão o que vai da rendição à traição, se afirma que já não há que exigir justiça para os crimes do Estado, e sim cobrar o dinheiro que ele paga como reparação. Ou que já não se trata de acabar com a riqueza, e sim combater a pobreza, omitindo que na primeira está a origem da segunda.” (Mais Contra o F$M – Texto publicado pelas Madres de Plaza de Mayo argentinas, em janeiro de 2003.)

 

  Enquanto isso o discurso da pobreza, suavemente, integra as corporações de terceira via e não-governamentais para o patrocínio do êxito desses projetos das esquerdas mercantis, do Estado e seus braços. Essa mesma pobreza é colocada nas telas de redes de TV mundiais, quando se intenta que o Fórum $ocial Mundial circule pelo mundo, pelos países intitulados subdesenvolvidos, mesmo que se tente ao máximo ocultar suas cenas mais deploráveis através de projetos de maquiagem das favelas e das senzalas exploratórias desses locais, assim como planejam em Belo Horizonte, durante o Fórum $ocial Bra$ileiro. No entanto, é esse mesmo dialeto da pobreza o mais cabível aos gerentes da exploração humana. Pois, se um estado-nacional apresenta sinais de pobreza, não necessariamente quer dizer que as pessoas que sob ele vivem são incapazes de produzir riquezas. Enquanto é apregoada a miséria e a despossessão de 90% da humanidade dos frutos da atividade produtiva humana, a sociedade de mercados, essa separada em classes, continua a se encaminhar através desse paraíso que são as ações financeiras e o escoamento de mercadorias em cima das camadas sociais que vendem sua criatividade em nome do lucro de outras minorias. Se há possibilidades de se condicionar a existência de uma categoria social que, por si mesma, propicia a apropriação do que produzimos, os estados-nações não passam de conglomerados de força produtiva submetidos a uma forma de domínio de classe que reduz as pessoas, assim, à neutralidade cidadã pela representação estatal.

 

  A manutenção da estrutura produtora de mercadorias se dá exclusivamente em torno de nossa auto-submissão aos preceitos que se mantêm para mover um estabelecimento de mercados. O Estado se encarrega de seu papel salvador, exercido em atos de assistência aos nulos cidadãos conformados e “excluídos” e em atos de administração da existência desses mesmos. A pobreza é o único paraíso para a permanência do que já existe. O que fundamenta e concretiza a fome, a miséria e a nossa não posse sobre absolutamente tudo do que nos cerca é exatamente a mão invisível que ora aumenta 2% no salário, ora gera alternativas de atendimentos sociais de saúde, moradia, etc. e, em tempos de euforia, reprime, à base de extrema truculência, os desejos da humanidade, cortando funções ou mesmo conduzindo às suas masmorras do esquecimento –prisões ou asilos de isolamento. É para que se mantenha tal paraíso, que os reformistas administradores buscam ao máximo perpetuar um pacto social que impele esses ditos “cidadanizados” a participarem de sua própria imbecilização, pagando impostos ou participando das farsas de programas democráticos.

 

  Se continuar sendo a função de todos nós buscar formas de administração mais adequadas para esse modo de produção que predomina, estaremos simplesmente gritando para nós mesmos a nossa condição de extremo masoquismo. A história do capital foi, até hoje, construída às custas da cegueira de gerações que se colocaram presas ao nó do desenvolvimento da mercadoria. Já é tempo de se reverter por completo esse processo histórico de espoliação e buscarmos gerir, nós mesmos, oprimidos em geral, uma luta que apenas nós queremos travar, a todo instante.

 

 

Uma única pergunta: por que não estamos nas ruas?

 

  “(...) Poderá ser autônomo um espaço construído à sombra do manto dos reis e dos padres? Poderá ser efetivamente autônomo um espaço construído à sombra do mercado e do Estado? Acreditamos decididamente que não. A ida ao F$M ‘aproveitando’ a estrutura montada pela esquerda do capital compromete a capacidade autônoma de gerir as lutas por nós instituídas na medida em que nos põe concretamente a reboque das iniciativas da esquerda do capital. A necessidade de ir ao Fórum, aproveitando sua estrutura para subvertê-la não é mais do que a confissão de nossa própria incapacidade de autonomamente construir espaços de socialização no antagonismo real ao capital. (...)” (Mais do Mesmo – Folheto publicado pelo Coletivo Acrático Proposta, em janeiro de 2002, sobre a não ida do coletivo ao F$M.)

 

  Torna-se notória a condição mantida a nós quando nos colocamos frente a frente a tamanha contradição –uma negável e superável contradição. O fato de termos que nos adaptar às exigências advindas dos métodos dos Estados e das administrações mercantis para conterem efetivamente o que os contrapõe –porque, por sinal, os espaços não são mais conquistados por nós, mas sim cedidos por eles (nossos chefes, cobradores, superiores) a nós– é a fresca expressão da nossa vulnerabilidade diante da baixeza das pregações pelego-burocráticas desses empreendedores. Enquanto convocaram toda a “sociedade civil” para a verdadeira sabotagem –que é o Fórum $ocial Mundial– aos movimentos sociais autônomos, os economistas e chefes de Estado do mundo se encontravam na cúpula do Fórum Econômico Mundial para tomarem decisões sobre o que investirem contra os mesmos que marcaram presença no seu subproduto: o F$M. Os que foram às ruas em Nova Iorque e Davos, contra o FEM, sofreram desfalque, quando grande parte de seus solidarizados haviam sido eficientemente sedados pelas falas retóricas do F$M. Ambos os lados -$ocial e econômico– estão colocados em uma mesma moeda, em que a falsidade se complementa. Essa contradição é completada pela extrema confusão de identidade dos próprios movimentos que são a legitimidade do F$M: nas ruas, contra as cúpulas mundiais, vão contra certas corporações; no F$M, se cegam frente a elas mesmas que o patrocinam. Dois míseros exemplos: Fundação Ford e Banco do Bra$il.

 

  Enquanto são investidos esforços para serem construídos acampamentos para as verdadeiras massas de manobra das esquerdas institucionais, o fogo fervilha a rebeldia que se trava nas ruas mundiais contra o FEM. Outras metades se alojam nos entremeios do F$M para discutir um “capitalismo humano”. Semelhante a um jogo de escolhas, onde se deve escolher, entre duas opções, a menos pior ou a mais simpática, os partidários do Fórum dão o xeque-mate na potencialidade combativa dos movimentos sociais, para discutir alternativas ao capital e para produzir um espetáculo de diferenças “unanimemente” ocorrido sob essa diversidade pasteurizada do mundo de mercados. Então, a pergunta ressoa pelos ares: por que não estamos nas ruas?

 

  A intensidade como chega o desapontamento causado pelos companheiros de luta que se entregaram de peito para tal perspectiva, é a que nos leva a (re)afirmar que não estamos nos colocando contra os movimentos sociais que aderem a essa posição de acatamento às demandas do Fórum, mas justamente contra O Fórum e o que ele representa frente a nós. É esse desapontamento o que nos leva a estar convocando esses companheiros para a elaboração de meios de intercâmbio que superem por completo esse apego às instituições do Estado e do mercado e que busquem radicalmente a construção de novos meios de relação. É essa radicalidade a mesma que assusta e retrai os patrões e corporações mercantis e estatais, levando-os a criarem estratégias como o F$ para tornar um pouco mais agradável a interação para com esses movimentos e tomarem para si os espaços que deveriam estar em nossas mãos.

 

  O Fórum $ocial Bra$ileiro tende a ser um prolongamento da festa da cooptação, que termina quando todas as fases da resistência estiverem aniquiladas por completo. A resposta já está dada: o Fórum nos ocupa demais para estarmos nas ruas. A prioridade que vemos os movimentos globais dando a essa farsa descarada nos faz ir de encontro à nossa crítica prática e chamá-los de encontro à NOSSA convergência PELA luta anticapitalista. Esse encontro à convergência tem se dado desde o nosso dia-a-dia, quando estamos nas filas, nos cruzamos nas ruas urbanas, estamos juntos a trabalhar na terra que sofre especulação, até os dias de ações globais, que estão a fortalecer ainda mais a solidariedade mundial contra o capital. Nosso palco está onde “as ruas, as escolas, os meios de trabalho em geral expressam nossa incapacidade de gestão de nossa produção, de nossos espaços, de nosso tempo histórico que se torna pó nas mãos dos carrascos”, incapacidade que é destruída quando buscamos, através de ações reais inverter por completo essa lógica de mundo que aí está. Ao irmos ao Fórum estaríamos, num simples ato, a aceitar a legitimidade de nossa penúria e de nosso estado de nulidade na história que nos leva, assim como ela vem sendo contada há séculos, a estar coletivamente sendo parte do processo de sua construção e, também coletivamente, estarmos sucumbindo sob ela.

 

  Os tapas já foram fortes o suficiente para que, frente aos imediatismos que surgem na Argentina, na Bolívia, em Chiapas, anulemos o que foi correspondido em Seattle, São Paulo, Quebec, Praga, Gênova, etc. para que o F$B passe a responder por essas circunstâncias. O Fórum $ocial Bra$ileiro é a resposta que eles têm conseguido – com sucesso – dar à autonomia anti-representativa das ações mundiais dos povos em suas localidades. Agora nos resta voltar nossas discussões na direção de tais investidas, colocando-as em xeque para criarmos, nós mesmos, nossos espaços, os espaços da autonomia e da construção direta da luta. Espaços que estejam todos os dias contra o capital e contra os esforços dos capitalistas de destruírem a combatividade dos movimentos sociais globais; espaços que vão contra o Fórum, do mesmo modo que foram, durante tempos, contra as cúpulas mundiais.

 

  NOS VEMOS NAS RUAS!

  

Não-Cooptados, contra o Estado e o mercado

23 de Outubro de 2003

 

 

[P.D.:]

 

  “O direcionamento está sendo em lucrar em cima disso. O Fórum Social Mundial na verdade nunca existiu, na realidade é um fórum comercial. Visando lucrar com a rotatividade de pessoas num período de férias. Tive oportunidade de estar no Fórum anterior, trocar e-mails, debater, obter informações. Acredito num mundo melhor (...), sem o oportunismo.” (Relato de Carlos 26, estudante, Poá /SP.)

 

 

 

 



 

* Tratava-se do Colectivo Contra-a-Corrente (logo Proletarizad@s Contra-a-Corrente), do Colectivo Acrático Proposta e de Comunidade Piracema, alias mais gente -- de onde logo xurdiu a Rede Anticapitalista de Belo Horizonte. Na actualidade tenhem desaparecido práticamente como grupos organizados, e as suas aportaçons teóricas estám semi perdidas na rede, com a exceiçom dumha recuperaçom da web de Proletarizad@s, que se pode encontrar em: http://www2.autistici.org/contraacorrente/

 

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