Capítulo VIII
Sistema Político: Suas Unidades

Julio Cezar Melatti

Da minha tese Índice da
Página do Melatti

1 – Introdução

A dificuldade de caracterizar os grupos políticos entre os Krahó começa com a própria delimitação do fenômeno político, sobre a qual os etnólogos longe estão de um acordo. Middleton & Tait definem as relações políticas como "aquelas em que pessoas e grupos exercem poder ou autoridade para a manutenção da ordem social dentro de um território." Tais relações são de dois tipos. Há relações externas, isto é, aquelas que ocorrem entre uma dada unidade e as outras, sendo essencialmente antagônicas ou competitivas, como que baseadas em poder não investido em autoridade legítima ou ao menos não controladas por autoridade superior. E há também as relações internas de cada unidade, que asseguram a coesão de seus elementos constituintes e sua administração (Middleton & Tait, 1964, p. 1). Ora, a consideração das relações internas de algumas dessas unidades pode fazer a área do fenômeno político, se sobrepor à área do parentesco. Parece, entretanto, que, entre os Krahó, os dois campos não se confundem, sendo possível estudá-los sob o ponto de vista que Lucy Mair atribui a alguns antropólogos, segundo os quais "a esfera da política começa onde a do parentesco termina" (Mair, 1964, p. 10). De fato, é difícil perceber a existência de relações competitivas entre famílias elementares de um mesmo grupo doméstico, entre grupos domésticos de um mesmo segmento residencial ou entre segmentos residenciais de uma mesma aldeia. É possível, entretanto, achar antagonismo entre aldeias e entre tribos. Tais unidades, portanto, podem ser consideradas políticas. Entretanto, não somente as aldeias e a tribo constituem grupos políticos. Existe um outro grupo, menos inclusivo que a aldeia, que também pode ser assim caracterizado: trata-se da facção.

As facções, entre os Krahó, são bastante fluidas e de difícil caracterização. Para que possamos melhor defini-las, convém que partamos da análise de alguns casos de rixas e antagonismos entre os Krahó, motivadas por acusação de feitiçaria, morte de feiticeiros e outras razões, alguns dos quais chegaram a provocar cisões de aldeia. Dessa maneira nos aproximaríamos aqui do que van Velsen chama de "análise situacional" (Van Velsen, 1967). Tal método parece o mais adequado no estudo das facções Krahó, uma vez que a formação desses grupos antagônicos se apóia menos nas regras do parentesco do que na sua manipulação e mesmo na sua quebra. Vários casos de rixas serão apresentados aqui, não como ilustração de uma definição das facções Krahó dada a priori, mas como ponto de partida para uma caracterização desses grupos e para mostrar que só podem ser definidos de um modo aproximativo.

2 – Casos de litígios

Narraremos aqui aqueles litígios sobre os quais conseguimos um maior número de informações. Não os distribuiremos numa classificação, mas simplesmente tentaremos colocá-los, na medida do possível, numa ordem cronológica. Ao mesmo tempo que narrarmos os casos, tentaremos analisá-los. Convém acrescentar que não nos limitaremos a casos que permitam caracterizar as facções, mas também aqueles que permitem lançar alguma luz sobre as relações entre aldeias e mesmo entre tribos, as quais podem estar também ligadas ao antagonismo de facções.

Caso A: O feiticeiro Chico Krahó

Conta Nimuendajú que na aldeia Apinayé de Gato Preto morava um índio Krahó conhecido como Chico Krahó. Sobrevindo um certo número de óbitos na aldeia, os Apinayé passaram explicar o fato como efeito de feitiçaria, recaindo as suspeitas sobre os moradores de origem estranha. Por isso, o chefe mandou matar dois índios Kayapó. Mas outros óbitos se seguiram. Então passaram a suspeitar de Chico Krahó e o chefe ordenou sua execução. O índio suspeito desconfiou e fugiu para sua tribo. Em represália, uma turma de quarenta índios Krahó marchou contra a aldeia de Gato Preto. Isso ocorria no ano de 1923. Os Apinayé da aldeia de Bacaba não se sentiram obrigados a socorrer Gato Preto, pois estavam incompatibilizados com o chefe desta última. Os habitantes de Gato Preto fugiram, escondendo-se numa mata pantanosa longe da aldeia. Os Krahó saquearam a aldeia, mataram os animais domésticos e destruíram as plantações. Tentaram depois, sem violência roubar também a aldeia de Bacaba, mas desistiram diante da resistência do chefe Apinayé José Dias Matuk, e se retiraram. Mais ou menos cinco anos depois o mesmo Chico Krahó foi morto pelos seus próprios companheiros de tribo. Então, em 1930, através de Nimuendajú, o chefe Krahó Kratpe enviou aos Apinayé uma mensagem de paz e amizade. O chefe Krahó lembrou especialmente o fato de que os Apinayé de Bacaba haviam feito seu filho chefe honorário. Convidava também os Apinayé a uma visita a sua aldeia; porém os habitantes de Bacaba não se animaram a ir e muito menos os de Gato Preto. Os Krahó esperaram sete anos. Depois disso, meia dúzia deles visitou a aldeia de Bacaba, onde persuadiram oito indivíduos Apinayé, homens e mulheres, a acompanhá-los para retribuírem a visita (Nimuendajú, 1956, pp. 11-12 e 17).

O relato de Nimuendajú dá a impressão de que o caso de Chico Krahó gerou um choque entre tribos. Na verdade, entretanto, o que parece ter ocorrido foi um choque entre aldeias. Nimuendajú deixa claro que havia um desentendimento entre as aldeias Apinayé de Gato Preto e Bacaba. Informações que tomamos dos Krahó indicam que também havia certa hostilidade entre duas aldeias destes: uma chefiada por Feliciano e Vicentão (Kratpe) e que mais tarde viria dar origem às atuais aldeias do Posto e de Pedra Branca; outra chefiada por Bertoldo e Chiquinho (Põhïkhrat Katxëpéi), que viria dar origem às atuais aldeias de Boa União e do Abóbora. Ora, Chico Krahó era da aldeia de Chiquinho e foi este chefe que marchou contra a aldeia de Gato Preto. Contam os Krahó que Chico Krahó, também conhecido como Borá (ou Porá) começou a fazer feitiço em sua tribo. Um informante, por exemplo, diz que um grupo de rapazes e uma moça roubaram melancia na roça de Borá. Este zangou-se e fez feitiço, matando dez indivíduos, rapazes e moças, de febre. Outro informante repete mais ou menos a mesma versão. Um terceiro relata que Chico Krahó pôs febre em toda a aldeia de Vicentão. Outro, Antônio Pereira, padré da aldeia do Posto, e também um dos matadores de Chico Krahó, conta que este matou com feitiço um parente seu (não está claro se era irmão de seu pai ou se irmão do pai de seu pai); pôs feitiço também no próprio chefe Vicentão. De um modo geral dos contam a morte de Chico Krahó da mesma maneira: Vicentão mandou chamá-lo a sua aldeia para que o curasse. Ao mesmo tempo encarregou Trukat (corruptela de Torquato), Antônio Pereira e Pedro (Ipoi, que era irmão de Antônio Pereira) para que o matassem. Não sabemos se Trukat era o pai da sogra de Antônio Pereira, ou se era um outro, filho do irmão de mãe da esposa do mesmo Antônio Pereira. Chico Krahó veio à aldeia de Vicentão. Este, segundo um informante, fingia-se de doente. Chico Krahó curvou-se, aplicando a boca em sua barriga, para sugar o mal. Quando levantou-se, levou na cabeça uma machadada de Ipoi. Arrastaram-no então para fora e acabaram de matá-lo.

Mais de um informante assegurou que a morte de Borá fez com que os habitantes da aldeia de Bertoldo e Chiquinho ficassem zangados com os da aldeia de Feliciano e Vicentão. Um acrescenta que, em compensação, os da primeira tinham matado cinco curadores da segunda aldeia por ordem de um líder chamado Joaquim Papa-mel. Nota-se, por conseguinte, que havia duas aldeias Krahó indispostas entre si. O missionário Zacarias Campêlo estava entre os Krahó no tempo da morte de Chico Krahó e deixou em seu livro algumas informações a respeito (Campêlo, 1957, pp. 70-74). Segundo este autor, sarampo e impaludismo eram as doenças que estavam ceifando as vidas Krahó e que deram motivo ao assassinato de Chico Krahó. Assistiu também à reunião em que os habitantes da aldeia de Feliciano e Vicentão queriam que os da aldeia de Bertoldo e Chiquinho concordassem com o ato consumado: a morte de Borá.

Não sabemos como estavam as relações entre a aldeia de Feliciano e Vicentão (Pedra Branca) e a de Bertoldo e Chiquinho (Pedra Furada) antes da morte de Chico Krahó. Mas se tais relações já eram de hostilidade, como dá a entender o informante que acusa a aldeia de Pedra Furada de já ter matado cinco curadores de Pedra Branca, neste caso os Apinayé da aldeia de Bacaba agiram com grande habilidade ao escolherem como chefe honorário ao filho do chefe Vicentão. Faziam um jogo complexo das relações intra-tribais com as extra-tribais: aliavam-se aos invasores Krahó atacantes de uma aldeia de sua própria tribo, com a qual estavam desentendidos; mas não se aliavam propriamente aos invasores, e sim à outra aldeia Krahó que não tinha promovido a marcha contra os Apinayé. Isso resultaria no seguinte esquema:

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Segundo Nimuendajú os habitantes de Bacaba não socorreram os de Gato Preto. Mas um informante Krahó afirma que José Dias Matuk os ajudou contra outra aldeia. As informações tomadas entre os Krahó dizem que estes, na roça da aldeia assaltada, conseguiram aprisionar duas moças, que trouxeram para Pedra Furada. Uma delas deixou descendência na atual aldeia de Boa União. Acrescenta um informante que os assaltantes Krahó voltaram acompanhados de vários Apinayé aliados. Curt Nimuendajú afirma, entretanto, que os Apinayé só foram visitar os Krahó muito tempo depois. Neste ponto parece razoável dar mais crédito a Nimuendajú, que esteve presente por volta de 1930, tanto entre os Krahó como entre os Apinayé. Parece, todavia, que antes da fuga de Chico Krahó da aldeia de Gato Preto, os Apinayé tinham alguma relação com os Krahó. O atual chefe de Boa União, por exemplo, declarou que seu falecido irmão João Grosso era filho de sua mãe e do chefe Apinayé José Dias Matuk.

Além de manter ressentimentos entre duas aldeias, não sabemos que outros efeitos teve a morte de Chico Krahó no nível dos grupos de parentesco. Das relações de parentesco daquele período poucas são as informações. Sabemos apenas que Chico Krahó tinha um filho, Akaprik, na aldeia de Pedra Furada, o qual é pai de quatro homens: Krãi e Téyapok, moradores na aldeia de Boa União, e Rõ?krã e Ka’këre, moradores na aldeia do Abóbora. Deles, porém, nunca ouvimos referência ao caso de Chico Krahó.

Caso B: A morte de Chicu e de Rodrigues

Conta o informante Kakró, morador da aldeia de Serrinha, que os primeiros Xerente a virem morar entre os Krahó foram: Tsarãkté, pai do pai do informante e também pai de Pedro Penõ, atual chefe da aldeia do Posto; um outro que vinha a ser parente do finado Marquinho (segundo uma genealogia que tomamos, seria Siwasa, pai de Marquinho e de Justino, índios que ocuparam uma posição de liderança na aldeia do Posto); e a mãe da mãe de Txephi, a esposa do informante. Isso teria ocorrido num tempo de fome, quando os Krahó foram até as aldeias Xerente e alguns destes voltaram com eles.

Em 1926 ocorreu um conflito entre os Xerente [nota]. Kakró diz saber a data porque toma como referência o ano de 1925, em que foi batizado, e o de 1926, quando passaram pela área os "revoltosos" (Coluna Prestes). Queriam matar Chicu, num lugar chamado Batateira, na Panela de Ferro. Um velho Krahó, chamado Sotero, que conhecia a língua Xerente e que tinha uma irmã casada com um Xerente, foi buscar os indivíduos que corriam perigo. Assim chegou entre os Krahó o segundo grupo de índios Xerente. Eram eles: o velho Chicu, Marco, João Noleto, Wakedi, João Torto, Pedrão, Rodrigues, o velho Sinhorinho. Vitória veio também neste grupo e ela nos forneceu uma pequena genealogia que abrange alguns membros do grupo:

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Entre os Xerente que então chegaram, contava-se, como foi dito, João Noleto, que viria a ser mais tarde chefe da aldeia de Serrinha. Diz Kakró que Chicu depois voltou para as aldeias Xerente com a mulher.

O próprio João Noleto nos contou que foi morar entre os Krahó pequeno ainda. Morava na aldeia Xerente de Morro Grande. O pai de João Noleto tinha quatro porcos e desejava com eles comprar um engenho. Dois curadores, Valentim e Sebastião, mataram o pai de João Noleto de feitiço porque este não queria dar porco para eles. Por isso, dois irmãos de João Noleto atentaram contra a vida deles, mas não conseguiram matar. Houve uma intriga tremenda, mas como eram todos parentes, fizeram as pazes. Mas depois os dois curadores começaram a fazer mal de novo e os parentes de João Noleto se retiraram para as aldeias Krahó. Era a seguinte a relação de João Noleto com os curadores:

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Quem os levou para os Krahó foi um índio desta tribo, Sotero, mas que era filho de um Xerente chamado Pompeu. Havia uma certa relação de consangüinidade entre Pompeu e a mãe de João Noleto, que, no entanto, este não soube precisar.

Wakedi casou-se em Pedra Furada. Embora o missionário Zacarias Campêlo diga que Rodrigues vivia em Pedra Branca, mais de uma informação diz que ele estava ligado a Pedra Furada. Uma informação diz que, tendo Rodrigues se intrometido com a esposa de um outro, quase foi morto por isso. Em represália, mandou uma mensagem a seu pai, Chicu, que estava numa aldeia Xerente, para que viesse pôr feitiço na aldeia. Uma outra informação diz que foi José Wakedi que, tendo brigado com a esposa, foi a Carolina e lá pediu a um civilizado, José Perna, que fazer um bilhete endereçado a Chicu, para que fosse às aldeias Krahó fazer feitiço. Conta Krakró que o mensageiro passou por Pedro Afonso e encontrou índios Xerente que se prontificaram a levar o bilhete. Porém o Xerente pediu a alguém que o lesse. O bilhete devia de ir para a aldeia de Sucupira; José Wakedi mandava chamar Chicu para fazer o mesmo "remédio" que fizera em Morro Grande. O chefe Krahó Vicentão estava com seu pessoal em Pedro Afonso. Os Xerente lhe pediram que deixasse matar Chicu, que já vinha vindo. Vicentão respondeu que não dava ordem de matá-lo mas também não impedia que o fizessem. Assim, Chicu foi morto perto da Fazenda de são Roque, próxima das aldeias Krahó. Já Ambrosinho conta que tanto Rodrigues como José Wakedi mandaram a mensagem.

A história da mensagem é sem dúvida fantasiosa, embora mais de um informante se refira a ela. Na verdade, o que ocorreu foi que um grupo de índios Xerente veio até as aldeias Krahó para ajustar contas com membros de sua tribo que estavam refugiados entre os Krahó. Apesar disso, na morte de Chicu não se implicaram apenas índios Xerente. Entre os Xerente se contava um chamado José Grande, um outro, aleijado, com defeito nos pés, chamado João Paulino (pai de um outro Xerente com o mesmo nome que mora na atual aldeia de Pedra Branca). No grupo estava também um Krahó chamado José Pinto, irmão de Marcão.

Uma vez morto Chicu, os Xerente trataram de matar a Rodrigues. Conseguiram convencer os próprios Krahó a matá-lo. Seus assassinos foram Alfredo, irmão de Gabriel, e Xogó, irmão de Antônio da Silva. Pedro Penõ, em duas informações diferentes, conta que a morte se deu quando o pessoal da aldeia de Pedra Furada visitava Pedra Branca: numa informação disse que foi por ocasião de uma tinguijada; na outra afirma que foi durante a realização do ritual de Tépyarkwa. Rodrigues foi morto quando se dirigia, junto com seus assassinos, para o local de onde iria sair uma corrida de toras.

Morto Rodrigues, deveria de morrer também José Wakedi, que estava na cidade de Carolina. Os Xerente e os habitantes de Pedra Branca puseram-se a esperá-lo. Avisado, porém, por um mensageiro do missionário Zacarias Campêlo, quando já se aproximava da aldeia, tornou a fugir para Carolina, de onde só voltou quando o perigo tinha passado.

A morte de Rodrigues também contribuiu para que as relações entre as aldeias de Pedra Branca e de Pedra Furada se tornassem difíceis. Ambrosinho, atual chefe de Boa União e que pertencia a Pedra Furada, conta que ficou com muita saudade do rapaz bom que o povo matou. Penõ afirma que os moradores de Pedra Furada ficaram zangados, pois já estavam acostumados com Rodrigues. Por isso se retiraram da aldeia de Pedra Branca; poucos continuaram a visita. Depois os moradores de Pedra Branca foram conferenciar com os de Pedra Furada. Penõ lembra de que todo o mundo preparou-se com arco e flechas. Ambrósio, irmão de Vicentão, que passou seu nome indígena para Penõ, preparou arco e flechas para este. Lembra-se também o informante de que os índios treinaram sua pontaria atirando flechas do pátio num tronco de bananeira que fincaram diante de uma casa da aldeia. Vê-se, por conseguinte, por essas informações, que os índios de Pedra Branca contavam inclusive com a eventualidade de terem de lutar contra os de Pedra Furada.

Tal como o caso anterior, estes assassinatos tiveram como efeito o estremecimento de laços entre aldeias. Não sabemos, porém, se criaram discórdias nas relações dentro de alguma das aldeias. Também não sabemos se tal caso ainda se reflete nas relações atuais. Marco, que era um dos que também deveria morrer nesta ocasião, falou recentemente com João Paulino, filho daquele outro do mesmo nome, aleijado, implicado na morte de Chicu, que tinha esquecido as antigas ofensas e que ele não precisava de temê-lo.

Caso C: A cisão da aldeia de Pitoró

Segundo o índio Kakró, a aldeia de Pitoró dividiu-se em duas por volta de 1927 ou 1928. Havia um índio na aldeia, chamado Pedro Novo, que fazia roças muito grandes. Secundo quis então transferir a aldeia para a beira do Manoel Alves Pequeno, de onde poderia fazer descer pelo rio os excedentes agrícolas, de modo a vendê-los em Carolina. Mas Bernardino não quis transferir a aldeia e permaneceu em Pitoró, na confluência do Manoel Alves Pequeno com o Ribeirão Cala-a-Boca. Secundo se transferiu para Donzela, a meia légua acima de Itacajá. Mas com o falecimento de Pedro Novo, Secundo ficou sem ânimo de produzir para comerciar.

Segundo Kakró, a aldeia de Pitoró ficou reduzida a cinco grupos domésticos. Não sabemos qual a composição de cada um deles, mas a aldeia reunia as seguintes pessoas: Bernardino, esposa e filhos; Loriana e seus filhos Felipe, Zé Kapran e Vicente; Ronkhwoi e seus filhos Kakró, João Canuto, Sinharó e sua filha Hipotxen, que era casada com Marco, sendo seus filhos Aleixo e Guilherme; Altino. Naturalmente aí não estão especificados todos os moradores, mas a maioria. Como queriam criar porcos e galinhas, tiveram de construir as casas separadas umas das outras, perdendo a aldeia sua forma circular. Esses moradores estavam assim ligados genealogicamente:

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Nota-se, portanto, que todos os que ficaram com Bernardino eram parentes entre si e estavam ligados matrilinealmente. Eram indivíduos que pertenciam a grupos domésticos que estavam situados em justaposição na aldeia original. O casamento de Bernardino era um tanto raro entre os Krahó: um homem casado com a prima paralela matrilateral. De qualquer modo tratava-se de uma aldeia em que já se tentava viver à maneira dos civilizados, tendo-se desprezado mesmo a forma circular tradicional das aldeias Krahó. Note-se também que o chefe Marcão da aldeia atual de Pedra Branca está ligado matrilinealmente a Bernardino.

Entretanto, com o tempo, os moradores de Pitoró foram se reunir à aldeia de Secundo, ficando em Pitoró apenas Bernardino, sua esposa e filhos e Loriana e seus filhos. Com a morte da velha Loriana, os filhos desta também foram para a aldeia chefiada por Secundo. Assim, pois, só ficaram fora da aldeia de Secundo aqueles que faziam parte da família elementar de Bernardino. Mesmo depois da morte deste, continuaram a viver fora da aldeia de Secundo. Hoje constituem o núcleo da povoação chamada Morro do Boi, onde vivem à maneira dos civilizados. Outros descendentes de Bernardino também vivem dentro do território Krahó, mas fora das aldeias, como civilizados.

Quanto à aldeia de Donzela, chefiada por Secundo, teria ficado com seis grupos domésticos, cujas informações sobre as relações genealógicas uns com os outros e com os constituintes da aldeia de Pitoró são bastante incompletas. Um dos grupos incluía Secundo, chefe da aldeia, e Joaquim. Este Joaquim deve ser o mesmo que aparece numa genealogia como Antônio Joaquim; era Xerente, casado com mulher Xerente, sendo sogro de Secundo. Num outro grupo doméstico estavam Pedro Arrepiado (irmão do pai do chefe Marcão) e Ovídio (filho de Antônio Joaquim), seu genro. Num terceiro grupo doméstico estavam Agostinho (Iromtép), sua esposa, sua sogra e a irmã da sogra com dois filhos desta. Num outro grupo se incluíam Porfírio e Pedro Colina, que deviam de ser casados com mulheres parentes entre si. Porfírio, por sua vez, era irmão de Serafim, também localizado nesta aldeia. Serafim, fazia parte de um outro grupo doméstico juntamente com Trukat (não é o mesmo que aparece na genealogia acima); a esposa de Serafim seria irmã ou prima paralela de Trukat. Finalmente havia mais um grupo doméstico de que fazia parte o Xerente João Noleto, casado com uma irmã de Serafim. A mulher de Serafim era filha da irmã de Secundo. Trukat, portanto, também seria filho da irmã de Secundo. Na aldeia de Secundo, as relações genealógicas que conseguimos estão reunidas no seguinte esquema:

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Entre este último esquema genealógico e o anterior só podemos traçar uma correlação: há indícios de que o Trukat indicado na genealogia anterior seja pai do pai do assinalado nesta última.

Curt Nimuendajú, que esteve entre os Krahó em abril e maio de 1930, conta que a aldeia de que estamos tratando sofrera uma cisão pouco antes de sua chegada, o que concorda plenamente com a data apontada pelo índio Kakró. Acrescenta Nimuendajú que a divisão da aldeia ocorrera por pressão dos fazendeiros vizinhos, mas nada diz sobre como e porque se dava tal pressão. Acrescenta também que um amigo dos índios tentava apoiar a aldeia, defendendo o último pedaço de terra indígena contra os fazendeiros intrusos, mas seus esforços foram solapados pela malícia e calúnia de seus oponentes, entre os quais se contava o chefe Secundo (Nimuendajú, 1946, p. 26). Pelos dados fornecidos por Nimuendajú não se pode perceber quais os interesses dos civilizados na mesma: Estaria Secundo deslocando a aldeia para permitir o estabelecimento em seu lugar de alguma fazenda? Fariam Secundo e Bernardino o jogo de dois grupos de civilizados que tivessem alguma disputa entre si? Embora, no texto de Nimuendajú, Secundo seja apresentado como o vilão, o índio que se punha contra os interesses de sua tribo, foram no entanto, os descendentes diretos de Bernardino que optaram em viver à moda dos civilizados. Aqueles que a aldeia de Secundo absorveu continuam a viver como índios.

O caso que acabamos de descrever difere dos dois anteriores, A e B, pelo fato de, ao invés de girar em torno de um conflito entre aldeias, referir-se às relações internas de uma aldeia. O grupo que permaneceu com o chefe Bernardino se caracteriza por pertencer a um conjunto de grupos domésticos cujas mulheres eram parentes consangüíneas entre si, ligadas por linha feminina; eram grupos domésticos que pertenciam a um mesmo segmento residencial. A liderança de Secundo, por outro lado, parecia se estender alem do seu próprio segmento residencial, abrangendo outros mais, como mostra o último esquema genealógico. Secundo vivia no grupo doméstico de origem de Ovídio; Serafim estava casado dentro do grupo doméstico de origem de Secundo; já João Noleto era casado dentro do grupo doméstico de origem de Serafim. Agostinho (Iromtép) é meio-irmão de Serafim e de Porfírio por parte de mãe. A mulher de Agostinho pertencia ao mesmo segmento residencial que a de Ovídio. Em suma, eram quatro ou cinco segmentos residenciais aliados pelo casamento. Somente o grupo doméstico a quem estavam ligados Porfírio e Pedro Colina não pudemos identificar .

Quanto às relações genealógicas que ligavam o grupo de Secundo com o de Bernardino, pouco sabemos. Deve-se notar que Porfírio fora anteriormente casado com Ronkhwoi, que agora estava na aldeia de Bernardino com filhos dele.

Em suma, Secundo estava à frente de uma série de segmentos residenciais. Bernardino ficou chefiando apenas o seu próprio segmento residencial, dentro do qual, de modo um tanto anômalo, casara, Mesmo este segmento, não o conseguiu manter sob seu comando durante muito tempo, uma vez que se agregou à aldeia de Secundo. Só conseguiu manter fora da órbita de Secundo sua própria família elementar.

Caso D: A morte do curador Chico Cornélio (Hõkão)

Trata-se de um caso antigo, mas interessante porque, diz-se, o acusado de feitiço foi morto com o consentimento de parentes seus. O caso perde um tanto de seu valor por não dispormos de certas relações genealógicas importantes.

Hõkão Kretxon, também chamado Chico Cornélio, teria morto com feitiço uma filha de Marcão, chamada Txahï. Teria sido João Silvano, um outro curandeiro, o seu acusador. Marcão, ajudado por seu irmão José Pinto, matou Hõkão. Os parentes deste vieram reclamar com Marcão, mas este disse-lhes que se entendessem com sua esposa. A mulher de Marcão respondeu-lhes que ela mesma tinha permitido a morte do curador, que era seu "tio". Com isso, os parentes de Hõkão não puderam exigir nenhuma indenização de seu assassino. Segundo um informante, Hõkão era "tio" de Gabriel, que não o vingou, com medo de Marcão. O filho de Hõkão, Patrício Chiquinho, era ainda pequeno quando o pai morreu, não tendo, pois, tomado nenhuma atitude quanto a isso.

Um filho de um filho de Hõkão mora na aldeia de Boa União, mas talvez nem tivesse nascido, quando da morte do avô. Em Boa União existe um outro parente de Hõkão, chamado Xavier, que é filho do filho do irmão do pai do curador. Mas tal parentesco não é dos mais próximos.

A única importância da morte de Hõkão para nós é o fato do curador ser parente de Gabriel, embora não possamos precisar como. Gabriel era chefe da aldeia de Pedra Branca quando esta foi atacada pelos criadores de gado em 1940. Depois disso, Gabriel foi substituído, por iniciativa do S.P.I., por Marcão. Até que ponto tais fatos criariam uma certa má vontade de Gabriel para com Marcão? O fato é que Gabriel foi um dos que se colocou contra Marcão, quando, mais tarde, este entrou em desavença com Abel, como veremos no caso seguinte.

Caso E: Marcão cinde a aldeia do Posto

Marcão era chefe da aldeia de Pedra Branca, que estava situada perto do Posto do S.P.I. Pelo ano de 1956, numa desavença com o índio Abel, provocou a cisão da aldeia. Abel havia ganhado uma bezerra do S.P.I. Não tratava dela e praticamente se esqueceu da mesma. Marcão passou a cuidar do animal, fazendo-se de dono. Então Abel soube no Posto que Marcão estava com sua vaca. Por isso, matou-a. Marcão se zangou. Foi para Itacajá, cidade próxima e voltou bebendo cachaça. O índio Pedro Noleto o encontrou no caminho e lhe avisou: “A vaca já está morta; Abel está retalhando carne; já vendeu um bocado para os índios.” Quando Marcão chegou, foi logo discutir com Abel. Segurou-o pelo braço. O povo juntou-se em torno dos dois. Marcão pediu um chicote para bater nele, mas ninguém deixou que fizesse isso. Brigaram só mesmo com as mãos. Depois disso Marcão retirou-se para sua roça. Pouco depois já corria o boato de que Marcão não mais voltaria, que passaria a morar fora da aldeia. E, de fato, Marcão foi seguido por outros que, com ele, construíram uma nova aldeia. Há outra versão do caso, contada por Abel, já transcrita (capítulo III, 6).

As relações de parentesco entre aqueles que seguiram Marcão são muito mais fáceis de serem traçadas do que entre alquiles que preferiram permanecer na aldeia original. Observando-se a aldeia criada por Marcão (aldeia B do esquema do Apêndice) vemos que em 1962 ela era constituída por oito grupos domésticos e, ao que tudo indica, ainda refletia a situação do tempo de sua criação, ou seja, do tempo em que Marcão brigou com Abel. O grupo doméstico 6d, onde vivia Marcão, fazia parte de um segmento residencial (6b, 6c, 6d) cujas mulheres eram irmãs entre si. Intrometido neste segmento residencial estava o grupo doméstico l5a, onde morava Amaro, irmão dessas mulheres. Outro segmento residencial constituído por três grupos domésticos (12a, 12b, 12c) abrigava mulheres que estavam ligadas a Marcão por linha feminina. Além desses ainda havia mais um segmento constituído por apenas um grupo doméstico (lb), onde morava Davi, irmão de Marcão. Sabe-se que um outro irmão de Marcão, José Pinto, também o seguira para a nova aldeia, mas tendo aí morrido sua esposa, retornou para a aldeia original. Convém notar que os segmentos residenciais que se transferiram para a nova aldeia não o fizeram integralmente, uma vez que deixaram alguns grupos domésticos na aldeia original. Assim, os grupos domésticos 1a, 6a e 12i permaneceram na antiga aldeia. Do mesmo modo, nem todos os parentes de Marcão se mudaram com ele. Penõ, uma irmã de Penõ e suas filhas, embora estivessem ligados a Marcão por linha feminina, permaneceram na antiga aldeia. O seguinte esquema mostra as relações genealógicas entre os habitantes da aldeia de Marcão (apenas as gerações mais velhas):

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Embora o homem tenha como que uma relação de dependência para com os parentes da esposa, uma vez que deve serviços e dádivas aos mesmos e deve ter permissão deles para transferir-se com sua esposa para outro local, neste caso, como vemos no esquema, Marcão arrastou consigo para a nova aldeia uma boa parte do segmento da esposa. Foi o irmão da esposa que seguiu a Marcão. O esquema mostra que, embora as relações de parentesco expliquem em parte a formação da facção que apóia um chefe, elas não explicam tudo. Nas relações de parentesco que uniam a facção de Marcão nota-se um predomínio do parentesco consangüíneo por linha feminina e também do parentesco por afinidade.

Quanto às relações daqueles que se opunham a Marcão, devemos considerar, em primeiro lugar, que este chefe se desentendeu com um homem, Abel, que tinha um grande número de parentes na aldeia, que podemos resumir no esquema seguinte:

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Abel era meio-irmão de Aleixo e seus irmãos por parte de pai. No entanto casou-se com Kotekhwoi que não sabemos se era irmã ou meia-irmã de Aleixo. O segundo caso é mais provável, pois senão Abel teria se casado com uma meia-irmã o que parece impossível entre os Krahó. Seu casamento reforçou seu parentesco com Aleixo e seus irmãos. De modo que, quando houve o choque com Marcão, Abel recebeu o apoio não somente de seus meio-irmãos (ao mesmo tempo meio-irmãos de sua esposa) como também dos parentes destes. Entre ê1es se contavam líderes como Esteves e seu irmão João Silvano. Não chegamos a conhecer este último, mas segundo uma passagem de Harald Schultz (Schultz, 1960, p. 195) parece que era um homem cobiçoso da chefia. Esteves e João Silvano tinham como origem o segmento residencial que abrange os grupos domésticos 9a, 9b, 9c, 9d, 9e. Além disso, tinha este segmento residencial uma série de casamentos com o segmento constituído pelos grupos domésticos 5a, 5b, 5c, 5d. Esteves e Secundo, filho de sua irmã, se casaram neste segmento e, Tébyet, casado com a filha da filha de uma irmã de Esteves, pertencia a este segmento. Deveria, porém, haver outros motivos, para os membros deste segmento não seguir Marcão. Talvez fosse simplesmente o fato de estar à margem da disputa, uma vez que esta nada tinha a ver com seus membros. E isto pode ser dito a respeito dos demais segmentos.

Convém notar que Raul, genro de Pedro Noleto, morador na casa 6a, embora fosse irmão de Marcão por parte de pai, não o seguiu.

Tendo Marcão abandonado a aldeia, os líderes se reuniram para escolher outro chefe. Não sabemos até que ponto Marcão tinha a intenção de permanecer fora; talvez quisesse voltar. Mas a escolha de outro chefe fez com que resolvesse definitivamente não retornar. Participaram da escolha Gabriel, que fora o chefe que havia precedido Marcão; Justino e seu irmão Marquinho, sendo este último casado com uma meia-irmã de Gabriel; Alfredo Velho, irmão de Gabriel; Esteves e seu irmão João Si1vano; André Ventura; José Nogueira. Diz Abel que Justino e Secundo eram favoráveis a ele, Abel, para o posto de "capitão". Justino e Marquinho seriam filhos de um dos pais do pai do pai de Abel; Secundo era filho do pai do pai de Abel. Segundo o índio Esteves, o encarregado do Posto preferia o Justino como chefe, mas este não sabia falar o português; Esteves deu apoio a Pedro Penõ, pois este era casado com a filha de sua irmã. Chiquinho Velho, que fora chefe da aldeia de Pedra Furada, participou da escolha, uma vez que era chefe honorário da aldeia que se cindira. Foi finalmente escolhido Pedro Penõ. Para isso deve ter concorrido o fato de saber ler, pois uma das atribuições do chefe é estabelecer relações com os civilizados. Mas a indicação de Pedro Penõ parecia demonstrar segundas intenções por parte daqueles que o escolheram. Além de estar ligado por laços de afinidade a líderes como Esteves e João Silvano, Pedro Penõ era filho da meia-irmã de Marcão. Desse modo, levavam à confusão o próprio grupo de parentes de Marcão, pois este, se quisesse derrubar o novo chefe, estaria agindo contra seu próprio sobrinho. Chiquinho Velho trouxe novamente Marcão para a aldeia a fim de que o aceitassem como chefe. Porém Marquinho respondeu duramente, dizendo que Penõ já estava escolhido, e que não voltariam atrás. Marcão chegou a argumentar que Penõ não podia ser chefe por ser filho de Xerente. Mas responderam-lhe que nascera entre os Krahó e estava acostumado com os costumes deles. Conta Penõ que ele foi levado ao Posto do S.P.I. pelos homens adultos e rapazes da aldeia e apresentado ao encarregado, que o reconheceu como chefe. Ainda diz Penõ que a chefia foi oferecida anteriormente a Esteves, a Davi (irmão de Marcão) e a João Silvano, que não a aceitaram.

É interessante notar que a aldeia criada por Marcão começou a mostrar tendências semelhantes às daquela que ficou sendo dirigida por Bernardino: ser absorvida pela aldeia maior, de onde se destacou. Assim, José Pinto, irmão de Marcão, retornou logo depois que sua esposa morreu. Algum tempo depois Marcão entrou em desavença com seu irmão Davi e este voltou para a aldeia de Penõ com todo o seu grupo doméstico; voltou também João Delfino, irmão da esposa de Davi, com o seu grupo doméstico. Conta Penõ que João Paulino também o consultara sobre as possibilidades de sua volta. Aniceto, irmão de Penõ também manifestara vontade de voltar, pois suas filhas moças não tinham rapazes com que se entreter na aldeia de Marcão: faltava o movimento que havia na de Penõ. O próprio Marcão falou em voltar, mas, quando Penõ foi até ele para tratar disso, Marcão desconversou, dizendo-lhe que agora seu filho é quem governava. Talvez, pois, todos voltem para a aldeia de Penõ e Marcão fique morando sozinho, tal como aconteceu a Bernardino. Entretanto, Tépré (Martim), da aldeia de Boa União, estava propenso a ir para a aldeia de Marcão, uma vez que o filho deste iria casar com uma filha de Martim e este cuidaria da administração do gado do velho chefe. Se Martim for para a aldeia de Marcão, talvez suste o processo de desaparecimento que parece ter-se iniciado para a mesma.

De qualquer modo, do caso da cisão da aldeia de Pedra Branca, pode-se tirar três indícios fundamentais. Em primeiro lugar, tal como mostrou a cisão da aldeia do Pitoró, as facções que seguem um chefe têm como núcleo relações de parentesco, podendo ser tanto de consangüinidade, como de afinidade. Quanto porém ao parentesco de consangüinidade, não são apenas os laços em linha feminina que são contados. Em segundo lugar, a disputa pode cindir o próprio grupo de parentes, tal como aconteceu com Pedro Penõ, que ficou do lado oposto ao do tio materno. Em terceiro lugar, a facção que se forma em torno de um líder não é estável. O aparecimento de novos conflitos podem modificá-la, tal como mostra o fato de Davi e João Delfino terem-se separado de Marcão.

Caso F: A morte do curador Alexandre (Póprĩ Kaxux)

Deve ter sido na mesma época em que a aldeia dirigida por Marcão se cindia que na aldeia chefiada por Ambrosinho ocorria a morte do curador Alexandre. Este curador foi morto por Hoihé, também conhecido como Mané Pezinho ou Pé Torto. Segundo um informante, Hoihé matou-o acusando-o de ter feito morrer sua mãe com feitiço. Outro diz que Hoihé acusava Alexandre de ter posto feitiço nele próprio. Um terceiro informante afirma que foi a sogra de Hoihé que ordenou a execução do curador. Houve também quem dissesse que o responsável pelo assassinato era o velho chefe Chiquinho. Outro acusou Silvino.

Não sabemos definir exatamente os grupos interessados no problema referente a esta execução. Tudo indica que o chefe da aldeia, Ambrosinho, não estava envolvido na questão. Ele, juntamente com seus irmãos Gregório e João Grosso, aconselharam a Zezinho, filho do assassinado, a não vingar-se, pois poderia morrer e tinha filhos para criar. Ambrosinho era primo paralelo patrilateral da mãe de Zezinho, que fora esposa de Alexandre. Por outro lado, parece que o assassino estava ligado ao antigo chefe da aldeia, Chiquinho. Vamos tentar ver até que ponto as genealogias disponíveis podem caracterizar os grupos interessados neste caso.

Em primeiro lugar, aqueles que foram responsabilizados por um ou por outro no assassinato podem ser incluídos no mesmo esquema, como vemos aqui:

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Este esquema bem mostra que não existe nenhuma linha de descendência preferencial na solidariedade entre parentes. É certo que Silvino era tio materno de Hoihé. Em compensação, Chiquinho não era tio materno da esposa de Hoihé, mas sim paterno. Isso fica ainda mais patente no caso daqueles que tomaram o partido de Alexandre, querendo tirar vingança por sua morte. Eram eles: Zezinho, Tópï, Osório, Raimundo, Chico Noleto, que se podem ver no esquema:

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Portanto, tanto os filhos de Alexandre como os filhos de suas irmãs quiseram vingar sua morte. Naturalmente, havia indivíduos que eram parentes tanto dos defensores de Hoihé como dos vingadores de Alexandre. Antônio da Silva era um deles, que resolveu ficar do lado dos segundos, opondo-se a seu meio irmão Manoel Bertoldo:

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O caso também envolveu pessoas de outras aldeias. Assim, o índio Juraci, da aldeia de Serrinha, contou que João Canuto, seu companheiro de aldeia, era da parte de Hoihé. E ele próprio, caso houvesse alguma luta, teria de tomar parte do mesmo lado. E alegou como motivo disso ligações de parentesco:

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Embora o chefe Ambrosinho não tenha tomado partido de nenhum dos lados, parece que tendia para o lado de Alexandre, visto que a ele estavam ligados vários daqueles que defendiam a inocência do curador. Este curador, parece, pertencia ao grupo (ou descendia dele) que tinha se deslocado para as aldeias Krahó depois da destruição da aldeia de Travessia, no Maranhão, pelos civilizados, em 1913. Tal aldeia pertencia aos Kenkateye. O fato é que Luís Baú, que pertencia a este grupo, e Khã, que pelo menos descendia dele, eram aparentados com Alexandre, embora não saibamos dizer exatamente como. E mantinham estreitas relações de afinidade com Ambrosinho:

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É bem difícil, pois, delimitar de modo nítido os dois grupos que entraram em disputa. Provavelmente a questão não chegou a dividir a aldeia em duas partes, ficando um certo número de seus habitantes à margem. Alexandre não chegou a ser vingado, mas sem dúvida sua morte motivou a adesão de alguns indivíduos a um ou a outro lado em disputas posteriores, que serão narradas.

Caso G: A morte do curador Cará

Cará foi o último indivíduo entre os Krahó que foi morto por acusação de feitiçaria. Harald Schultz dedicou um artigo a este caso (Schultz, 1960). Segundo este autor a morte se deu em maio de 1959 (idem, p. 185).

Cará morou primeiro na aldeia de Ambrosinho; em seguida, na de Marcão, indo finalmente para a de Penõ, onde foi morto. Marcão, não resta dúvida, foi quem promoveu o assassinato de Cará. Por isso mesmo o Serviço de Proteção aos Índios permitiu sua detenção por algum tempo. Acusava-o Marcão de ter posto feitiço no filho de João Delfino e nele próprio. Por isso João Delfino se deslocou até à aldeia de Penõ, onde o matou. João Delfino, como foi visto no caso E, é casado com a filha de uma meia-irmã de Marcão. Entretanto, não foram apenas João Delfino e Marcão os implicados na morte de Cará. Entre eles se contavam também Davi, José Pinto e Patrício. Os dois primeiros eram irmãos de Marcão. O último, tio materno de João Delfino. Davi, também já vimos no caso E, tem como esposa uma irmã de João Delfino. Eram, pois, um grupo de três irmãos, de um lado, um sobrinho e um tio materno de outro, unidos por laços de consangüinidade. Além deles ainda se contava Pedro Colina, irmão de uma antiga esposa de José Pinto.

Haveria na morte de Cará algo mais do que a vingança por simples presunção de feitiçaria? Até que ponto a morte de Cará ainda estaria ligada ao problema do afastamento de Marcão da chefia? Os parentes mais próximos de Cará viviam na aldeia de Serrinha: um filho, a irmã (esposa de João Canuto), a irmã do pai do pai (Hokrã, esposa de Serafim). Uma filha de Cará era casada com Rondon, filho de João Silvano. Acontece que Cará vinha a ser primo paralelo de Abel, aquele mesmo com quem Marcão brigara antes de separar-se da aldeia (Caso E). O assassinato de Cará não seria um modo de mortificar a Abel e aos parentes que o apoiaram na antiga aldeia dirigida por Marcão?

Certas pessoas, embora sabendo da morte de Cará que se preparava, evitaram tomar partido. Pedro Penõ não queria que matassem Cará em sua aldeia, mas não tinha como enfrentar a vontade de Marcão, que é seu tio materno. Ao saber da morte iminente, começou a preparar uma viagem para o Rio de Janeiro, escapando assim à responsabilidade. Quando, porém, viu João Delfino entrar em sua aldeia, não havendo tempo de ir para o Rio, resolveu visitar uns amigos pelas redondezas, amigos civilizados, por certo (vide Schultz, 1960, pp. 191-192). Sendo Cará primo paralelo de Abel e de Aleixo, e sendo este, com seus irmãos, primos paralelos da esposa de Penõ, este último, por certo, não queria entrar em choque com eles. Provavelmente também não queria ser responsabilizado pelos civilizados.

João Silvano também se opôs à morte de Cará. Não sabemos se era parente do mesmo, mas provàvelmente não. Entretanto, Silvano era tio materno de Abel, Aleixo e seus irmãos. Era ainda sogro da filha de Cará. João Silvano se afastou em viagem demorada, como nos diz Schultz (idem, p. 195), e durante sua ausência o curador foi morto.

Basílio, filho de José Pinto e, portanto, filho do irmão de Marcão, tomou uma atitude ambígua. Ele sabia que Cará iria ser morto. Por outro lado, é casado com uma mulher ligada por linha feminina a Aleixo. Basílio estava em conflito íntimo. Queria salvar Cará, mas não podia trair seus próprios parentes, contando-lhe o que se tramava. Lançou mão de um recurso: contou a Cará que havia sonhado que vira uma onça pular sobre êle, mas êle, Basílio, o salvara. Porém, explicou Basílio, como Cará não sabia adivinhar, foi embora assim mesmo. Numa outra vez Basílio nos contou que aconselhara a Cará a levar uma espingarda, mas este não ouviu seus conselhos. Pedro Penõ confirma que Basílio ofereceu insistentemente sua espingarda a Cará, mas este não aceitou; Basílio não era parente de Cará, mas ficou com pena dele.

Após a morte de Cará, José Pinto foi avisar sua esposa do fato consumado. Esta reclamou, dizendo que daí por diante seria ele quem lhe daria alimentos, aquilo de que necessitasse, já que lhe tinha acabado com o marido. Nem a esposa de Cará e nem sua filha conversam atualmente com Davi e Marcão.

Após a morte de Cará, Serafim começou a cobrar uma indenização a Marcão. Serafim é casado com Hokrã, irmã do pai do pai de Cará. Uma informação dada a Schultz (idem, pp. 189-190) diz que ele queria matar um dos implicados no crime: Marcão, João Delfino, Patrício ou Penõ. Tal informação é de Marcão e deve ser bastante facciosa, uma vez que Penõ é meio-irmão de Serafim e, por certo, este não desejaria matá-lo. Ainda em 1962 a questão perdurava. Serafim exigia indenização de Marcão. Este respondia que não podia pagar pela morte de Cará, uma vez que ninguém pagava pelas mortes que Cará fez com feitiço.

Segundo o chefe Ambrosinho, de Boa União, que, parece, esteve alheio a esses acontecimentos, Aleixo vinga a morte de Cará matando com feitiço. Ele teria matado a Patrício, uma irmã de Patrício e a filha desta.

A morte de Cará envolveu indivíduos, de um e de outro lado, pertencentes a três aldeias diferentes. Se ela puder ser interpretada como a continuação da questão que motivou o afastamento de Marcão da aldeia do Posto, verificaremos que os dois principais grupos que se defrontam (os parentes de Marcão e os parentes de João Silvano e de Esteves) não procuram se atingir diretamente, mas indivíduos que se acham na periferia da facção oposta. Assim, Cará era primo paralelo de Aleixo e seus irmãos mais jovens e só se ligava aos líderes João Silvano e Esteves através destes, que eram filhos de uma irmã do líder. Abel era meio-irmão de Aleixo de seus irmãos e, do mesmo modo, só se ligava indiretamente a esses líderes. As ligações de Abel eram reforçadas, por ter se casado com uma filha de uma irmã desses líderes. Também o grupo liderado por Esteves e João Silvano não atacou frontalmente a Marcão, escolhendo para substituí-lo, alguém que não tivesse nenhum parentesco com ele. Pelo contrário, escolheram a Penõ, filho da meia-irmã de Marcão e ao mesmo tempo casado com a filha de uma irmã desses líderes. Penõ ficou, pois, entre as duas facções e sua posição ambivalente é nítida no caso da morte de Cará. Basílio estava em posição idêntica.

Já o grupo liderado por Patrício ocupava uma posição de meio termo entre o de Marcão e o de João Silvano e de Esteves. Quando da retirada de Marcão, Patrício preferiu ficar na aldeia original, embora um filho de sua irmã casado com uma parenta de Marcão, e uma filha da irmã, casada com Davi, irmão de Marcão, tenham acompanhado o velho chefe. Mas na morte de Cará, Patrício estava francamente junto com Marcão.

Caso H: O falecimento de João Grosso

Conta Pedro Penõ que certa vez os moradores da aldeia do Posto foram até a aldeia de Ambrosinho para participar do ritual de Tépyarkwa. Amaro, "cunhado" de Marcão, estando bêbado, disse ao irmão de Ambrosinho, que era o padré e que estava dirigindo o ritual, que os moradores da aldeia do Posto tinham ido até lá para matá-lo. O padré, João Grosso, tinha a mente um tanto débil e, assim que terminou o ritual, fugiu para Carolina, sem mesmo prevenir-se com roupa. Lá ganhou roupa e viajou para Goiânia. Ai ganhou uma espingarda e voltou para a sua aldeia. Andava sempre com a espingarda e dizia que a qualquer momento os habitantes da aldeia do Posto apareceriam para o matar. Um dia afastou seu filho com uma mentira e pediu à esposa que fosse arranjar massa de mandioca porque estava com fome. Ela lhe perguntou se ele não se mataria. Ele respondeu que não. Ela se retirou e pouco depois ouviu um tiro. Voltou e o encontrou caído. Diz Penõ que, por causa da morte de João Grosso, Ambrosinho, aliado a Marcão, queriam atacar sua aldeia. Os moradores da aldeia de Ambrosinho acusavam João Silvano, Esteves e André (este último casado com a filha da irmã dos outros dois) de terem posto feitiço em João Grosso. Penõ ameaçou chamar a polícia e Ambrosinho e Marcão não falaram mais em atacar sua aldeia.

Segundo um informante, João Delfino (Apïhi), o matador de Cará, chegou à aldeia de Ambrosinho antes que João Grosso fosse sepultado. Sendo curador, acusou a Aleixo, da aldeia do Posto, de ter colocado cabeça de rolinha junto com pedra na cabeça de João Grosso. Já um outro informante diz que foi o curador João Crioulo (provàvelmente morador da aldeia de Ambrosinho) que acusou a Antoninho, morador na aldeia do Marcão, de ter posto no suicida miolo de jandaia.

O fato é que a morte de João Grosso levou Ambrosinho a desconfiar dos habitantes da aldeia do Posto, chefiada por Pedro Penõ. Isso levou a um rompimento de relações entre os dois chefes. Esse rompimento provocou a uma aproximação entre o velho chefe Chiquinho, que já não governava e morava na aldeia de Ambrosinho, com Pedro Penõ, como levou também Pedro Penõ a apoiar Jacinto nas suas pretensões de substituir Ambrosinho na chefia. Em 1962 ainda perdurava o desentendimento entre os dois chefes. Tanto que, no fim desse ano, quando se realizava na aldeia do Posto um ritual de Pembkahëk, contou-nos Penõ que iria avisar a Ambrosinho que não convidava a sua aldeia para participar porque haviam realizado um ritual na aldeia dele sem que convidassem a gente de Pedro Penõ. Na realidade havia mais um motivo: os alimentos existentes nesta ocasião na aldeia do Posto eram poucos; tanto que das quatro outras aldeias Krahó, só uma, a mais próxima, a de Pedra Branca, foi convidada.

Deve-se notar que os chefes Ambrosinho e Pedro Penõ têm o mesmo nome indígena: Kro’kroko Haragai’këre Hampó Penõ. Logo, Pedro Penõ deve chamar Ambrosinho de keti e ser chamado de ipantu. Pedro Penõ recebeu seu nome de um antigo líder, Ambrósio. Este era irmão do pai da mãe de Penõ. Parece que era também o irmão da mãe de Ambrosinho; ou irmão da mãe do pai de Ambrosinho. De qualquer modo, embora a relação não possa ser traçada exatamente, Ambrosinho vem a ser parente de Penõ. Não obstante, por serem chefes de aldeia, e recaindo a suspeita da morte de João Grosso sobre os habitantes da aldeia de Pedro Penõ, a desavença reinou entre eles. Este caso, pois, nos ensina que a qualidade de membro de uma aldeia pode às vezes sobrepor-se às relações de parentesco, embora no exemplo em questão o parentesco não seja muito próximo.

Note-se também que Apïhi acusou Aleixo de feitiço, mantendo viva assim a desavença entre facções que cindiu a aldeia do Posto.

Caso I: O velho chefe Chiquinho cinde aldeia

Chiquinho havia sido chefe com seu irmão Bertoldo. Por volta de 1933 sua autoridade estava sendo desafiada por um outro líder, Luís Balbino, índio Canela originário da aldeia de Travessia, no Maranhão, destruída pelos civilizados em 1913. Este índio deslocou com ele sua facção, criando uma nova aldeia em Cabeceira Grossa, abandonando a aldeia perto da qual estava o missionário Zacarias Campêlo (Campêlo, 1957, pp. 104-105). Daí por diante não sabemos como evoluíram os acontecimentos. Teriam Chiquinho e Bertoldo perdido seu controle sobre os índios que permaneceram com eles de modo que estes também se deslocassem para junto de Luís Balbino? Teriam Chiquinho e Bertoldo dividido sua autoridade com Luís Balbino, coexistindo as duas facções na mesma aldeia? O fato é que, quando a aldeia foi atacada por civilizados em 1940, foi Luís Balbino quem tentou entabular conversações com o chefe dos atacantes, sendo por eles morto à traição. Chiquinho fugiu para a casa do vaqueiro civilizado que cuidava de seu gado, lá se escondendo. Quanto a Bertoldo, não sabemos se então já tinha morrido, se morreu vítima dos civilizados. De qualquer modo, já devia de ser velho neste tempo. Depois desse ataque, quando o S.P.I. se estabeleceu entre os Krahó, os funcionários do mesmo fizeram com que os índios dessa aldeia substituíssem Chiquinho por um chefe mais novo. A escolha recaiu sobre Ambrosinho e, ao que se diz, com o apoio do próprio Chiquinho. Mas até que ponto Chiquinho se conformou realmente com a perda da chefia? Provàvelmente mantinha uma parcela de poder, liderando uma facção e tinha bastante prestígio, por ser talvez o mais velho dos Krahó e um dos maiores conhecedores de suas tradições.

Em 1960, mais ou menos, Ambrosinho e Chiquinho divergiram quanto ao lugar para onde deveriam mudar a aldeia. Tendo os índios se deslocado para as casas das roças para efetuar o plantio, ao mesmo tempo construíram duas aldeias em lugares diferentes. Ambrosinho preferiu um lugar cheio de matas, bom para o cultivo de roças; Chiquinho escolheu um local pobre em matas, mas limpo, onde podia enxergar longe. Esta é naturalmente a versão daqueles informantes que não queriam comprometer-se. Um entretanto contou que Ambrosinho havia acusado tanto a Pedro Penõ, chefe da aldeia do Posto, como o próprio Chiquinho, de haverem mandado o curador Aleixo colocar feitiço no seu irmão João Grosso. Por isso é que Chiquinho quis separar-se. Ambrosinho começou a dizer que queria morar sozinho e Chiquinho chamou seus parentes para morarem separados. O próprio Ambrosinho nos disse uma vez que Chiquinho separou-se porque tinha medo de feitiço. Xavier conta que Chiquinho alegava que não queria ficar perto do ribeirão do Xupé porque outrora o Xerente Putxeti havia colocado feitiço em suas águas e Fernandes havia visto. Xavier dá uma versão da separação que não parece das mais aceitáveis. Diz que ela ocorreu quando Jacinto tinha a chefia, tendo-a tomado de Ambrosinho. Jacinto foi então deixado na aldeia juntamente com Xavier, Martim, Silvino, José Magro. Com Ambrosinho seguiram Antônio da Silva, Luís (Txïktxïk), Tópï, Khã, Hunte, Katxet, Apïhi. Seguiram Chiquinho os índios Manoel Bertoldo, Joãozinho, Tehi, Panhi, Ka'këre, um outro chamado Panhi, Pïrïpok. Mas tudo indica que Jacinto tomou a chefia de Ambrosinho depois da cisão da aldeia.

Tentaremos indicar as relações de parentesco que ligavam os que seguiram a um e a outro chefe. Vejamos em primeiro lugar a posição num esquema genealógico daqueles que seguiram Chiquinho:

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Chiquinho não teve nenhum filho, embora tenha se casado mais de uma vez. Pelo esquema acima pode-se notar que sua influência se faz sentir sobre os parentes de sua atual esposa, bem como sobre os descendentes de seu irmão. Nota-se um terceiro grupo, do qual tomam parte Silvino e o falecido Hoihé (aquele que matou Alexandre: Caso F). Entretanto, sabe-se que Silvino se acha de certo modo ligado a Chiquinho, uma vez que este esteve casado com a mãe daquele, ajudando a criá-lo. O grupo de parentes de Chiquinho, de Joãozinho e de Silvino têm várias alianças matrimoniais entre si. É interessante notar que ficaram junto a Chiquinho todos aqueles que estavam implicados na morte de Alexandre. Entretanto, a esposa deste, bem como duas de suas filhas, ficaram também na aldeia de Chiquinho. Como se explicaria isso? Só se pode explicar pelo fato de o marido de uma delas ter decidido ficar com Chiquinho, já que era descendente de seu irmão Bertoldo. Deve-se notar que na referida casa viviam: a sogra de Alexandre; a viúva de Alexandre; duas filhas de Alexandre, sendo uma delas casada com Quain, descendente de Bertoldo e tendo três crianças; a filha da irmã da viúva de Alexandre, cujo pai era Silvino; esta, por sua vez, tinha uma filha, mas parece que não vivia com o pai da criança. Em suma, Quain era o único homem adulto da casa, do qual essas mulheres dependiam para obter carne de caça, tecidos, sal etc. Por isso deveria ter bastante poder de decisão. Deve-se notar que o falecido Alexandre tinha dez filhos nesta casa, dos quais sete morreram. Atribui-se a morte dos filhos de Alexandre à fome que passaram a sofrer depois da morte do pai. Os três sobreviventes foram a esposa de Quain, sua irmã e um irmão que estava casado com a filha de uma das irmãs do chefe Ambrosinho. Vê-se, pois, que os habitantes da casa bem dependiam de Quain e este podia decidir o local em que deveriam morar.

Quanto às esposas de Joãozinho e de Sudal, irmãs entre si, parece que não têm irmãos germanos vivos. Entretanto, têm três primos paralelos, Pedro Noleto, João Borges e Esteves, irmãos entre si, que são filhos do irmão de seu pai e da irmã de sua mãe. Porém, esses primos paralelos estão em três aldeias diferentes.

A esposa de Chiquinho deixou parentes por linha feminina na aldeia de Ambrosinho; são parentes seus por linha feminina também, o núcleo dos habitantes da aldeia de Marcão, sendo que com uma dessas parentas é que este chefe está casado.

Em suma, Chiquinho, ao se separar, tal como aconteceu com Marcão (Caso E), não levou consigo todo o segmento residencial a que pertencia (Chiquinho pertence ao segmento a que demos o nº 6, que tem representantes em quase todas as aldeias); além disso, como veremos no caso seguinte (Caso J) Chiquinho também não conduziu todos os seus parentes consigo. Finalmente, tal como aconteceu com o grupo que seguiu Marcão, embora o marido esteja até certo ponto subordinado aos parentes da esposa, é patente que certas mulheres seguiram seus maridos e não estes que seguiram os parentes de suas esposas: tal é o caso da esposa de Quain e de suas parentas e também das esposas de Sudal e de Joãozinho. Nota-se, por sua vez, Joãozinho seguiu a Chiquinho, casado com uma parenta sua.

Enfim, notam-se vários casamentos entre os indivíduos componentes dos grupos de parentes que seguiram Chiquinho. Tais casamentos reforçariam a coesão da nova aldeia.

Ainda com referência ao grupo que seguiu Chiquinho, deve-se dizer que havia indivíduos que ficaram em conflito com relação à fidelidade a um ou outro chefe. Tal é o caso de Antônio da Silva. Ele é filho de Bertoldo, irmão de Chiquinho, e disse-nos que este o estava "puxando" para sua aldeia, mas ele não queria ir. Antônio da Silva vem a ser parente também do chefe Ambrosinho, embora não saibamos traçar esta relação genealogicamente.

Ambrosinho parece ter ficado à frente de um grupo mais heterogêneo. Entre os seus parentes mais próximos se contavam seu irmão Gregório, com esposa e filhos; seu primo paralelo matrilateral José Magro com esposa e filhos. Convém esclarecer que José Magro é casado com uma irmã de Manoel Bertoldo, portanto, com uma filha do irmão de Chiquinho. Além disso, ficaram com Ambrosinho duas irmãs com seus maridos e filhos. Ambrosinho é casado com uma filha da irmã do falecido chefe Luís Balbino. Os parentes desse chefe também ficaram todos com Ambrosinho. Também ficaram com ele parentes de seu pai. Mesmo assim, Ambrosinho não continuou seguro, pois Jacinto, que permaneceu em sua aldeia e vinha a ser parente de Chiquinho, tentou tomar-lhe o posto de "capitão".

Caso J: Deposição do chefe Ambrosinho

Depois da morte de João Grosso, como já dissemos, as relações entre os chefes Ambrosinho e Pedro Penõ ficaram estremecidas. Ocorreu também a cisão da aldeia de Ambrosinho com a retirada de Chiquinho. Este era chefe honorário da aldeia de Marcão e de Penõ e fez causa comum com este último contra Ambrosinho.

Quando Jacinto pretendeu tomar a chefia da aldeia, recebeu o apoio de Chiquinho, de Penõ e de Xavier. Este último é casado com uma irmã de Jacinto. Mas, ao mesmo tempo, é filho da irmã do pai de Ambrosinho. Tepré, casado com uma irmã de Jacinto, mas filho de Ambrosinho, estava do lado do primeiro. Não sabemos, entretanto, quantos teriam apoiado Jacinto. Parece que a deposição de Ambrosinho foi feita através de intrigas junto ao encarregado do Posto. Ocorreu, provàvelmente em 1960 ou 1961. Segundo um informante, quando Ambrosinho, Antônio da Silva e Jacinto foram ao Posto para apanhar tecidos, o encarregado do S.P.I. falou com o primeiro: "Agora você já está abaixado; o chefe é esse aqui, Jacinto." Então Ambrosinho respondeu: "Não tem nada não; eu não estou ganhando dinheiro para ficar zangado!" Xavier conta que foi ele mesmo, em combinação com Penõ e com o encarregado do Posto, que depuseram Ambrosinho. Este ficou tão triste que até chorou.

Jacinto era bom, no serviço ia na frente e pensava em todas as coisas. Entretanto, fizeram-lhe feitiço, puseram-lhe cabelo de paca, mas Xavier não sabe quem foi. Jacinto então ficou tuberculoso. Penõ conta que José Magro, primo paralelo de Ambrosinho, declarou na aldeia de Marcão que Jacinto iria morrer de fogo. Todo o mundo começou a imaginar então que José Magro iria fazer feitiço contra Jacinto. Pouco depois Jacinto começou a emagrecer, pôs sangue pela boca, foi definhando e morreu.

Segundo Xavier, foi Marcão, juntamente com um funcionário do S.P.I., que se esforçaram para que Ambrosinho voltasse novamente à chefia. Marcão argumentava que Jacinto não devia de ser chefe por ser Gavião (o pai de Jacinto, chamado Simeão, era filho de um Pïkobye). Em outubro de 1962 o encarregado do Posto fez Ambrosinho novamente reassumir. No fim no mesmo ano, quando visitamos a aldeia de Boa União, viemos a conhecer Jacinto, que estava tuberculoso, com a doença em estado adiantado. Veio a morrer pouco depois.

Assim como Jacinto recebeu apoio da aldeia do Posto, ao deixar de ser chefe pensou, segundo Penõ, que esta aldeia lhe tinha retirado tal apoio e, por isso, zangou-se com os seus moradores.

Parece que o apoio que Jacinto recebia era mais externo do que dos habitantes da aldeia que dirigia. Embora muitos se mostrassem desfavoráveis a Ambrosinho, muitos eram também os pretendentes ao cargo de capitão. A aldeia do Posto fez de uma das filhas de Jacinto, Katenk, sadon dos seus homens, isto é, chefe honorária da aldeia do Posto. O fato ocorreu depois da morte de João Grosso e de certo modo já envolvia uma hostilidade a Ambrosinho. Jacinto era originário da aldeia do Posto e vinha a ser irmão de José Nogueira, um dos lideres desta aldeia, como veremos mais adiante. Os esquemas abaixo mostram as relações de Jacinto com alguns daqueles que o apoiavam.

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Apesar dos dois esquemas terem sido fornecidos por dois bons informantes, um não concorda com o outro a não ser que Prókhwoi e Nimõk (Rosa) sejam a mesma pessoa, isto é, a mãe de Jacinto. Entretanto não temos dados suficientes para nos certificarmos disso.

Finalmente, depois que Ambrosinho voltou à chefia, a aldeia do Posto escolheu como chefe honorário a seu filho Txïktxïk e as boas relações entre Ambrosinho e Pedro Penõ se restabeleceram.

Este caso, além de mostrar a forte influência que os assuntos internos de uma aldeia podem receber das outras, ainda nos mostra algo a respeito de uma instituição que será examinada no capítulo seguinte: a chefia honorária. É que, embora o chefe honorário mantenha este título vitaliciamente, parece que para efeitos práticos ele caduca com o tempo. Vimos que Chiquinho era chefe honorário da aldeia do Posto e ele participou ativamente no momento de solucionar a crise gerada pela retirada de Marcão. Quando João Grosso morreu e seu irmão Ambrosinho passou a desconfiar dos habitantes da aldeia do Posto, estes escolheram como chefe honorário a filha de Jacinto, naturalmente para apoiar a este contra Ambrosinho. Finalmente, sendo superada a crise entre as duas aldeias, foi escolhido o filho de Ambrosinho para chefe honorário. A escolha de um novo chefe honorário não implicava em retirar o título do anterior.

Caso K: José Nogueira tenta cindir a aldeia do Posto

José Nogueira tentou separar-se da aldeia do Posto em 1966. Em 1951/52 ele havia liderado um movimento messiânico entre os Krahó. Fracassando o movimento, foi tido como afetado de suas faculdades mentais. Em 1962, quando o conhecemos, sentia-se perseguido, achava que todos estavam conspirando para matá-lo. Tentou mesmo enforcar-se, mas foi salvo a tempo por seu filho. No ano seguinte o encontramos supostamente curado. Entretanto, em 1967, quando visitamos a aldeia, soubemos que no ano anterior, alegando que queriam matá-lo, abandonou a aldeia e foi morar na casa da roça. Todos os índios se utilizam de uma casa que fazem em suas roças durante o período do plantio e da colheita. Mas José Nogueira passou a morar definitivamente lá. E na aldeia corriam boatos de que outros parentes seus o seguiriam e iriam construir uma nova aldeia. No meio do ano de 1967 o caso ainda não havia sido resolvido. Não sabemos como evoluiu daí por diante porque, desde então, não visitamos mais os Krahó.

Segundo Penõ, tudo começou por causa de um mexericos. É que Amaro teria contado a José Nogueira que soubera de João Delfino que este último recebera ordens de Penõ, José Pinto e Davi para lhe porem feitiço. Havia também corrido a notícia de que fora Zacarias quem revelara isso. João Delfino queria pôr as coisas em pratos limpos fazendo com que se interpelasse a Zacarias no pátio, diante de todos, pelo que havia afirmado. Penõ, por sua vez, queria chamar a sua aldeia Amaro e José Nogueira para que esclarecessem os habitantes da mesma sobre tais boatos. Penõ ainda revelou que Mrãiti (Vitória), esposa de José Nogueira, índia Xerente, havia ameaçado de chamar seus parentes em Tocantínia para fazerem feitiço contra ele, Penõ. Esclareceu ainda este chefe de que não tinha nada contra José Nogueira, tanto que o fez seu “secretário”, pois ele é bom para falar a língua Krahó. Penõ temia mais a Mrãiti do que a José Nogueira. Acreditava que ele estava fazendo tudo isso por influência dela. Acrescentou Penõ que Amaro dissera que a morte de José Nogueira era pedida para indenizar a morte de Antônio Pereira.

José Nogueira nos contou que realmente ficara doido e fugira da aldeia com medo de que o povo o matasse. Estava então com a roça plantada e que não voltava à aldeia até o tempo da colheita do arroz, pois tinha de ficar tomando conta da roça devido ao perigo de ser atacada pelos periquitos. Sua mulher, porém, acrescentou mais: disse que José Nogueira não voltaria para a aldeia; que estava brigado com Davi, Penõ, João Delfino e Basílio. Estava sendo acusado de mandar Aleixo pôr feitiço nos outros.

Numa outra ocasião, José Nogueira acrescentou mais alguma coisa a respeito da questão que o separava da aldeia. Quando Antônio Pereira morreu, Pedro Penõ foi dar conselho a José Nogueira, dizendo-lhe que não pensasse mal de ninguém, pois nenhuma pessoa havia feito feitiço contra Antônio Pereira. Entretanto, pouco depois, num dia em que Davi. Esteves, José Pinto, faziam esteira junto ao ribeirão da aldeia, Pedro Noleto ouviu Penõ contar-lhes que José Nogueira dizia que nenhum velho iria continuar vivendo na aldeia. Nessas palavras haveria uma alusão a Penõ, Pedro Noleto, José Pinto. Davi, Esteves. Acrescentou que José Nogueira recorreria a Aleixo para matá-los. Esteves foi então interpelar José Nogueira sobre isso. Depois foi Pedro Noleto. José Nogueira respondeu a este que nada de mal lhe havia feito, para que desejasse enfeitiçá-lo; Aleixo não era nenhum bicho. Pedro Noleto saiu satisfeito com a resposta. José Nogueira então afastou-se da aldeia. José Pinto foi até onde ele estava, junto com Pedro Penõ, para falar-lhe. José Pinto acabou por lhe dizer que não queria mais vê-lo. Penõ ficou quieto e nada disse a favor ou contra as palavras do "tio".

Quando visitamos pela primeira vez a aldeia do Posto, em 1962, entregamos vários brindes a Pedro Penõ, o chefe, para que os distribuísse. Pouco depois, quando penetramos na casa em que estava José Nogueira, aí houve queixas de que aquela casa e umas poucas outras próximas(8a, 8b, 7a, 6a) não haviam participado da divisão dos brindes. Verdade ou mentira, havia naquelas casas uma certa má vontade para com o chefe. Quando José Nogueira se retirou para sua casa da roça, os indivíduos que ameaçavam segui-lo eram também de algumas dessas casas (8a, 8b, 5a, 5b, 5c, 5d, 6a, l9b). José Nogueira não parece ter nenhum parente matrilineal vivo, isto é, não tem nenhuma casa que possa dizer que seja a casa materna. Entretanto, tendo tido pelo menos cinco pais biológicos, está relacionado a muitas casas da aldeia e parece que tinha uma posição importante na casa onde moravam Antônio Pereira e Joaquim (8b), naquela em que moram Secundo e sua mulher e sogra (5b), na casa em que mora Aloísio, mulher, sogra e o pai do mesmo, o velho Gabriel (5a) e naturalmente na própria casa em que mora (5d).

A questão da retirada de José Nogueira parece constituir a cisão do grupo que se opôs a Marcão, quando este abandonou a aldeia. Dissemos (Caso E) que tal grupo era constituído pelos parentes de Esteves e de João Silvano sobretudo. Entre os demais componentes estavam os parentes de Patrício (embora um filho de uma irmã deste, João Delfino, tenha seguido Marcão), de Gabriel, e outros. Justino e Marquinho também se opuseram a Marcão. Convém notar que eram irmãos e que pelo menos Marquinho temos certeza de que estava ligado a José Nogueira matrilinealmente. Depois do afastamento de Marcão, entretanto, muita coisa mudou. José Pinto, Davi, irmãos de Marcão, voltaram para a aldeia de Penõ. João Delfino fez o mesmo. Certos líderes morreram, como Patrício, João Silvano, Marquinho, Justino, Pedro Colina e, por fim, Antônio Pereira. É interessante notar, também, que Aleixo, filho de uma irmã de Esteves, estava sendo contado como um dos partidários de José Nogueira, o qual o usaria para fazer feitiço contra seus inimigos. De fato, nos últimos tempos estava havendo um afastamento entre Esteves e Aleixo, chegando o primeiro certa vez, na praça da aldeia, pegar de um pau para bater no sobrinho. Nunca soubemos exatamente o porquê dessa desavença. O fato é que ela ocorreu, não obstante Esteves e Aleixo possuírem o mesmo nome indígena (Itx?k Hëktókót).

Ora, Aleixo é casado com Hompekhwoi, mulher que é aparentada com José Nogueira tanto por parte de pai como de mãe. Uma irmã de Hompekhwoi, Pïto, é casada com Joaquim, filho do primeiro marido da esposa de José Nogueira. Joaquim, embora sendo filho de um meio-irmão de Penõ, já havia mostrado ter pretensões à chefia da aldeia, como nos confessou o próprio chefe.

Embora as citadas casas pudessem se transferir para uma nova aldeia a ser chefiada por José Nogueira, nem todos seus moradores iriam. Pedro Penõ já havia sondado os homens naquelas casas para saber se podia contar com eles ou não. Aleixo, primo paralelo matrilateral da esposa de Penõ lhe afirmou que não iria para a nova aldeia (mas Aleixo era apontado como aquele que faria feitiço contra os inimigos de José Nogueira); Secundo, irmão de Aleixo, casado com a filha de uma meia-irmã de José Nogueira, e que tinha, além disso, um pai em comum com José Nogueira, também disse a Penõ que não iria acompanhar ao líder dissidente; Aloísio, casado com outra meia-irmã de José Nogueira, respondeu da mesma forma; e assim também responderam Aniceto, genro de Aleixo, e Pascoal, genro de Aloísio.

Entretanto, o chefe Ambrosinho revelou que, numa festa na aldeia de Marcão, o velho Gabriel confirmou que se separaria da aldeia de Pedro Penõ; também deixariam a aldeia seu filho Aloísio (o mesmo citado acima), Joaquim (filho da esposa de José Nogueira), Alcides (casado com a filha de uma meia-irmã da mãe de José Nogueira), Pedro Noleto (um dos pais biológicos de José Nogueira) e outros. Mas com Pedro Penõ ficariam Esteves (embora casado com uma meia-irmã de José Nogueira), Lourenço, Raimundo Agostinho (embora meio-irmão de José Nogueira, é casado com a filha da filha da irmã de Esteves) e outros.

Não parece ter sido um motivo único que provocou pouco a pouco a formação de uma facção liderada por José Nogueira. Já aludimos às pretensões à chefia do filho de sua esposa. Um outro motivo foi a morte do padré Antônio Pereira. Este havia sido aconselhado por um curador a não beber cachaça. Tendo ido a uma festa na aldeia de Ambrosinho, tomou aguardente antes de entrar nessa aldeia. Participou da festa e voltou para a sua aldeia, a do Posto. Aí caiu doente. No dia em que Antônio Pereira morreu, o chefe Ambrosinho estava na aldeia do Posto. E ouviu os índios atribuírem a morte do padré a algum curador de sua aldeia. Então, Ambrosinho falou ao povo na praça e interpelou os curadores locais, perguntando-lhes se algum deles tinha visto qualquer feitiço no corpo de Antônio Pereira. Eles responderam que não. Assim Ambrosinho tentou apagar as dúvidas que pairavam sobre os habitantes de sua aldeia. Mas, entre os habitantes da aldeia do Posto, as dúvidas continuaram. Antônio Pereira era primo paralelo patrilateral de José Nogueira. Este nos contou que, quando da morte de Antônio Pereira, o chefe Pedro Penõ foi até ele e lhe aconselhou a não pensar mal de ninguém, pois nenhuma pessoa havia posto feitiço no falecido. Assim, supunha-se que José Nogueira deveria estar desconfiado de alguém e por isso se temia que ele tomasse a iniciativa de fazer feitiço como represália. Aliás, todas essas acusações de feitiço são muito contraditórias; por exemplo, o próprio Ambrosinho diz ter interpelado os curadores da aldeia do Posto, recebendo deles a resposta de que não tinham visto nenhum feitiço em Antônio Pereira; ele mesmo, em outra ocasião, nos disse ter sido Aleixo quem matara o sogro, Antônio Pereira.

Nessa desavença ainda estava envolvida outra questão. Aprak, ligado a José Nogueira por ser filho de um meio-irmão matrilateral de uma meia-irmã patrilateral de José Nogueira, havia casado com a filha da filha de Davi (este é meio-irmão da mãe de Penõ). Entretanto, sua esposa o deixou, dando preferência a um filho de Penõ, que Aprak encontrou na cama com ela. Isto gerou algum ressentimento. Kratpe, irmão de Aprak, se casou com uma moça muito nova, filha de João Delfino, deflorando-a. Davi, meio-irmão matrilateral da mãe da moça, ficou muito zangado, recebendo duas espingardas de Kratpe. Mas não ficou satisfeito com o presente e exigiu mais. Esses problemas com Aprak e Kratpe contribuíram para afastar José Nogueira de Davi.

Além disso, uma menina, filha de Joaquim, filho da esposa de José Nogueira, havia entrado na casa de José Pinto (irmão de Davi e meio-irmão da mãe de Pedro Penõ) e cortado o ipré (cinto feito de várias voltas com corda de fibra de tucum) da filha deste. José Pinto passou então a cobrar outro cinto de José Nogueira, o qual prometeu colher tucum para a confecção, mas estava demorando a fazê-lo. Era mais um motivo de afastamento entre José Nogueira e os irmãos José Pinto e Davi.

Esteves e Hëka (Francisco) fizeram suas roças perto da aldeia. Os porcos de Gabriel penetravam nas roças, chafurdando-as. Por isso, Hëka e Esteves maltratavam os porcos atravessando-lhes pregos no focinho. Por causa disso Gabriel falava em afastar-se da aldeia, não para seguir José Nogueira, mas sim para ir morar sozinho no Jaó, local onde há muito estivera instalada a aldeia. Estando, porém Gabriel muito velho, e ficando a casa em que morava dentro da área de influência de José Nogueira (um dos pais de José Nogueira era irmão de sua atual esposa), era bem possível que o conduzissem à nova aldeia que este desejava construir.

Este caso nos ensina que, como a facção de Marcão se cindiu, provocando a volta de Davi e de João Delfino para a aldeia de origem, também a facção de Penõ agora se cindia. Davi e João Delfino vieram a se unir a Penõ, enquanto Aleixo, que se opunha aos mesmos, quando da separação de Marcão, afastava-se agora de Penõ. Isso bem mostra a fluidez desses agrupamentos políticos entre os Krahó.

Este caso ainda nos ensina que o sistema de parentesco não permite predizer a fidelidade de cada indivíduo a um ou a outro líder. Tanto isso é verdade que Penõ sondava e pesava os interesses de cada pessoa que de algum modo estava ligada a José Nogueira.

Caso L : Disputa entre os curadores Basílio e Aleixo

A disputa entre os curadores Basílio e Aleixo parece vir de longo tempo. Já em 1962, no dia em que morreu Pedro Colina, Basílio nos assegurou que tinha sido Aleixo quem o matara com feitiço. As relações entre eles eram as seguintes, notando-se que, contrariamente às regras Krahó, Pedro Colina vivia com duas mulheres:

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No ano seguinte houve novas acusações. Um filho de Raimundo Agostinho havia quebrado cuia e matara porco e galinha de Basílio. Tratava-se de um menino. Basílio reclamou. A mulher de José Aurélio então queixou-se de que Basílio estava pondo feitiço nele. Krĩru, irmã de Basílio, acusou então a Aleixo de ter matado com feitiço a Irãyaka, irmão dela. Tais acusações geraram uma reunião na praça, na qual Basílio e Aleixo falaram em apaziguar suas irmãs, sendo que José Aurélio e José Pinto (pai de Basílio) declararam não estar dispostos a levar avante tais mexericos.

Até aqui, pois, poderíamos tomar a hostilidade entre Aleixo e Basílio como expressão da rivalidade entre os seguidores de Marcão, uma vez que Basílio é filho de um irmão deste chefe, e os parentes de Esteves, de cuja irmã Aleixo é filho.

Mas, no começo de 1967, quando José Nogueira ameaçava cindir a aldeia (vide Caso K), surgiu outra questão entre Aleixo e Basílio. Uma das crianças de Secundo estava doente; depois de consultar vários curadores, Secundo chamou seu próprio irmão, Aleixo, o qual acusou a Basílio de ter posto feitiço na criança. Esta acusação repercutiu mesmo nas outras aldeias. Tanto que Gil, irmão da mãe da mãe de Txïktxïk (filho de Ambrosinho), chefe honorário da aldeia do Posto, foi até lá para apaziguar os ânimos. Ainda dessa vez os dois curadores voltaram a se entender, antes mesmo da intervenção de Gil.

Este caso põe um outro problema. Mostra como uma disputa durável entre duas pessoas pode fazer parte de fatores que separam duas facções e mais tarde, servir para caracterizar novas facções. Se no passado a rivalidade entre Aleixo e Basílio fazia parte das hostilidades entre o pessoal de Esteves e o pessoal de Marcão, agora Aleixo se punha ao lado de José Nogueira e Basílio, de Pedro Penõ.

Da disputa entre Aleixo e Basílio havia uma pessoa que tinha dificuldade em se definir: era Davi. Este é irmão de José Pinto, pai de Basílio, e nos confessou ser um dos pais biológicos de Aleixo. Não obstante, Davi parecia acreditar que Aleixo fazia mesmo feitiço. Acreditava que Aleixo havia matado o próprio irmão da mãe, João Silvano, o próprio sogro, Antônio Pereira, e um menino, filho de Aloísio. Por outro lado, acreditava que Basílio tinha mesmo posto feitiço na filha de Secundo, pois, desde que Aleixo o tinha tirado, a menina ficara boa.

Assim, este caso, além de mostrar como um conflito entre duas pessoas pode continuar a contribuir para opor facções, apesar da evolução destas, mostra também que os próprios parentes do curador podem vir a ser convencidos de que ele faz realmente feitiço.

Caso M: O falecimento de Tópó

Tópó era morador na aldeia de Serrinha, sendo filho do curador Cará (vide Caso G). Tendo viajado até Goiânia, na volta para a aldeia, veio a falecer em Bom Jesus, localidade próxima de Pedro Afonso. Penõ certa vez nos disse que a morte de Tópó se devia a feitiço de índios Canelas que o falecido teria encontrado na viagem. Posteriormente falou que Tópó já havia saído da aldeia tuberculoso e tinha ido procurar em São Paulo o mesmo tratamento que curara o índio Rondon, mas voltara de Goiânia.

Uma noite houve uma reunião diante da casa em que morava Rondon, na aldeia do Posto. Rondon é casado com uma filha de Cará, irmã, portanto, de Tópó. É que correra o boato de que Rondon estava providenciando para que alguém fizesse feitiço contra aqueles que tinham matado Tópó. Quando Tópó morreu, estavam junto com ele José Pinto e Jaime. José Pinto tinha sido um dos promotores da morte de Cará e, por isso, não devia de ter bons sentimentos para com Tópó. Jaime é genro de José Pinto, sendo também filho da irmã de Esteves. Rondon, na reunião, negou ter qualquer intenção de matar alguém de feitiço e Lourenço negou ter espalhado esse boato.

Em março de 1967, quando deixávamos a aldeia do Posto, encontramos em Itacajá, dirigindo-se para Pedro Afonso, o índio João Canuto com sua mulher e o filho caçula. Iam verificar no local como tinha ocorrido a morte de Tópó. A esposa de João Canuto também era filha de Cará e irmã de Tópó. João Canuto disse que Tópó não gostava de José Pinto e poderia ter sido enforcado por este. Um motivo a mais para desconfiar era o fato de o pessoal que estava com Tópó nada ter entregado dos presentes que ele teria ganho na viagem.

O falecimento de Tópó veio, pois, fazer com que o problema da morte de Cará voltasse à discussão, embora oito anos já se tivessem passado.

Caso N: O chefe João Noleto retira-se da aldeia

O presente caso diz respeito à aldeia de Serrinha. Não sabemos exatamente como João Noleto, Xerente (sobre a vinda de João Noleto para junto dos Krahó, vide Caso B), chegou a ser chefe de aldeia. Segundo o índio Kakró, os habitantes da aldeia costumavam ir tirar alguma coisa na roça de João Noleto. A esposa deste, Ram, disse então aos habitantes que ficaria ainda mais generosa se eles dessem o titulo de wïtï a seu filho, o que realmente fizeram. Isso mostra que João Noleto tinha aberto o caminho para a chefia através de sua generosidade. Mas acrescenta Kakró que, tendo João Noleto viajado para o Rio de Janeiro, lá não conversou com Getúlio (Vargas), mas apenas com algum empregado dele, que lhe arranjou passagem de volta para a aldeia. Aí chegando, enganou aos índios dizendo-lhes ter sido promovido a "capitão" e mostrou-lhes como o prova o documento que lhe concedia a passagem. Ainda acrescentou Kakró que o chefe Secundo passou o lugar a João Noleto porque estava velho. Com a instalação do S.P.I. na área, seus funcionários o confirmaram na chefia. Em resumo, Kakró como que oferece três versões da promoção de João Noleto à chefia da aldeia. Mas, segundo informações de um antigo funcionário do S.P.I., se depreende que houve um tempo em que João Noleto e Secundo chegaram a dirigir a aldeia ao mesmo tempo, Secundo em decadência e João Noleto cada vez mais forte. Mas nada podemos dizer sobre os grupos que apoiavam a um e a outro. Uma prova de que os dois chefes estavam disputando o poder está no fato do referido funcionário manipulá-los em função dessa disputa: em certa ocasião, como não conseguisse a colaboração de João Noleto para tomar uma providência para o bem da saúde da aldeia, passou a prestigiar o antigo chefe Secundo, obtendo assim o que desejava de João Noleto.

Parece que a autoridade de João Noleto de vez em quando foi contestada. Assim, por exemplo, em 1959 ou 1960, o chefe Marcão, numa entrevista dada a Harald Schultz, citava Serafim como chefe da aldeia do Galheiro (Serrinha) (Schultz, 1960, p. 189).

No início de 1963 vários índios da aldeia de Serrinha se manifestavam de modo desfavorável a João Noleto. Este havia se casado com uma moça nova e isso era motivo de zombaria entre os Krahó, devido à grande diferença de idade entre os dois. A moça acabou separando-se do chefe, que, então, viajou para Brasília. Ao voltar, quis novamente unir-se a ela, mas sendo repelido, entrou em choque com os parentes da mesma. João Noleto exigiu de volta os presentes que tina dado aos parentes da moça, uma atitude completamente contrária às regras Krahó, uma vez que tais presentes não são nunca devolvidos, quaisquer que sejam as circunstâncias da dissolução do casamento. João Noleto também ameaçou que, se não pudesse continuar casado com a filha de Zé Kapran, também não permitiria que Guilherme, filho da filha da irmã da mãe de Zé Kapran continuasse casado com sua filha. Corria também um boato segundo o qual, numa discussão, João Canuto, filho da irmã da mãe de Zé Kapran, atirou contra João Noleto e o tiro teria matado o chefe se Serafim não tivesse suspendido o cano da espingarda na hora. Serafim é irmão do pai de João Canuto. Mais tarde viemos a saber que tal boato era pura bravata de João Canuto. De qualquer modo, indicava uma certa tensão entre João Noleto e os parentes de sua mulher.

João Noleto enfrentava também a hostilidade de Juraci, filho de seu irmão, José Wakedi. O gado de João Noleto (que naquele tempo deveria se reduzir a duas cabeças) estragou a roça de Juraci. Este lhe pediu uma indenização que fosse paga com gado mesmo. Como João Noleto se negasse a atendê-lo, Juraci então exigiu o gado de seu irmão Eusébio. João Noleto respondeu que o gado fora de seu irmão Wakedi e que agora era dele, nada devendo a Juraci. Por isso Juraci estava zangado com João Noleto e pensava em se transferir para a aldeia de Ambrosinho, pois não podia viver num lugar em que estava brigado com o próprio chefe; acrescentou que, se a sua mulher não quisesse acompanhá-lo, iria assim mesmo.

Assim, no começo de 1963, segundo informação de Juraci, estavam contra João Noleto: o próprio Juraci, que vivia na mesma casa que João Noleto, pois era casado com uma irmã da esposa deste; João Canuto; Porfírio, pai de João Canuto; Serafim, irmão do pai de João Canuto; Iromtép (Agostinho), meio-irmão matrilateral do pai de João Canuto; Guilherme e Aleixo, filhos da irmã de João Canuto; Mroyanõ (Marco), pai de Guilherme e de Aleixo e filho da irmã de João Noleto. Deve-se acrescentar que Guilherme é casado com uma filha de João Noleto; que é ao mesmo tempo filha da irmã de Porfírio. No entanto, Kakró, irmão de João Canuto não se punha contra João Noleto. Estas relações, colocadas num esquema, ficam da maneira seguinte:

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Apesar de Juraci dizer que Kakró não se opunha a João Noleto, algum tempo depois ele foi reconhecido pelo encarregado do Posto do S.P.I. como chefe da aldeia. Pedro Penõ chefe da aldeia do Posto, meio-irmão patrilateral do pai de Kakró, mostrou-se satisfeito com isso, alegando que Kakró era Krahó e não Xerente como João Noleto. Entretanto sabemos que o próprio Penõ é filho de Xerente. Kakró, entretanto, não se manteve muito tempo no poder, tendo João Noleto retomado seu lugar.

Nos começos de 1967 soubemos que a aldeia de Serrinha se tinha cindido. João Noleto saíra da aldeia com sua mulher, a mesma por causa de quem entrara em choque com seus afins. Junto com ele estava o sogro e também Juraci. Ainda acompanhou João Noleto o índio Kaho (Davi), meio-irmão patrilateral de João Canuto e Kakró. Iromtép, por sua vez, nem ficou na aldeia e nem foi com João Canuto, mas foi morar com o índio Vicente, irmão de Zé Kapran perto da fazenda do Xupé de propriedade do S.P.I. Kakró ficou com a chefia da aldeia de Serrinha .

É interessante notar que, contrariamente às regras de parentesco, o sogro seguiu João Noleto e não este àquele.

3 — A facção

O exame dos quatorze casos descritos, acrescidos de outros dados complementares, nos permitem distinguir três tipos de unidades políticas entre os Krahó: a facção, a aldeia e a tribo.

Vejamos em primeiro lugar a facção. É a menor das unidades políticas e também a mais instável. Intimamente ligada ao sistema de parentesco, não pode ser confundida, entretanto, com nenhum grupo de parentesco. Não é uma família elementar, não é um grupo doméstico, não é um segmento residencial. Não se confunde nem mesmo com o kindred. O kindred, e isto é uma característica que o define, não constitui um grupo distinto dos demais da mesma espécie, pois se trata do conjunto dos parentes consangüíneos de um indivíduo. Por isso, devem existir tantos kindreds quantos são os indivíduos Krahó. Mas uma facção é um grupo distinto dos demais. Ela não pode se confundir nem mesmo com o kindred de seu líder ou os kindreds de seus líderes. De fato, vimos que aqueles que seguiram Marcão para criar outra aldeia, ou que seguiram a Chiquinho com o mesmo objetivo, não eram apenas parentes consangüíneos desses líderes, mas também afins; alguns havia que não se contavam nem entre os parentes consangüíneos e nem entre os afins. Além disso, não foram todos os consangüíneos e nem foram todos os afins que os seguiram. Parentes consangüíneos de Marcão, como Pedro Penõ, foram envolvidos pela facção oposta. As relações de parentesco foram tomadas em consideração, mas elas não decidiram automàticamente o partido que cada indivíduo deveria tomar. As relações dos membros da facção com o líder podem mesmo estar em contradição com as relações de parentesco. Assim, Amaro, irmão da esposa de Marcão, seguiu a este, quando, segundo as regras do parentesco, são os parentes da esposa que permitem ou não se o marido pode levá-la para alguma outra parte.

Apesar de não se confundir com um grupo de parentesco, apesar de não fazer parte do sistema de parentesco, é sobre este que a facção se funda. Espera-se que um homem tome o partido de seu irmão, de seu pai ou de seu tio materno; mas pode acontecer que a disputa entre dois parentes seja a origem da formação de facções. Foi o que aconteceu na nova aldeia criada por Marcão, quando este se desentendeu com seu irmão Davi. Um tratamento estatístico talvez pudesse demonstrar que o núcleo de uma facção é constituído por um grupo de parentes consangüíneos reforçado por alguns casamentos entre eles, como podemos ver nos vários esquemas acima apresentados. Mas não temos condições para efetuar esta análise. Podemos apenas afirmar que os dados parecem indicar isso. Pedro Penõ, por exemplo, ficou alegre quando se combinou o casamento de Kakró, filho de sua irmã com a filha de José Aurélio, por serem ambos seus parentes. Disse-nos Penõ que Patrício arranjou o casamento de Kasiat com Pina por serem ambos seus parentes. Uma das justificativas que dão os Krahó para casamento entre parentes próximos é a de que tal casamento é desejável, pois, em caso de briga, pode-se contar com os parentes da esposa. Convém notar também que nenhum casamento é desfeito por estarem os cônjuges em duas facções opostas. Um dos cônjuges geralmente escolhe seguir o outro ou trazê-lo para sua facção. Assim, Pedro Penõ resolveu ficar com os parentes de sua mulher ao invés de seguir seu tio materno Marcão. Não vimos nenhum casamento desfeito pelo motivo explícito dos cônjuges pertencerem a facções diversas. Já se mostrou, aliás, que o matrimônio se torna bastante sólido depois do nascimento de filhos.

Não tendo seu núcleo assentado em nenhum grupo de descendência unilinear, baseadas talvez mais numa concentração estatística, de ligações de afinidade, as facções Krahó evoluem ràpidamente. Uma série de reclamações, de acusações de feitiçaria, podem manter dois grupos em oposição durante algum tempo, mas é possível o surgimento de alguma questão dentro de um dêles que produza uma nova divisão em facções. A questão provocada pelo afastamento de José Nogueira, por exemplo, mostra como a antiga divisão da aldeia do Posto entre as duas facções principais, uma com núcleo nos parentes de Marcão e outra com núcleo nos parentes de Esteves, evoluiu para uma nova divisão, que unia os parentes de Esteves e os remanescentes dos parentes de Marcão contra a facção com núcleo nos parentes de José Nogueira.

Seriam os litígios que determinariam a formação de determinadas facções ou, ao contrário, a constelação de facções que favoreceria o surgimento de determinados litígios? É muito difícil de responder a esta questão com base nos dados disponíveis. Parece que ambas as alternativas ocorrem. A morte de Cará, por exemplo, pode ser correlacionada com a mesma divisão em facções que havia provocado, anteriormente, o afastamento do chefe Marcão e a criação de uma nova aldeia; teria sido condicionada pela divisão em facções então vigente. Mas, por outro lado, ela envolveu pessoas residentes em outras aldeias que nada tinham a ver com essas facções: o filho de Cará, João Canuto (casado com uma filha de Cará), Serafim (casado com uma parenta de Cará), embora na aldeia de Serrinha, passaram a se opor a Marcão. Assim, esta morte, ocorrida na aldeia do Posto, passou a afetar as relações entre as aldeias de Pedra Branca e de Serrinha. Assim, certas acusações de feitiçaria, certas disputas decorrentes de uma divisão em facções podem ir preparando, pouco a pouco, uma nova divisão. Se é correta a nossa interpretação de mortes como as dos curadores Alexandre e Cará, segundo a qual as ações mais contundentes de uma facção sobre a outra ocorrem justamente sobre aqueles indivíduos que estão colocados na periferia da facção rival, isso faz com que tais pessoas assim visadas possam se tornar o centro de uma nova facção.

Enfim, as facções Krahó parecem possuir as cinco características desse tipo de grupo político tais como foram explicitadas por Nicholas (Nicholas, 1965, pp. 27-29). A primeira dessas características é que as facções constituem grupos conflituais. Elas emergem durante o conflito social e só aí permitem ao observador reconhecer seus membros. Por serem grupos de conflito, elas têm de ser no mínimo duas. Entre os Krahó, não foi em todos casos descritos que ficou marcada a presença de facções; ela se torna mais nítida quando o conflito atinge o seu ápice, que é a cisão da aldeia: aí é fácil identificar seus membros.

Sua segunda característica está no fato de constituírem grupos políticos. Com isso coincidem as facções Krahó, segundo as considerações feitas no início do capítulo.

Em terceiro lugar, as facções não são grupos corporados. Aqui Nicholas insiste sobretudo no fato de constituírem grupos de pequena duração, evoluindo ràpidamente para a formação de novas facções.

Em quarto lugar, os membros de uma facção são recrutados por um líder. Isso também parece claro nos casos Krahó embora em alguns, como na aldeia do Posto, uma das facções parecia ter mais de um líder: aquela facção a que pertencia Penõ parecia ter como líderes pelo menos dois homens: Esteves e seu irmão João Silvano.

Por fim, em quinto lugar, os membros de uma facção são recrutados segundo diversos princípios. Entre os Krahó, como vimos, as facções se apóiam no parentesco, mas manipulando-lhe as regras: isto faz com que o simples conhecimento do sistema de parentesco Krahó não seja suficiente para prever o comportamento político dos indivíduos.

4 — A aldeia

A aldeia constitui uma unidade política mais estável do que a facção. Além disso sua existência é marcada por sinais mais visíveis para o observador. Ela existe em uma determinada posição no espaço, possui um ou mais chefes; tem dois "prefeitos", dispõe de um padré; mantém relações formais com as outras aldeias; é o grupo que promove os ritos.

É possível que cada aldeia Krahó existente tenha surgido da cisão de uma aldeia anterior. Tais cisões teriam sido provocadas por rivalidade entre facções. Elas fariam os Krahó se espalharem em grupos cada vez menos populosos se não houvesse também uma tendência oposta: a das aldeias menores serem reabsorvidas pelas maiores, geralmente tornando-se a se reunirem aldeias de uma origem comum. Assim, a aldeia de Bernardino foi reabsorvida pela de Secundo; nota-se uma tendência da aldeia de Marcão a ser reabsorvida pela de Penõ; existem indícios de que Luís Balbino tenha cindido a aldeia chefiada por Chiquinho e Bertoldo e que estes foram se reunir a ele. Os motivos que levam os habitantes da aldeia menor a procurar a maior decorrem geralmente do pequeno tamanho da aldeia em que vivem: os habitantes são poucos para realizarem rituais, são poucos para correr com toras e a aldeia fica pouco movimentada. Há informantes indígenas que fazem um paralelo dessa situação com a oposição entre cidade grande e cidade pequena. Além disso, sendo a aldeia pequena abrigo recente de uma única facção, dentro da qual os laços de parentesco são bastante próximos, os jovens dificilmente encontram cônjuges dentro dela.

Parece, portanto, que o surgimento e a manutenção das aldeias Krahó estão sujeitos a um certo padrão: uma questão grave ou o acúmulo de pequenas rixas entre duas facções de uma aldeia provoca o afastamento de uma delas, que cria uma nova aldeia; se a aldeia assim formada não atinge um tamanho ótimo para o seu funcionamento, tende a ser reabsorvida pela aldeia original. Este seria o padrão tradicional. Atualmente, com a presença dos sertanejos nas circunvizinhanças, a pequena aldeia pode optar pelo estilo de vida dos civilizados. Foi o que aconteceu com a parte da aldeia de Bernardino que não foi reabsorvida pela aldeia de Secundo. É possível imaginar que no passado algumas dessas aldeias muito pequenas tenham conseguido subsistir por receberem também habitantes, descontentes ou movidos pela regra de uxorilocalidade, de outras aldeias que não a original.

Quanto aos diversos tipos de líderes existentes na aldeia, deixaremos o exame deste problema para o capítulo seguinte. O que se deve deixar claro aqui é que a aldeia reage como uma unidade diante das demais. Vimos, por exemplo, como um chefe pode se desentender com outro devido à desconfiança de feitiçaria. Todos temem, ao visitar uma outra aldeia, serem enfeitiçados pelos curandeiros locais. Assim, a esposa de Juraci, da aldeia de Serrinha, não queria acompanhar o marido, que desejava mudar-se para a aldeia de Boa União, pois numa outra ocasião em que o marido a levara para lá, haviam posto "coisa" nela. Certa vez estávamos conversando com o índio Messias, quando entrou na casa um beija-flor, que voou alguns segundos dentro dela e saiu. Messias desconfiou logo que poderia ser um curador de Canto Grande (isto é, da aldeia de Boa União ou de Abóbora), que teria vindo sob a forma de pássaro à aldeia do Posto, para ver o que aí estava acontecendo. No entanto, nunca ouvimos nenhuma acusação de feitiçaria de uma aldeia contra outra em que o curador tivesse visitado a aldeia acusadora desta forma. Geralmente a suposta vitima tem o seu corpo afetado pelo xamã, quando visita a aldeia deste.

As relações entre aldeias também se caracterizam por convites feitos de uma a outra para a participação em rituais. Quando o ritual é muito importante, como um rito de iniciação, a aldeia não convidada se sente ofendida. A realização do convite é bastante formal. Poucos dias antes da realização do ritual (se é um ritual curto), ou do encerramento do ritual (se é de longa duração), a aldeia onde o mesmo se realiza envia um portador para cada qual daquelas que deseja convidar. Este mensageiro não somente deve fazer o convite em nome de sua aldeia, mas também voltar junto com os convidados. Tivemos a oportunidade de assistir à chegada dos convidados da aldeia de Boa União à aldeia do Posto, no final de julho de 1967. Esteves havia sido o mensageiro enviado à aldeia de Boa União para convidar seus moradores a participarem do ritual do Përti. Por volta do meio-dia, no dia 28, começou-se a ouvir, na aldeia do Posto, ruídos que indicavam a aproximação dos convidados. Imediatamente José Aurélio foi para o pátio, com sua filha menor ao colo, chamando os habitantes da aldeia para se reunirem no pátio. Pedro Penõ, o chefe, não estava, pois tinha conduzido as mulheres para apanhar limas na propriedade de um morador civilizado próximo. Pouco a pouco os homens foram chegando ao pátio. Dois rapazes apanharam uma buzina (pëdwö) na casa de Pedro Noleto; um outro tinha mais uma buzina. Havia também um rapaz com um apito (pïriakhë); e começaram a tocar. Aqueles que esperavam os visitantes estavam voltados para o ponto onde iriam surgir os convidados. Como estes estivessem demorando, os homens da aldeia do Posto procuraram a sombra de uns pequizeiros, localizados próximo ao pátio, e que haviam sido poupados quando da construção da aldeia. Diziam então que os visitantes demoravam a aparecer porque estavam se pintando. Quando perceberam que voltavam a se aproximar, deixaram a sombra dos arbustos e voltaram ao pátio. Instrumentos de sopro soavam de um e de outro lado. Finalmente os visitantes apareceram. À frente vinha uma fila de homens, um atrás do outro, encabeçados por Esteves, o mensageiro da aldeia do Posto, imediatamente seguido por Ambrosinho, chefe da aldeia de Boa União. Em seguida os demais homens. Vinham todos pintados, com exceção dos dois primeiros e talvez do terceiro. Este havia improvisado, para substituir os batoques auriculares de madeira, duas rodas de folha de palmeira. Os homens da aldeia do Posto se colocaram de tal modo que ficaram precedidos de uma fila, onde predominavam os mais velhos, colocados ombro a ombro. Os homens de Boa União se aproximaram e cumprimentaram os da fila. As mulheres de Boa União, que seguiam numa segunda coluna, tendo à frente a esposa de Ambrosinho, não pararam para cumprimentar ninguém, atravessando o pátio e se dirigindo para a casa de Pedro Penõ ou de Davi, não pudemos registrar. José Aurélio dirigia a recepção e conversou com Ambrosinho. Após isso, Ambrosinho ultrapassou a fila e cumprimentou os demais homens e rapazes que estavam atrás, chamando-os com termos de parentesco. Então os visitantes se dirigiram para a casa de Davi. José Aurélio nos informou que eles iam para a casa de Davi porque era o mais rico e tinha gado. Na verdade, o segmento residencial a que pertence a casa da mulher de Ambrosinho, corresponde, na aldeia do Posto, ao segmento residencial da esposa de Davi; e foi nessa casa mesmo que vimos Txïktxïk, filho de Ambrosinho e chefe honorário da aldeia do Posto, hospedado quando visitou esta aldeia.

Existe, pois, todo um ritual de recepção para os visitantes de aldeias. Por ocasião do encerramento do ritual de Pembkahëk, realizado na aldeia do Posto no final de 1962, vimos a recepção dos convidados da aldeia de Pedra Branca, realizado de maneira menos formal. Também foi ouvido um instrumento sonoro do pessoal que se aproximava. Esteves começou a gritar na praça da aldeia, reunindo os outros homens da aldeia. O chefe Marcão, da aldeia visitante, não veio, entretanto, até à praça, arranchando-se logo na casa de Pedro Noleto, que corresponde ao mesmo segmento residencial que o de sua esposa. Mas os demais visitantes vieram cumprimentar os recepcionistas. Lourenço, da aldeia do Posto, no pátio, protegia-se do sol com um feixe de folhas. Pedro Noleto, que tinha sido o mensageiro da aldeia do Posto, não veio conduzindo os convidados, tendo retornado alguns dias antes. Mas parece que a volta dos mensageiros juntamente com os convidados faz parte das formalidades, uma vez que o informante Messias comentou que não sabia como os convidados iriam à aldeia do Posto, quando o mensageiro já havia retornado.

Não raro, nos rituais, os moradores de outras aldeias presentes recebem dádivas. No encerramento do ritual de Pembkahëk na aldeia do Posto, em 1962, dos alimentos colocados no centro da praça junto do padré, este retirou um pouco do mesmo, duas pencas de banana nos foram oferecidas, parece que os líderes Esteves e Lourenço também tiraram alguma coisa, e todo o restante foi repartido entre os visitantes da aldeia de Pedra Branca, sem que os habitantes da aldeia do Posto nele tocassem. Na já descrita festa da manga, as mulheres tiveram seus enfeites de cabeça, adicionados com um fio de miçangas tomados por um dos "prefeitos" da aldeia, que distribuiu as miçangas, no dia seguinte, aos visitantes da aldeia.

Os membros de uma aldeia procuram escapar das acusações de furto de gado, fazendo recair as suspeitas sobre uma outra aldeia. Assim, Kakró, da aldeia de Serrinha, queixou-se de que os habitantes da aldeia de Pedra Branca matavam gado da fazenda do S.P.I. e depois tomavam o caminho de Serrinha, andando durante algum tempo, desviando-se em seguida para sua própria aldeia, fazendo com que o vaqueiro, observando o rastro, pensasse que o gado teria sido furtado pela aldeia de Serrinha. Na aldeia de Boa União ouvimos queixa de que o pessoal de Pedra Branca fazia o mesmo, para que a culpa recaísse sobre seus habitantes.

Parece também que as mulheres que visitam uma aldeia estranha correm mais risco de serem violentadas do que na sua própria aldeia, obrigando-as os rapazes à força que tenham relações sexuais com vários deles.

O "capitão" e os "prefeitos" da aldeia podem ser solicitados pelos habitantes da aldeia visitada ou visitante a lhes dar pequenos presentes como pedaços de fumo.

As rivalidades, as rixas, entre aldeias Krahó, ao que sabemos, nunca chegaram ao estado de luta armada. Penõ mais de uma vez falou que Ambrosinho e Marcão quiseram atacar sua aldeia. Uma vez disse que o motivo era o afastamento de Marcão da chefia; outra vez, a morte de João Grosso. Penõ também lembra que os habitantes de Pedra Branca treinaram pontaria quando foram discutir sobre a morte de Rodrigues (Caso B) com os habitantes da aldeia de Pedra Furada. Mas nenhuma dessas ameaças nunca se concretizou.

5 — A tribo

Se não temos notícia de nenhuma luta armada entre aldeias Krahó, sabemos, entretanto, de várias entre os Krahó e outras tribos. Uma delas foi o assalto dos Krahó a uma aldeia Apinayé, como foi narrado no Caso A. No segundo capítulo deste trabalho também se aludiu a ataques dos Krahó, no século passado, a outras tribos do sul do Maranhão. E mais de um informante fez alusão a antigas lutas entre os Krahó e o grupo que eles chamam de Gaviões, muito provàvelmente os Pïkobye. Assim, os Krahó olham com desconfiança os membros de outras tribos. Até hoje guardam certo rancor dos chamados Gaviões. Pelo menos um informante afirmou que seria morto o Gavião que por acaso visitasse os Krahó. No entanto, o pai ou o pai do pai de Jacinto, aquele que tentou tomar a chefia do chefe Ambrosinho, era Gavião, e não consta que tenha sofrido nenhuma restrição por parte dos Krahó. No Caso N, fez-se referência ao fato de Pedro Penõ desconfiar dos Canelas como responsáveis pela morte de Tópó. Isso porque os Canelas desconfiariam que um deles, que vivia na aldeia do Posto, teria sido abatido pelos Krahó. E são esses Canelas, os Apaniekra, da aldeia de Porquinhos, os Timbira que mantêm relações mais amistosas com os Krahó. Assim, reina sempre a desconfiança entre tribos diferentes.

A tribo Krahó não dispõe de nenhum chefe, de nenhum conselho, que tenha jurisdição sobre toda ela. O que a mantém unida deve ser, entre outros fatores, a contigüidade espacial, os chefes honorários de uma aldeia na outra, os convites formais para participação em cerimoniais, a presença de indivíduos parentes entre si nas várias aldeias. Fatores externos a seu sistema social vieram dar mais coesão à tribo: a demarcação de uma reserva tribal, a presença de um encarregado de Posto com jurisdição sobre toda a tribo.

Um informante apontou o uso dos batoques auriculares como um símbolo destinado a distinguir os Krahó de outras tribos. Além disso, distinguem-se de outros grupos atribuindo a si e aos outros determinados traços psicológicos. Tal distinção é lembrada sobretudo quando se contrapõem aos Xerente. A estes são atribuídos tanto traços negativos como positivos. Assim, os Xerente são considerados brigões, sobretudo quando tomam cachaça; em compensação os Krahó os consideram mais altivos e valentes nas suas relações com os civilizados. Também se distinguem dos Xerente por certos costumes, como a poliginia destes contraposta à monogamia Krahó.

Já se disse da presença de indivíduos de outras tribos entre os Krahó: Xerente, Canelas (Apaniekrá e Kenkateye), Apinayé, Gaviões. Os descendentes desses indivíduos, nascidos nas aldeias Krahó, são considerados Krahó, como mostra o encerramento da primeira modalidade do ritual de Pembkahëk: os estrangeiros e os amigos formais dos iniciandos defendem a casa onde estão reunidos contra o ataque das metades Krókrók e Pentxï. Ora, no ritual a que assistimos, os estrangeiros que defendiam a casa eram todos nascidos fora das aldeias Krahó. Aqueles indivíduos nascidos nas aldeias Krahó, embora filhos de pai ou mãe pertencente a outras tribos, não participaram da defesa da casa. Quando perguntamos aos informantes Krahó a que tribo pertence um indivíduo descendente de pais de tribos diversas, as respostas são as mais contraditórias. Ora se diz que pertence à tribo do pai; ora que à da mãe; ou se responde que pertence a ambas. Por isso, o encerramento do ritual do Pembkahëk, devido ao seu formalismo, oferece um critério mais seguro: Krahó é aquele que nasce numa aldeia Krahó. Convém notar, entretanto, que a ascendência extra-tribal de um indivíduo é lembrada sobretudo quando ocupa a chefia ambicionada por outros. Assim, Marcão, despeitado por ter sido substituído pelo filho de sua meia-irmã, Pedro Penõ, lembrou a ascendência extra-tribal deste último: tinha pai Xerente. Também Marcão lembrou a ascendência Gavião de Jacinto, para defender o retorno de Ambrosinho à chefia.

Um outro problema deve ser colocado aqui: o da divisão da tribo Krahó. Nimuendajú afirma que em 1930 os Krahó estavam divididos em dois sub-grupos: os Mãkrare e os Kenpokateye" (Nimuendajú, 1946, p. 26). Em nossa pesquisa pareceu-nos haver consenso entre os informantes de que os habitantes da aldeia de Serrinha faziam parte do sub-grupo Mãkrare, que alguns chamavam também de Mãkamekra. Entretanto, o mesmo não acontecia com as demais aldeias. Além do sub-grupo Kenpokateye, também chamado Kenpokrare, reconhecia-se a existência de outros. Assim, na aldeia de Boa União, insistia-se na existência dos sub-grupos Kr?katire e Krïtkateye, ora considerados separadamente, ora confundidos. A estes sub-grupos é que os habitantes da aldeia de Boa União pertenceriam. Houve também referências a grupos tais como Pãhãmekra, Krãhamekra. Dois informantes se referiram às aldeias de Boa União e de Abóbora como Kodnikateye.

Deve-se notar que nos foi chamada a atenção para certas diferenças de detalhe entre as maneiras de realizar o ritual do Khetwaye na aldeia de Serrinha (Mãkrare) e as demais. Ambas as modalidades serão descritas no capítulo XI. Um informante ainda acrescentou que havia diferença entre a língua falada na aldeia de Serrinha e as demais. Interrogado sobre quais seriam estas diferenças, só soube indicar duas: os habitantes de Serrinha diriam wa (anzol) ao invés de ayó; diriam também airom’hoko (pau-de-leite) ao invés de arom’hoko. Portanto, tais diferenças não são suficientes para considerar os Mãkrare como distintos dos demais Krahó.

Há mais um problema com relação aos Mãkrare. Aqueles que tiveram contacto com os Krahó no século passado não raro os chamaram de "Macamecrans", palavra bastante aproxima da de Mãkamekra, uma variação de Mãkrare. Constituiriam, por acaso, os Mãkrare os verdadeiros Krahó, aos quais teriam vindo se agregar restos de outros grupos? Não possuímos dados para resolver esta questão. Convém notar, por outro lado, que, embora se insista que os moradores de Boa União são Krikatire, não há notícia de os Krikati do Maranhão tenham feito qualquer contribuição de importância à população Krahó.

De qualquer modo, quaisquer que tenham sido as origens das subdivisões da tribo, os Krahó se consideram como uma unidade, estando mesmo pouco informados a respeito das mesmas.

6 — Conclusão

Foi possível neste capítulo identificar três tipos de grupos políticos entre os Krahó: a facção, a aldeia e a tribo. Aqui nos ocupamos sobretudo das relações entre grupos do mesmo tipo. Pouco dissemos da organização interna dos mesmos. Na verdade, não existe uma organização interna formalizada da facção; a organização interna da tribo se resume nas relações entre aldeias e numa autoridade imposta de fora: o encarregado do S.P.I. ou da atual F.N.I. Somente a aldeia possui uma organização mais elaborada, reconhecendo uma série de líderes formais, que serão o objeto do capítulo seguinte.

Referências bibliográficas

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NIMUENDAJÚ, Curt. 1946. The Eastern Timbira, University of California Publications in American Archaeology and Ethnology, Volume 41, University of California Press, Berkeley and Los Angeles.

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Nota

Nota — Curt Nimuendajú faz referência ao mesmo conflito na p. 20 de seu livro The Šerente (Los Angeles: The Southwest Museum, 1942). [Voltar ao texto].
Da minha tese Índice da
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