Sobre o livro Nature and Society in Central Brazil: the Suya lndians of Mato Grosso, de Anthony Seeger. Cambridge (EUA) e Londres: Harvard University Press, 1981.

Resenha publicada com o título "A propósito dos Suyá" no Anuário Antropológico/81, pp.291-295, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Fortaleza: Edições UFC, 1983.

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A mais recente monografia publicada sobre uma sociedade Jê, Nature and Society in Central Brazil: the Suya lndians of Mato Grosso, de Anthony Seeger, lançada em Cambridge (EUA) e Londres, pela Harvard University Press, em 1981, vem aumentar o número sempre crescente de textos sobre os grupos indígenas falantes de línguas da mais extensa família do tronco Macro-Jê. Portador de elementos de grande interesse para aqueles que fazem, ou acompanham de perto, as pesquisas sobre as sociedades indígenas do Planalto Brasileiro, o livro não chega a surpreender com novidades. Isso não se deve tanto a seu caráter de edição reelaborada da tese que Seeger apresentou à Universidade de Chicago, em 1974, para alcançar o doutorado, pois a ela só tiveram acesso umas poucas pessoas, mas ao cuidado que teve o Autor de divulgar seus principais resultados de pesquisa em comunicações e artigos, boa parte deles publicados em português, como é o caso daqueles reunidos no volume Os Índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras (Rio de Janeiro) Campus, 1980, cujo Capítulo I é, com poucas modificações, a "Introduction" de Nature and Society in Central Brazil) e ainda de "Por que os índios Suyá cantam para suas irmãs" (em Arte e Sociedade: ensaios de Sociologia da Arte, org. por Gilberto Velho, Rio de Janeiro, Zahar, 1977: 39-63) e "Identidade étnica como processo: os índios Suyá e as sociedades do Alto Xingu" (Anuário Antropológico/78, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980: 156-175) .

Não vamos aqui fazer um resumo de Nature and Society in Central Brazil, uma vez que é mais fácil ao leitor dirigir-se diretamente ao livro, redigido de maneira sucinta e em linguagem clara, tal como os textos que o Autor publicou em português, nos quais, mais do que isso, chega a ser didático. Além do mais, não seria possível, a partir de uma primeira leitura, atribuir o devido peso a cada contribuição de Seeger, pois se trata de um daqueles livros a que se retoma sempre, e a cada vez para encontrar algo desapercebido anteriormente.

Para quem estudou uma outra sociedade Jê, como nós o fizemos com os Timbíra Krahô, a leitura do livro de Seeger estimula, a cada momento, comparações. Assim, após ler que as casas, ou grupos de casas, na aldeia Suyá têm nomes (: 73-74), e que as unidades assim nominadas têm características que as tornam muito semelhantes ao que chamamos de "segmentos residenciais" entre os Krahô (exogamia, uma posição definida na circunferência da aldeia etc.), ficamos a nos perguntar se esses nomes não existem mesmo entre os Krahô ou se eles nos escaparam.

A mesma pergunta se faz mais insistente, quando tomamos contato com a classificação de animais, plantas, categorias de idade e sexo das pessoas, baseada no odor, um tema que permeia todo o livro. Usariam os Krahô o mesmo critério e não o percebemos?

E todo o complexo de idéias associado ao falar, ao ouvir, sua relação com os batoques auriculares e os discos labiais, em contraposição com a visão, associada ao anti-social (cap. 4)? É certo que no meio de nossos dados tomados entre os Krahô encontramos alguns detalhes sobre a relação entre o falar e a liderança, sobre a visão poderosa do xamã ou sobre certas associações entre plantas e animais através do odor; mas nada disso exploramos sistematicamente.

Por outro lado, certos aspectos da cultura Suyá aparecem claramente na dos Krahô, mas numa constelação diferente. Assim, o comportamento de bufão que mantêm os velhos Suyá (: 115-119 e 169-172) corresponde ao dos palhaços rituais Krahô, cujo privilégio de fazer coisas engraçadas ou erradas, sobretudo durante os ritos, está ligado, não à idade, mas a seus nomes pessoais; ou, como lembra o próprio Seeger, a propósito dos Timbíra Ramkhokhamekrá, a suas aptidões pessoais.

Se, por sua vez, Seeger vê semelhanças entre as puyi dos Suyá Orientais ou wuyi dos Suyá Ocidentais (Tapayúna, Beiços-de-Pau) com as wutú dos Timbíra (: 176), é digno de nota que as mulheres que desempenham o papel de "esposas do veado campeiro", entre os Suyá (: 111), como esposas da coletividade, invertem o papel de wutú Timbíra, que, pelo menos entre os Krahô, parece ser um parente, ou uma parenta, cognático de toda a aldeia, como procuramos mostrar em Ritos de uma tribo Timbira (São Paulo, Ática, 1918: 306).

Também os papéis de líder de aldeia, especialista ritual e bruxo dos Suyá (cap. 9) aparecem com semelhanças e diferenças entre os Krahô. Os líderes de aldeia passaram por modificações, inclusive a própria designação em língua Suyá, através do tempo. O mesmo aconteceu com as atribuições e comportamento dos líderes Krahô, como nos fazem vislumbrar certos contos de caráter mais histórico do que mítico que anotamos e divulgamos no texto mimeografado Reflexões sobre algumas narrativas Krahô (Brasília, FUB-CIS, Trabalhos de Ciências Sociais, Série Antropologia nº 8, 1974) [incluído neste site como "Contos de guerra dos índios craôs"],
"Contos de guerra
dos índios craôs"
que os mostram em atitudes semelhantes às dos chefes Suyá do passado. William Crocker, que anotou narrativas semelhantes entre os Canelas (Ramkhokhamekhrá e Apaniekhrá), mas não as publicou, limitando-se a divulgar os resultados de sua análise das mesmas no interessante artigo "Estórias das épocas de pré e pós-pacificação dos Ramkókamekra e Apâniekra-Canelas" (Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Nova Série, Antropologia, nº 68, Belém, 1978), mostra que os grandes guerreiros, dentre os quais emergiam os líderes, possuíam capacidades sobrenaturais da mesma natureza daquela dos "curandeiros-feiticeiros", porém em grau menor, o que sugere uma comparação com o fato de os belicosos homens Suyá, entre os quais se contavam os líderes do passado, serem acusados de bruxos ao se tornarem velhos (: 200). É também sugestivo contrastar a ausência da alma do especialista ritual Suyá, permanentemente prisioneira entre os animais (: 196-198) e a experiência por que passa o Krahô ao se tornar médico-feiticeiro, como relatamos e analisamos em
"O mito e o xamã"
"O mito e o xamã" (Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. 14, São Paulo, 1963: 60-70), que, por sinal, não perde a alma mas recebe substâncias mágicas.

Por desconhecimento da língua Krahô e falta de formação musical, não nos foi possível fazer nada semelhante ao esplêndido trabalho que Seeger realizou a partir dos cânticos Suyá, cujos resultados são apresentados de maneira mais desenvolvida fora da monografia em questão ("Por que os índios Suyá cantam para suas irmãs" e o capítulo 4 de Os índios e nós, já citados). De qualquer modo, tanto as akia, de propriedade individual, como os cânticos de cura (estes nas pp. 212- 218), não parecem ter correspondentes entre os Krahô.

Enfim, se algumas diferenças entre os Suyá e os Krahô se devem a possíveis falhas de observação, outras são atestadas por segura averiguação em ambos os grupos. Tudo isso nos sugere a pergunta: como as culturas Suyá e Krahô, tendo muito provavelmente uma origem comum, vieram a se tornar assim diferentes? Ou, de um modo mais amplo, através de que mecanismos as várias culturas Jê vieram a divergir? É certo que cada pesquisador ocupado com um grupo Jê tem indicado semelhanças e diferenças entre a sociedade que estuda e as vizinhas. Naturalmente, certos investigadores estão mais propensos que outros a esse tipo de exame. Anthony Seeger é um dos que mais se volta à comparação dos Suyá com os demais Jê, a que sempre recorre ao longo de toda a monografia e a ela dedica boa parte do capítulo final (: 229- 236). Tais comparações têm apontado para aspectos importantes, mas ainda não chegaram a um quadro geral das transformações dos Jê. Mas como fazer esse quadro geral, uma espécie de tabuleiro em que cada sociedade Jê ou assemelhada ocupasse uma casa e no qual se passaria de uma casa para outra mediante certas regras? Certamente tal tabuleiro conteria casas vazias, correspondentes a sociedades extintas ou que nunca existiram. Mas como organizar tal quadro?

Cremos que se deveria inicialmente pedir auxílio aos lingüistas e conseguir com eles uma "genealogia" das línguas da família Jê, ou, mais ainda, do tronco Macro- Jê. A julgar pelos trabalhos de Irvine Davis, "Comparative Jê Phonology" (Estudos Lingüísticas, vol. 1, n.o 2, 1966) e "Some Macro-Jê Relationships" (International Journal of American Linguistics, vol. 34, n.o 1, 1968: 42-47), é possível atualmente relacionar as línguas do tronco Macro-Jê, fazendo derivar os vocábulos das mesmas a partir de um léxico reconstruído de uma postulada língua Proto-Jê, e agrupá-las em dialetos, línguas, subfamílias, famílias, segundo o grau de semelhança que mantêm entre si. Sobre o mapa formado por essa genealogia de línguas, que, supomos, terá uma estreita correspondência com uma genealogia das sociedades indígenas que as falam, oriundas de sucessivas cisões seguidas de distanciamento geográfico, os etnólogos poderão dispor as semelhanças e diferenças etnográficas. Assim, a partir das atuais instituições dos Suyá, Kayapó, Apinayé e Timbíra Orientais, seria tentada a reconstrução de um suposto sistema sócio-cultural Proto-Jê Setentrional, do qual aquelas teriam derivado, trabalhando-se tal como fazem os lingüistas, ao descobrirem e aplicarem leis fonéticas. Da mesma forma se reconstituiria um suposto sistema Proto-Jê Central, a partir das etnografias Xavante e Xerênte. A comparação dos sistemas Proto-Jê Setentrional e Proto-Jê Central, além do Proto-Jê Meridional (reconstruído a partir dos dados Kaingang e Xoklêng) , poderia levar à reconstituição de um sistema ainda mais antigo, e assim por diante.

O quadro assim obtido ainda seria estático, pois não se saberia explicar o porquê do aparecimento ou modificação de uma instituição em certos pontos do esquema. Em outras palavras, esse mapa tem de ser complementado pelo estudo das atuais contradições internas e relações entre instituições dentro de cada sociedade, como faz Seeger no caso dos Suyá; pela Etno-história, como faz o mesmo Seeger no já citado "Identidade étnica como processo", ou William Crocker no artigo já aludido; pela História documental; pela Ecologia Cultural, como os trabalhos de Darrell Posey sobre os Kayapó ou de Daniel Gross sobre os índios do Brasil Central; pela Arqueologia, cujos trabalhos na região Centro-Oeste e no Nordeste apenas se iniciam, sendo-lhe desconhecida também a maior parte do Sudeste.

Enfim, está faltando levar em conta o motor que aciona as transformações do modelo Jê, que parece ser constituído pelos conflitos entre regras, pelos contatos intertribais, pelas inovações tecnológicas, pela adaptação ecológica.

Julio Cezar Melatti

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