Línguas e População do Sudoeste |
Apresentação da América do Norte |
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Mapa do Sudoeste |
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Tradicionalmente tem sido chamada de Sudoeste a área cultural que abrange, nos Estados Unidos, os índios da região semi-árida do Novo México e de Arizona. Mas sem dúvida é a mesma que se estende pelo noroeste do México. Uma vez que tanto um lado como o outro desta fronteira internacional estão no sudoeste da América do Norte, não é impróprio manter esse nome, Sudoeste. Se por um lado se mostra semi-árida, por outro a área está à mercê de chuvas tormentosas e é cortada por dois importantes rios perenes, o Colorado e o Grande.
Dos raros textos em português sobre essa área figura o relato de Herbert Baldus (1951) sobre a visita que fez a algumas reservas dos pueblos no ano de 1949. Há também um artigo sobre o ajustamento psíquico entre os Hopi por Dorothy Eggan (1965). O livro de Dee Brown (1972), Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, também disponível em português, focaliza esta área, entre outras, no que se refere à conquista dos brancos. Sobre esse mesmo tema há ainda a tradução da biografia do apache Gerônimo (Turner III, 1986). Há também a tardução de um livro escrito por um psiquiatra, Donald Sandner (1997), sobre o processo de cura dos navajos. Ironicamente, do final dos anos 60 os 80, foram muito vendidas no Brasil as traduções dos livros de Carlos Castaneda, referentes ao que aprendeu com Don Juan, um membro do grupo étnico Yaqui, no noroeste do México. Entretanto, como Richard De Mille (1990) empenhou-se em demonstrar, os textos de Castaneda não se apóiam numa pesquisa etnográfica como este faz supor, constituindo pura ficção.
Pueblos foi o termo aplicado pelos espanhóis às construções de adobe, geminadas e sobrepostas, no cimo de platôs ou nas paredes de canyons e aos seus habitantes indígenas. Os pueblos, apesar das semelhanças nas construções, na cerâmica, na agricultura, nos ritos, falam línguas de diferentes famílias. Os hopis, cuja reserva no nordeste do Arizona está embutida no centro da reserva Navajo, falam uma língua da família Uto-Azteca. Os zuñis, cuja reserva fica no noroeste do Novo México, fora e a sudeste da mesma grande reserva navajo, falam uma língua isolada, dentro do tronco penuti. Tal como os hopis, estão envolvidos pelo grande arco formado pelo rio Colorado e seus afluentes, o San Juan e o Pequeño Colorado. Mais para leste, ainda no Novo México, junto ao rio Grande ou seus afluentes, há pueblos que falam queres, língua isolada, que não se classifica em nenhum tronco. Há também os que falam línguas da família tano.
Fred Eggan (1971), com base em pesquisas de campo que desenvolveu ao longo dos anos 1930 e nos textos de antropólogos que o precederam, publicou, primeira mente em inglês, em 1950, um livro sobre a organização social dos pueblos ocidentais. Considera como tal os hopis, e os tewas que vivem junto a eles, os zuñis, todos na bacia do Pequeño Colorado, e os queres das comunidades de Acoma e Laguna, já num sub-afluente do rio Grande. Os demais, da bacia do rio Grande, são os orientais. No quadro em anexo estão distribuídas as comunidades pueblos do tempo em que Eggan fez sua pesquisa.
Comunidades pueblos |
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Fred Eggan, como aluno do inglês Radcliffe-Brown, no tempo em que este trabalhou na Universidade de Chicago, e portanto formado sob uma orientação um tanto diferente dos antropólogos patrícios seus norte-americanos, escolheu estudar comparativamente a organização social das comunidades pueblos, algo que ficara um tanto à margem da atenção de seus predecessores. Assim, se por um lado seu livro dá uma idéia geral de todos os pueblos, e mais detalhadamente dos ocidentais, por outro, essa atenção se concentra nas instituições sociais, deixando de lado outros aspectos da cultura, que dá como conhecidos do leitor por intermédio do acesso aos textos de outros pesquisadores. Desse modo, não fica nem mesmo muito claro o porquê da distinção dos pueblos em ocidentais e orientais. O que talvez os diferencie, a julgar pelas conclusões a que vai chegando o autor, é a influência maior dos colonizadores a que os orientais ficaram sujeitos.
Eggan começa seu estudo pelo conjunto das comunidades hopis, passando em seguida pela comunidade Jano, que se estabeleceu desde longa data junto às primeiras; passa depois aos zuñis, em seguida à comunidade de Acoma e finalmente à de Laguna. Inicia cada caso pelo exame detido da terminologia de parentesco. Em todos os casos constata características da terminologia de tipo Crow (nome tomado dos índios crow, isto é, corvos, do noroeste das Planícies norte-americanas, onde essas características foram encontradas. Uma das marcas mais evidentes desse tipo de terminologia é a aplicação dos termos correspondentes a “pai” e “irmã do pai” ao filho e à filha da irmã do pai. Isso faz com que esses primos respondam respectivamente com os termos “filho(a)” e “filho(a) do irmão” a quem assim os trata, que é o(a) filho(a) do irmão da mãe. O que Eggan quer mostrar é que, contrariamente à tese de Alfred Kroeber, que atribuía à distribuição dos termos de parentesco razões psicológicas e lingüísticas, há uma correspondência entre a terminologia e as instituições sociais. No caso dos pueblos, a distribuição dos termos de parentesco pelas genealogias tem a ver com as linhagens e clãs matrilineares.
Guardadas as proporções, os pueblos evocam dois conjuntos de indígenas brasileiros. Por um lado evocam os xinguanos, por terem, apesar das origens lingüísticas e geográficas diferentes, convergido para um mesmo padrão cultural. Lembram o alto Xingu também pelo enorme interesse que despertaram entre os etnólogos. Os estudos sobre os pueblos são inúmeros e entre seus autores se podem contar aqueles que chegaram até o conhecimento dos leitores brasileiros por trabalhos que não os diretamente referentes aos pueblos: Alfred Kroeber, Leslie White, Ruth Benedict, Mischa Titiev, Fred Eggan, C. Daryll Forde.
O outro conjunto brasileiro que os pueblos evocam é o dos jês do norte. A terminologia Crow, as famílias extensas matrilocais, as sociedades cerimoniais, os palhaços, evocam os timbiras; se acrescentarmos os pais e mães cerimoniais, evocam também os apinajés e os caiapós (lembrando que estes últimos têm uma terminologia de tipo Omaha, que de certa maneira é o inverso especular da Crow). Obviamente outros elementos culturais pueblos não têm paralelos entre os índios do Brasil atual, como as kiva, salas cerimoniais subterrâneas.
Os navahos (ou navajos, na grafia espanhola) são o povo indígena mais numeroso dos Estados Unidos e também vivem em sua reserva mais extensa. Criadores de carneiros, falam uma língua da família Atabasca, tal como os Apaches. As demais línguas dessa família são faladas bem mais ao norte, na área Sub-Ártica Ocidental.
Um bom modo de começar a fazer uma idéia de seu modo de vida é folhear o volume de fotos de Leonard McCombe, acompanhadas de texto de Evon Vogt e Clyde Kluckhohn (1951). São fotos em preto-e-branco (pelo menos a sua reprodução) tomadas num inverno dos meados do século XX, após a 2ª Grande Guerra (a julgar por certas fotos), que retratam o quotidiano e a intimidade navaho. Elas mostram o interior da habitação (hogan), feita de troncos e coberta de terra, as atividades de cozinha, busca de água, tecelagem, o aquecimento de pedras para serem introduzidas na casa de suar, a rolagem na areia e no gelo após a permanência nessa casa, crianças cuidando dos rebanhos de carneiros, o uso de carroções de quatro rodas puxados por dois cavalos, as vestes tradicionais (as mulheres com blusas de veludo de algodão guarnecidas de adereços de prata) e modernas, ritos de cura, desenhos de areia feitos no chão do hogan sobre os quais fica o paciente durante o rito, sepultamento de uma criança, trabalho na manutenção dos trilhos da estrada de ferro, visita à loja do comerciante, crianças na escola, veteranos de guerra sob ameaça de prisão por estarem proibidos de usar bebidas alcoólicas, compra de bebidas feitas por destilarias ilegais, bêbedos caídos por beberem apressadamente.
Vogt e Kluckhohn, num breve texto no mesmo volume, expõem as linhas gerais do processo de acomodação dos navahos às sucessivas situações interétnicas que os envolveram, principalmente sua incorporação aos Estados Unidos. Têm sua origem no norte, pois sua língua pertence à família atabasca. Teriam chegado à região em que hoje vivem como coletores e caçadores. Sob a influência dos pueblos, adotaram a agricultura, desenvolveram a tecelagem e tornaram mais elaborados os seus ritos. Os primeiros brancos a penetrarem em sua região foram colonizadores espanhóis, datando de 1626 a primeira referência a eles num documento europeu. No período de 1626 a 1846 sua região esteve sob o domínio da Espanha e depois do México. Nesse período passaram a criar ovelhas e cabras e começaram a usar o cavalo. Iniciaram também a confecção de adornos de prata. Faziam incursões sobre os estabelecimentos espanhóis, depois mexicanos, em busca de cavalos, armas de fogo, mulheres, e sofriam os revides.
Quando os mexicanos perdem o domínio da região para os norte-americanos, estes prometem dar proteção aos moradores brancos e fazem a primeira expedição contra os navahos em 1846. Nas suas operações militares estabelecem guarnições no território navaho. Entretanto, quando as atenções norte-americanas se voltam para a Guerra de Secessão, os navahos (e também os apaches) tornam a realizar incursões sobre os núcleos brancos, de modo que em 1863 uma expedição militar pilha sistematicamente seu território, com ordens para destruir rebanhos e plantações e exigir sua rendição. Oito mil navahos, a maioria de sua população, são levados como prisioneiros para Fort Sumner, num formador do rio Pecos, no leste do Novo México. Aí ficaram retidos até 1868. Retornaram a suas terras, reduzidas a aproximadamente 14.200 km². Essa reserva foi pouco a pouco sendo aumentada até atingir cerca de 58.700 km². Se acrescido das propriedades compradas pelos indivíduos ou pela coletividade navaho, o total de suas terras alcançava por volta de um total de 62.700 km² na época da edição do volume aqui em exame. Estudos feitos entre 1910 e 1933 mostraram que os pastos da reserva navaho estavam se degradando por alimentarem um número de animais bem superior à sua capacidade. Por isso, o governo norte-americano comprou 400.000 ovinos e caprinos aos navahos. Em 1939 também se tomaram providências para a redução do número de cavalos. Essas medidas foram mal recebidas pelos navahos.
Mas eles logo tiveram sua atenção desviada pelos programas motivados pela 2ª Guerra Mundial. Durante a guerra, 3.500 navahos integravam nas forças armadas, dos quais 800 como soldados. A língua navaho foi usada para mensagens em código. E ainda 15.000 navahos estavam engajados em trabalhos relacionado à defesa no oeste dos Estados Unidos.
Após a guerra os navahos eram cerca de 68.000 pessoas, o que correspondia a uma densidade de 1,01 indivíduos por km² numa área desgastada e que não abrangia as terras melhores que outrora haviam ocupado. Além das tradicionais atividades de criação de animais, agricultura, tapeçaria e trabalho em prata, em 1949 cerca de 13.000 navahos recorriam ao trabalho assalariado sazonal fora da reserva. A opinião pública norte-americana só veio a tomar conhecimento da difícil situação dos navahos do ponto de vista econômico e da saúde no inverno de 1947-48.
Os clãs navahos, matrilineares e exogâmicos, não têm território próprio e nem se concentram em qualquer lugar, são dispersos; também é proibido o casamento com membros do clã do pai. As casas ficam a grande distância uma da outra. Parentes e outros moradores que mais se avizinham freqüentam mutuamente suas casas, auxiliam-se, convergem para as mesmas realizações rituais, tendendo a constituir uma comunidade que reconhece um líder informal.
Os ritos incluem várias classes de cânticos de cura e de proteção com diferentes propósitos. Desenhos com areia feitos no chão entre os quais se coloca o paciente fazem parte dos ritos de cura. Duas maneiras são utilizadas para chegarem a um diagnóstico: pela observação do tremor da mão do agente mágico estendida sobre o paciente ou pela observação de estrelas.
Outro volume interessante é a auto-biografia de um navaho chamado Left Handed (1967), colhida por Walter Dyk em 1934. Ele conta sua história desde seu nascimento, em 1868, ano em que os navahos são liberados do Fort Sumner para se restabelecer em sua terra, até seu casamento uns vinte anos depois. Desde cedo foi criado por um casal, Old Man Hat e Abaa, a quem chamava respectivamente de pai e de mãe, embora não fossem seus pai reais, mas sim conforme o sistema classificatório. O casal, principalmente o marido, era possuidor de um grande rebanho de ovelhas, alguns cavalos e bois. O hogan em que morava ficava a certa distância dos demais e o relato não dá indicações de que unidade maior fazia parte, se é que existia. Havia um contínuo deslocamento diário: da casa para as pastagens, pelos mais jovens, mesmo crianças, que cuidavam das ovelhas; saídas para localizar os cavalos, que pastavam mais longe, e também os bovinos, para marcá-los nas orelhas; freqüentes visitas a parentes, dos quais sempre traziam algo, dos mais próximos geralmente algum alimento, dos mais afastados algum objeto presenteado; havia também as idas aos ritos realizados pela saúde de alguém; e ainda percursos mais longos para núcleos habitados pelos brancos em busca dos comerciantes, para levar-lhes carne ou mantos bordados em troca de artigos industrializados (farinha de trigo, fubá, café, tecidos, roupas). A carne de um animal abatido não consumida imediatamente era pendurada em árvores; milho e abóboras podiam ser conservados enterrados. Os moradores de um hogan transferiam-se com freqüência de um lugar para outro, conforme a mudança de estação, o esgotamento dos pastos, a necessidade de água. O relato não diz do transporte do madeiramento da casa ou da construção de uma nova, o que dá a entender que a família dispunha de edificações em vários lugares, ou podia ocupar as que encontravam vazias. Havia freqüentes contatos com índios de outras etnias, como os hopis e oraibis (Oraibi é uma comunidade hopi), que gostavam de receber carne e davam em troca milho e pêssegos secos. O relato faz referência também à vizinhança de comanches, utes e paiutes. Left Handed relata os assíduos conselhos que recebia do pai com quem vivia, que insistia na necessidade levantar cedo, de correr para ganhar resistência, do trabalho diligente, de modo a não perder o rebanho, ter sempre o que comer e não se tornar um pedinte, ser generoso sem se tornar perdulário. Conhecia cânticos para afastar os raios e proteger o rebanho, que ensinou a Left Handed quando se sentiu velho e enfraquecido. No relato de seu comparecimento a alguns ritos de cura, Left Handed não faz uma descrição do núcleo da cerimônia, mas conta os incidentes em que se envolveu com outros participantes. É um texto que dá a conhecer o que um navaho de seu tempo pensava, com o que se preocupava, como julgava seus semelhantes.
Embora não constitua uma abordagem propriamente antropológica, o livro do psiquiatra ou psicoterapeuta Donald Sandner (1997) tem a seu favor o fato de ser o único sobre os navajos traduzido para o português. O autor, com uma forte, mas não exclusiva, influência de Jung, leu, entretanto, a literatura antropológica sobre os navajos e a inclui na sua bibliografia, o que já torna seu trabalho uma interessante fonte de informação. Apesar de sua investigação pessoal junto aos navajos, o autor se apóia fortemente nos numerosos textos dos antropólogos e outros pesquisadores que os estudaram, aos quais não recusa sua admiração. Vale também pela tabela dos cantos de cura e as indicações de seu uso (pp. 53-55), em número ligeiramente maior que os cerca de 26, apontados por Kluckhohn e Wyman nos anos 30, dos quais 9 estariam extintos e apenas 10 seriam realizados regularmente (pp. 44-45). Vale ainda pelas várias reproduções dos desenhos de areia tomadas de The Wheelwright Museum of the American Indian, de Santa Fé, Novo México, desenhos esses que são confecionados no chão dentro da cabana, segundo o problema a ser solucionado e o cântico que será entoado e sobre o qual fica o paciente. Certas práticas são semelhantes à dos apaches (chiricahuas e mescaleros), como o uso do pólen (pp. 36-7, 186-9), a importância do número quatro (pp. 45, 174), os animais de poder (p. 38) e outras mais peculiares aos navajos, como o uso de cristais para identificar problemas pessoais (p. 37), os diagnósticos por tremor de mãos (p. 36), lembrando que os que têm esta faculdade se distinguem daqueles que entoam os cânticos. Além disso, o temor dos mortos e a recusa ao relacionamento com eles impediram que os navajos aceitassem o culto da dança dos fantasmas, que se difundiu entre as sociedades indígenas norte-americanas por volta de 1890 (p. 93) e os fazem refratários à aceitação do culto do peiote (p. 95).
Memórias de um apache mescalero. O livro Apache Odissey é também a transcrição da autobiografia de um indígena, com introdução e notas de Morris Opler (1969). Ela foi anotada de 1933 a 1936, principalmente nos dois primeiros desses anos. Apesar de ser filho de pai chiricahua e mãe mescalero, Chris, pseudônimo que lhe foi atribuído por Opler, se orientava culturalmente conforme o segundo destes ramos dos Apaches. Os chiricahuas ficaram como prisioneiros de guerra de 1886 a 1913, primeiro transferidos para a Florida, depois para o Alabama. Embora seu pai fosse batedor do exército norte-americano, foi levado com a família prisioneiro como os demais chiricahuas. A família só retornou à reserva apache mescalero em 1889.
Os mescaleros são um dos sete ramos em que se distribuem os apaches. Dos demais, os chiricahuas são os que lhes são mais próximos em língua e cultura, e com os quais mantêm mais laços sociais. Os outros são os lipan, os jicarrillas, os kiowa, os navahos e os apaches ocidentais (Opler, 1969, p. 9).
A infância e juventude do biografado se passa num período bastante tumultuado por lutas, prisões, transferências, abusos de toda ordem que afetam os mescaleros e seus vizinhos com a expansão da população não índia de um e de outro lado da nova fronteira que se traça entre México e Estados Unidos após a guerra que mantiveram em 1848.
As memórias de Chris, além de falar de caçadas, do internato na escola imposta, nas conversas na sede da agência indigenista e no estabelecimento comercial onde faziam suas compras, parecem incidir mais longamente na descrição de sessões de cura e na obtenção de poderes a partir de diferentes pássaros. O urso também seria uma fonte de poder. O próprio biografado atua como auxiliar e até como curador principal nessas sessões. Constantes referências se fazem à atuação de médicos da agência indigenista, seja discordando de seu tratamento, seja tomando-o como complemetar à ação xamânica, seja ainda para apontar a aprovação dos médicos a certas soluções indígenas. Chris descreve vários xamãs, inclusive mulheres, como sua tia materna. A aplicação de pólen, talvez de mais de um vegetal, era um ato dificilmente ausente numa sessão de cura.
Memórias de Gerônimo. O líder apache Gerônimo, já como prisioneiro de guerra, relatou suas memórias a S.M Barrett, tendo como intérprete Daklugie, filho de Whoa, um dos companheiros de expedições guerreiras do biografado. As memórias foram publicadas com introdução e notas de Frederick W. Turner III (1986).
Segundo o próprio Gerônimo, os apaches se dividiam em seis subtribos, o que na verdade devem ser seis divisões dos chiricahuas (pp. 65-66). Ele mesmo fazia parte da chamada bedonkohe, que habitava ao sul das nascentes do rio Gila, no leste do Arizona. A leste estavam os chihenne, com seu chefe Victoria. Ao norte ficavam os apaches de White Mountain, próximos do território dos navahos, que Gerônimo não considerava do “mesmo sangue” dos apaches, ainda que se visitassem e comerciassem. A oeste estavam os chieahen, com seus chefes Cosito e Coadayooyah. Para o sul ficavam os chokonen, chefiados por Cochise, e depois por seu filho Naiche, que agora era prisioneiro com Gerônimo. A sudoeste ficam os nedni, chefiados por Whoa, cujo território ficava parte no Arizona e parte no México. Naiche e Whoa eram os líderes que acompanhavam Gerônimo nas incursões guerreiras. Enfim, o teatro de atuação de Gerônimo ficava na atual fronteira entre Estados Unidos e México, onde se limitam, de um lado, os estados de Arizona e Novo México, e de outro, Sonora e Chihuahua.
As numerosas incursões de Gerônimo, sobretudo dirigidas ao México, se dão desde 1859 a 1884. Iniciaram-se motivadas pelo ataque de uma tropa mexicana a um acampamento apache em que estavam mulheres e crianças guardadas por um pequeno número de guerreiros enquanto os demais homens comerciavam pacificamente em um núcleo urbano do México. Nele Gerônimo perdeu a mãe, a mulher e filhos. Ao que parece essas incursões não avançavam para o sul além do paralelo 30º N, mas uma vez ele chegou até a foz do rio Yaqui, no golfo da Califórnia (p. 96). Além de motivadas pela vingança e pela procura de feitos guerreiros, inclusive com o escalpelamento dos militares, mas não dos civis, o sucesso dessas incursões também era avaliado pelo saque obtido (cavalos, burros, bois, armas, munição, tecidos, cobertores, panelas, queijo, açúcar e outros gêneros alimentícios). Mas não quiseram levar o toucinho defumado tomado a uns tropeiros (p. 89).
Gerônimo faz algumas referências às tradições culturais de seu povo, nas quais se nota a importância no número quatro. Assim, no mito de origem (pp. 61-61) há uma luta entre um menino, o herói cultural, e um dragão, que ameaçava os poucos humanos de então. Por quatro vezes o menino e o dragão tomam um do outro um pernil de veado; no duelo que depois se trava, cada qual tem o direito de atirar quatro flechas. O dragão tem quatro carapaças que vão de desfazendo a cada flechada do menino. Por outro lado, para ser considerado como um guerreiro, é preciso que o jovem participe de quatro expedições. Ele tem de aprender os nomes sagrados de todas as coisas utilizadas na guerra, pois esta é uma atividade religiosa muito séria (p. 129). Ainda no jogo dos mocassins, que Chris também descreve como se faz entre os mescaleros, ficam quatro desses calçados enterrados de cada lado, sendo que dentro de um deles é escondido um osso, que o time adversário deve advinhar qual é, dando um golpe sobre ele (p. 72).
Gerônimo faz referência ao cultivo do milho, feijão, melão e abóbora, à criação de cães e pôneis, ao uso do fumo silvestre, à bebida fermentada de milho chamada tiswin (pp. 68-69). Refere-se também à caçada de veados, feita sempre com o vento na direção do caçador, para o animal não percebê-lo pelo olfato, em busca de carne e couro, de perus selvagens e coelhos, feita a cavalo; à caça de águia (pelas penas), ao urso, ao puma (cujo couro servia à confecção de aljavas). Mas não comiam peixes, nem rãs, nem cobras (pp. 74-75). Mas alimentavam-se com parte das mulas conseguidas nos saques.
O morto era sepultado numa caverna, com o sacrifício de seus cavalos e distribuição de seus bens. Por sua primeira mulher, Gerônimo fez presente de pôneis ao sogro (pp. 76-77).
A maioria dos povos falantes das línguas da família yuma se distribui ao longo do rio Colorado. Os havasupais e hualapais, que falam uma dessas línguas, situam-se neste rio acima da cidade de Las Vegas. Uma outra dessas línguas é falada pelos quechan (também chamados simplesmente de yumas) e pelos mohaves, que vivem no trecho em que o Colorado toma a direção sul; e ainda pelos maricopas no curso médio de um afluente do Colorado, o Gila. Outra língua é falada pelos cocopas, que já estão perto da foz do Colorado, onde o rio cruza a fronteira entre Estados Unidos e México. Ainda uma outra é falada pelos diegueños, que estão em outra área cultural, a Califórnia.
Magia mohave. Um artigo de Kenneth Steward (1973) mostra aspectos peculiares da crença relativa à bruxaria entre os mohaves (ou mojaves, na grafia espanhola). Um deles é a própria concessão dos poderes mágicos, que são conferidos ao indivíduo por intermédio de sonhos quando ainda está no útero materno, por volta dos seis meses de vida fetal. A alma do sonhador recua para certos lugares sagrados do início dos tempos, onde recebe o poder mágico de personagens míticos. Dois deles conferem poder a homens; um terceiro, a mulheres. Esses sonhos são esquecidos pela criança ao nascer e só voltam a se manifestar a partir de uns doze anos de idade. Embora tais sonhos possam ocorrer a qualquer um, eles são mais propensos a ocorrerem entre membros de famílias em que há pessoas reputadas como bruxos (pp. 315-6).
Tal como em outras sociedades, acredita-se que os bruxos são capazes tanto de curar como de fazer mal. Entretanto, no caso dos mohaves, o bruxo não ataca a quem odeia. Pelo contrário, causa doença e morte àqueles de quem gosta ou por quem sente atração. Ao invés de se dirigirem à terra dos mortos, as almas das vítimas da bruxaria são colocadas pelo bruxo num lugar especial que ele pode visitar em seus sonhos, e ter com elas relações sexuais, mesmo incestuosas (pp. 316-7).
Como teme que seu séquito de almas seja capturado por outro, o bruxo tenta provocar o seu próprio assassinato, pois somente sofrendo morte violenta poderá passar com elas à terra dos mortos. Se morrer de morte natural, essas almas passarão à terra dos mortos livres de seu controle (pp. 317-8).
Não obstante, o bruxo também pode voltar seus poderes contra uma pessoa por causa de uma discussão, por inveja de seu sucesso ou suas posses, por ter seus poderes menoscabados ou até por brincadeira, como, por exemplo, numa dança, fazer uma jovem cair fulminada e logo em seguida curá-la. Pode ainda aceitar ou não atacar uma pessoa a pedido de um terceiro que lhe prometa uma recompensa (p. 318).
O ato de bruxaria consiste essencialmente no roubo da alma. Pode ser “rápido”, quando o bruxo ataca alguém que está à sua vista numa dança, reunião ou funeral. Ou “lento”, quando ele chega até a vítima à noite, nos seus sonhos (pp. 318-9).
Os chefes mohaves eram infensos aos ataques dos bruxos porque eles também eram dotados de grandes poderes obtidos em sonhos pré-natais. Invulneráveis também são os brancos, negros, maricopas, chemehuevis. Mas os chemehuevis, hualapai, yumas e maricopas podem vitimar os mohaves (p. 320-1). Após terem sido subjugados pelas tropas dos Estados Unidos em 1859, a bruxaria teria se intensificado entre os mohaves no restante do século XIX, por se ter fechado a este povo militarista um importante canal para o comportamento agressivo; esta desmoralização foi exacerbada pela extrema pobreza e pela introdução de enfermidades (p. 323).
Mudança social entre os quechan. Os quechan, também chamados simplesmente de yumas, ficam mais abaixo que os mohaves no curso do rio Colorado, junto à fronteira com o México. Um artigo de Robert Bee (1963) trata das mudanças por que passou sua organização social após o contato com os brancos. Sua reserva, de cerca de 36 mil hectares, tem o clima seco do deserto que a circunda, apenas atenuado pela umidade do rio Colorado, que a bordeja. No passado faziam freqüentes expedições guerreiras contra os pimas, maricopas e cocopas. Era por intermédio de sonhos, que envolviam uma jornada a uma montanha sagrada onde o sonhador recebia poder e um cântico, que o indivíduo se habilitava a se tornar um líder tribal (pp. 207-8), o que lembra os líderes mohaves, cujos poderes vinham de sonhos pré-natais.
Os quechan se distribuíam em várias rancharias, cada qual com cerca de 500 habitantes e com considerável grau de autonomia. Entretanto, uma determinada cerimônia, as cremações e as danças realizadas na estação da colheita contavam com o comparecimento de várias ou todas as rancharias. Mas o senso de autonomia era mantido pela competição entre as rancharias em vários jogos durante as festividades e pelo sentimento de superioridade admitida por cada uma. Cada rancharia era constituída por várias famílias (pp. 209-210). As casas eram de diversos materiais: de paredes de adobe com uma estrutura de esteios de salgueiro, uma estrutura de salgueiro coberta de folhas, ou semi-subterrâneas (p. 210).
Entre os fatores que contaram para a modificação da organização social estão:
1. A abertura de escola de freqüência obrigatória para crianças e adolescentes indígenas em 1884, gerenciada pela Igreja Católica até 1900, quando passou diretamente à administração do governo; isso fez intensificar o contato entre jovens de diferentes rancharias como também muitos pais se mudaram para as vizinhanças da escola para ficarem mais perto de seus filhos (pp. 210-11).
2. A conclusão da represa de Laguna, no rio Colorado, fazendo reduzir drasticamente a inundação anual que fertilizava o solo, com o conseqüente abandono das rancharias por famílias em busca de terras melhores (p. 211).
3. A divisão da reserva em lotes de 4 hectares para cada indivíduo, obrigando a quem ainda não estava na reserva a mudar-se para ela, sob pena de ficar sem terras. As rancharias assim se fragmentaram, pois as famílias nucleares que as compunham tiveram de se recombinar de modo a atender seus novos interesses, como ficar perto da cidade ou da escola (p. 211).
4. A pequenez dos lotes, a falta do fertilizante natural trazido pela inundação, a falta de recursos financeiros para recuperar a fertilidade da terra, fizeram muitas famílias arrendarem seus lotes a agricultores brancos, que tinham tais recursos, e moverem-se para os lotes de parentes ou para a cidade. Diferentemente das antigas rancharias, cada lote atualmente não abriga mais do que duas casas de famílias nucleares (pp. 211-2). O padrão de residência patrilocal do passado, ainda que sujeito a freqüentes exceções, foi abandonado em favor de escolhas mais condizentes com a situação presente, predominado a residência neolocal (pp. 212-4).
5. A instrução escolar, o trabalho assalariado fora da reserva e até mesmo a residência permanente na cidade têm feito vários quechan abandonarem o uso da língua indígena e mesmo substituírem os termos indígenas de parentesco pelos corrrespondentes em inglês e conforme o esquema norte-americano (pp. 214-7). Nota-se também entre os mais jovens um crescente desconhecimento dos sibs (clãs) exogâmicos patrilineares (pp. 217-9). As possibilidades de casamento passaram a incluir também outros indígenas, como mohaves, dieguenõs, cocopas, maricopas; e ainda não indígenas, como mexicanos, norte-americanos brancos e negros; geralmente o cônjuge não indígena é o marido (p. 224).
6. A partir de 1941, passou a ser exigido o certificado legal de casamento para as uniões indígenas como condição para o exercício de certos atos, como a transmissão dos lotes de terra aos filhos, o que afetou sobretudo aqueles que desejam viver dentro da reserva. Por outro lado, a legalização do casamento trouxe um entrave à facilidade com que até então se desfaziam as uniões, uma vez que passou a impor o divórcio legal, que as taxas judiciais e os honorários dos advogados tornam muito dispendioso (pp. 224-5).
A tese de Marie Lucille Rocca-Arvay (1981) focaliza as relações dos yaquis com a colonização espanhola, que começa em 1617 com a instalação das missões jesuíticas, que prosperaram até 1740, quando, por uma convergência de motivos diversos, eles se revoltaram, e a retomada das missões até a expulsão dos jesuítas de toda a Espanha e seus domínios em 1767. Os yaquis e os demais grupos falantes de dialetos da língua cahita (mayos, sinaloas, tehuecos e zuaques), da família uto-asteca, ocupavam o trecho da faixa litorânea entre a serra Madre Ocidental e o golfo da Califórnia, cortado pelos rios Yaqui, Mayo, Fuerte, Sinaloa. Esse trecho corresponde ao sul e ao norte, respectivamente, dos atuais estados mexicanos de Sonora e Sinaloa. As boas relações entre os yaquis e os missionários foram transtornadas por vários motivos que culminaram na revolta dos índios em 1740: insatisfação com o comportamento de alguns missionários, disputas entre jesuítas e o governador da região que tinha em vista retirar os yaquis do regime de missão para o de assistidos pelo clero secular e sujeitos a taxas e impostos. Mesmo depois de debelada a revolta, os yaquis continuaram a ser um forte apoio para a colonização, como trabalhadores nas próprias missões e ainda requisitados pelas fazendas e minas vizinhas, apoio à instalação de novas missões mais ao norte ou na península da Califórnia, bem como integrantes de tropas organizadas para a defesa ou ataque contra grupos indígenas como os seris e os pimas.
Por colocar-se nos limites do período da colonização espanhola, o detalhado trabalho de Marie Rocca-Arvay não aborda os posteriores e numerosos movimentos de resistência armada dos yaquis: 1825-27, 1832-33, 1865-66, 1867-68, 1874-75, 1882, 1889-91, 1892, 1895, 1899-1901, 1902 e 1926. A dura repressão exercida contra eles no último terço do século XIX e inícios do seguinte aplicou a milhares deles a execução ou a deportação para as plantações de henequén no Iucatã ou para fazendas e minas de Oaxaca e outras partes do México.
John G. Kennedy (1970) escreveu uma interessante monografia sobre os tarahumaras gentios. Como os demais tarahumaras, vivem no estado mexicano de Chihuahua, na serra Madre Ocidental. O qualificativo “gentio” alude a sua recusa em aceitar o cristianismo desde o tempo das missões jesuíticas no período colonial, ao contrário dos demais tarahumaras. Ou seja, são pagãos. Mas isso não quer dizer que não tenham sido influenciados pelas crenças cristãs. Além disso se utilizam de vários itens introduzidos pela colonização, como um tipo simples de arado, a confecção e uso de violinos (pp. 82-83), criação de animais (bois, cavalos, carneiros, cabras, galinhas), o acréscimo de certas plantas aos seus vegetais cultivados, como o pêssego, o trigo, a batata. Também não quer dizer que os tarahumaras que aceitaram o batismo pratiquem o catolicismo seguindo estritamente os ditames da Igreja. O que mais distingue os tarahumaras gentios dos demais é não organizarem suas comunidades em torno de uma capela de um santo junto a qual um corpo administrativo em reuniões formais vela pelo bom andamento de suas atividades e interesses. Além disso, são extremamente isolados (pp. 42-50), reduzindo ao mínimo sua visita a cidades vizinhas, participando pouco e sem manifestar-se das reuniões com outros tarahumaras para tratar de reivindicações junto ao governo, fazendo algumas transações comerciais, em que geralmente são lesados, com mestiços, e tolerando as visitas destes últimos, sobretudo no tempo da colheita de pêssegos.
Os tarahumaras gentios vivem em terras montanhosas, em que as pequenas extensões passíveis de cultivo estão dispersas, separadas por vales profundos. Plantam milho, feijão, uma espécie de mostarda verde, abóbora (p. 63). Cada casal pode cuidar de um trato de terra, por exemplo, um herdado do pai do marido, outro pertencente à mulher em outra comunidade, a pouca distância em linha reta, mas separados por longas horas de caminhada para descer e subir os vales que os separam. A escolha da residência pós-marital e ao longo do desenvolvimento do grupo doméstico varia segundo a disponibilidade de terras. Além disso as famílias possuem animais, sobretudo cabras que pastam nos terrenos não cultiváveis, não raro em declives acentuados. O recurso de que usam para adubar é fazer currais sobre as parcelas de terra em repouso, os quais são periodicamente transferidos, de modo a beneficiarem todo o terreno cultivável; recolhem também o esterco produzido pelos animais que ficam abrigados durante o inverno em lugares protegidos, como cavernas (pp. 60-61). Apesar de viverem perto dos limites da subsistência, é possível produzir um pequeno excedente e entre eles há diferenças em recursos (número de bois, cavalos, cabras, extensões cultivadas) e em prestígio.
Os tarahumaras gentios vivem nas partes mais difíceis de uma área que puderam guardar do avanço dos mestiços. Casam somente entre si, muito pouco com os outros tarahumaras e nunca com mestiços. São mesmo até mesmo discriminados pelos tarahumaras batizados como gente que tem um modo de vida inferior. A articulação de seus grupos domésticos dentro de suas comunidades e entre elas se faz pelas “tesgüinadas”, isto é, eventos em que se consome a bebida tesgüino. Ela é feita de milho, cujos grãos são umedecidos até começarem a brotar, em seguida moídos e cozidos, e deixados a fermentar com as semente de uma gramínea local. Todas as etapas de sua confecção devem ser bem cuidadas de modo a estar pronto à chegada dos convidados, pois deve ser logo consumido,sob pena de estragar-se (pp. 113-114). Entre as ocasiões em que se convida para beber tesgüino estão as ajudas entre vizinhos para execução de uma tarefa, como a monda, a colheita, corte de forragem, distribuição de adubo, construção de uma cerca ou casa (p. 76). Cada indivíduo assim ajudado, além do oferecimento de tesgüino, deve por sua vez retribuir o auxílio, comparecendo aos eventos semelhantes promovidos por aqueles que lhe deram apoio. É o mesmo tipo de instituição que no sertão brasileiro se chama de mutirão. Nota o autor que para uma tesguïnada se convidam todos os moradores de uma mesma comunidade, os das comunidades mais próximas e alguns daquelas um pouco mais distantes. Na tesgüinada não somente se trabalha, mas é ocasião para se discutirem problemas de interesse comunitário, e a bebida dá ocasião a congraçamento, divertimento, mas também relações extra-maritais e a manifestação de mágoas que por vezes chegam à agressão física.
Kennedy, explicitamente inspirado na orientação teórica de Julian Steward, não somente explica o padrão de assentamento disperso dos tarahumaras gentios e sua grande mobilidade entre as comunidades com base na ecologia cultural, como admite que a tesgüinada contribua para a integração sociocultural. Ao invés de um centro único para no qual os tarahumaras gentios estariam impossibilitados de se concentrar, seja para a realização de ritos, seja para assembléias de interesse coletivo, seja para congraçamento e procura de possíveis cônjuges, devido à grande dificuldade de deslocamento, cada comunidade é um centro de tesgüinada, de tal modo que a comunidade mais distante que freqüenta é por sua vez um centro para comunidades ainda mais longínquas (pp. 124-130). Forma-se assim uma rede de que cada comunidade é um nó. Apesar dessa contribuição, a tesgüinada também tem seus custos e disfunções (pp. 232-248), como propiciar, dado o estado de embriaguês, as relações extra-conjugais, a violência física, o descuido dos cuidados com imaturos e com as obrigações rituais, em desafio aos valores tarahumaras.
Em ou outro trecho do livro o autor faz alusão a corridas de bola, mas não chega a descrevê-las. Digno de nota também é a relação do peiote com feitiçaria (p. 164), uma associação estranha para a religião desenvolvida com centro nesse vegetal pelos índios dos Estados Unidos.
Os coras vivem no norte do estado mexicano de Nayarit, entre os rios São Pedro e Jesus Maria, afluentes da margem direita do rio Grande de Santiago. Estão na vertente da serra Madre Ocidental que desce para o Pacífico. Vale lembrar que o rio Grande de Santiago nos serve como limite da área etnográfica do Sudoeste com a Mesoamérica. O livro de Gildardo González Ramos (1972) sobre os coras tem mais a feição de um relatório indigenista do que um estudo propriamente etnológico, aliás não acompanhado de bibliografia. Contém informações sobre demografia, instrução escolar, saúde, trabalho, problemas de terra.
No item referente às suas relações com outros grupos étnicos ficamos sabendo que as têm com os huichóis [huicholes], tepehuanos e mexicaneros. Desses três, suas relações mais próximas parecem ser com os huichóis, que lhes solicitam morar em sua zona de habitação, com os quais têm alguns casamentos e que costumam aprender sua língua, embora os coras achem difícil aprender a deles. Ainda que mantenham sua língua, seus ritos, padrões de residência e de construção de habitação, os huichóis costumam participar das cerimônias coras. Apesar disso, os coras não fazem bom conceito dos huichóis: acham-nos agressivos e violentos, que abandonam seus enfermos velhos ou crianças pelos caminhos quando peregrinam em busca de peiote ou de água do mar e de outras fontes cerimoniais; se os encontram mortos, depositam seus corpos em qualquer sítio ou cova; são pouco asseados, libertinos nas suas relações sexuais e maritais; excedem-se no consumo de bebidas embriagantes com o peiote; são dados ao furto. Quanto aos tepehuanes, também os consideram violentos e agressivos e propensos a roubar. O autor, entretanto, nas poucas trocas de opinião com os huichóis e tepehuanes que vivem na zona cora, achou-os obedientes às normas das autoridades das jurisdições onde se radicam, amigáveis, trabalhadores que aproveitam bem a terra que cultivam, preocupados com a instrução escolar de seus filhos, solicitando professores, inclusive oferecendo-se para construir as escolas (pp. 80-82). Quanto aos mexicaneros, também chamados “mexicanos”, o autor não nos oferece outras referências que nos permitam sua identificação e caracterização.
No que tange à organização política, o autor faz uma apresentação dos cargos e atribuições das autoridades locais previstos pela constituição mexicana; dos cargos civis tradicionais indígenas; e dos cargos religiosos tradicionais (pp. 87-95). Percebe-se então que mesmo aí vigora o chamado “sistema de cargos” característico da Mesoamérica. Entretanto, o autor pouco diz sobre como os três tipos de autoridade — as constitucionais e as tradicionais civis e religiosas — se articulam na sua atuação.
No capítulo sobre ciclo de vida, demora-se mais na descrição dos ritos mortuários (pp. 134-137). No capítulo sobre religião, apresenta o mito da principal divindade, que seria a Estrela d’Alva (pp. 148-149), também identificada com São Miguel Arcanjo. Descreve ainda os vários ritos realizados pelos coras (pp. 150-174). Vários desses ritos acompanham o ciclo agrícola, principalmente as etapas do crescimento do milho. Dentre os outros, alguns são paralelos a festividades seculares ou religiosas que lhes chegaram com os colonizadores, como o Carnaval e a Semana Santa.
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Official Website of Navajo Nation:
http://www.navajo.org/
Comissión Nacional para el Desarrollo de los Pueblos Indígenas:
http://www.cdi.gob.mx
Oferece muitas informações sobre os índios do México, inclusive uma coleção de cerca de 40 pequenos livros em arquivos "pdf" referentes a distintas etnias.
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