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O Sudeste corresponde aos atuais estados norte-americanos de Carolina do Norte, Carolina do Sul, Georgia, Florida, Alabama, Mississipi, Lousiania, Tennessee, ou seja, situa-se entre o oceano Atlântico, o golfo do México e o rio Mississipi. Podemos tomar como limite setentrional desta área uma linha que ligue o cabo Hatteras (no litoral da Carolina do Norte) à confluência do rios Ohio e Mississipi. Há indígenas que continuam a morar nesta região. Mas grande parte deles foi transferida à força, pelo governo dos Estados Unidos, entre 1830 e 1850, para um território indígena do outro lado do rio Mississipi, que no início do século XX foi transformado no estado de Oklahoma. Durante o período colonial os indígenas se viram envolvidos por representantes de três nacionalidades européias: ingleses pelo leste (Carolina do Norte, do Sul, Georgia), espanhóis pelo sul (Florida) e franceses pelo oeste (Louisiana). Até que os norte-americanos, tendo-se tornado senhores de todo esse território, decidiram pela sua transferência. Em virtude dessa situação, os etnólogos que estudam os indígenas desta área não raro têm de considerar seu passado a leste do Mississipi e o seu presente a oeste.
Coube a Fred Eggan proferir na Universidade de Rochester, em abril de 1964, uma série de conferências, The Lewis Henry Morgan Lectures, que depois publicou em um volume. Numa dessas conferências, Fred Eggan (1966) discute as terminologias de parentesco de alguns povos indígenas do Sudeste que o homenageado, Lewis Morgan, examinou e divulgou no século XIX. Essas terminologias são do tipo crow. Vale notar que o povo crow, do qual este tipo tira o nome, não é do Sudeste, mas sim das Planícies, mais precisamente do estado de Montana. Note-se também que este tipo se encontra em muitos lugares; mesmo no Brasil as terminologias de parentesco dos canelas, do Maranhão, dos craôs, do Tocantins, dos tuparis e dos uáris, de Rondônia, assim se classificam.
A chave para identificar o tipo crow está na sucessão de mulheres em linha direta, a partir da tia paterna, todas chamadas pelo mesmo termo a esta aplicado. Ou melhor, a tia paterna, a filha dela, a filha desta última, e assim por diante, são todas chamadas pelo mesmo termo de parentesco. E os irmãos destas mulheres são todos chamados de pai, tal como o próprio pai do emissor (ego) desses termos. O antropólogo inglês Radcliffe-Brown tomava essa distribuição dos termos de parentesco como um exemplo do seu princípio da unidade do grupo de linhagem. Relacionava essa terminologia à presença de clãs ou linhagens matrilineares. Desse modo, nas sociedades que adotam essa terminologia, o emissor (ego) dos termos chamaria de pai a todos os membros masculinos da linhagem matrilinear de seu pai, e, pelo termo aplicado à tia paterna, a todas as mulheres da mesma linhagem. Fred Eggan, como aluno que foi de Radcliffe-Brown nos anos em que este lecionou em Chicago, relacionava a terminologia crow com as unidades matrilineares. Vale notar que os exemplos brasileiros dessa terminologia nem sempre vêm associados à presença de grupos de descendência matrilinear stricto sensu. O que importa é que essa correlação de Fred Eggan fazia parte de um argumento maior, o de que há relação entre a terminologia de parentesco e as demais instituições sociais, como admitia de certo modo Lewis Morgan no século XIX e Radcliffe-Brown no seguinte. Era uma posição contrária à de Alfred Kroeber, para quem as terminologias de parentesco eram fenômenos lingüísticos a serem analisados em termos de categorias psicológicas, sem correlações sociológicas (p. 15). Fred Eggan a combatia nesta conferência como o fez em outros trabalhos.
Ora, examinando as terminologias disponíveis dos povos do Sudeste — choctaw, chickasaw, creek, cherokee, yuchi — , Fred Eggan observou que os termos aplicados aos descendentes da irmã do pai, embora se distribuíssem conforme o tipo crow, não o faziam de modo completo, mostrando algumas diferenças de um povo para outro, conforme ele resume em um conjunto de pequenos gráficos (p. 21). Supondo que tais terminologias teriam no passado se ajustado mais estritamente ao tipo crow, Eggan saiu em busca de novos dados sobre o sistema choctaw, o qual Morgan tinha tomado como exemplo primário do tipo depois definido como crow. Conta como foi atrás dos choctaw que se tinham transferido para Oklahoma, na esperança de que tivessem guardado com mais inteireza o antigo sistema; como desistiu de chegar a eles devido a problemas na viagem; como descobriu um texto antigo, de um missionário que havia colaborado com Morgan, mas que se referia a um período anterior, e confirmava a feição crow do sistema. Compara as terminologias dos vários povos entre si e mostra como o afastamento do tipo crow é mais acentuado quanto mais o povo tenha estado exposto às agências aculturativas dos brancos: missões, escolas, disposições legais referentes à família. Refere-se enfim a um aluno seu, Alexander Spoehr, que realizou pesquisa com os seminoles, e ainda com os creeks, cherokees e choctaws de Oklahoma, trazendo mais dados que confirmavam suas suposições (pp. 41-44).
Vale notar que a terminologia de parentesco dos cherokees que permaneceram no Sudeste, na extremidade ocidental da Carolina do Norte, nos montes Apalaches, levantada por William Gilbert Jr. (1955, p. 290), na pesquisa que serviu de base a sua tese de doutorado em 1934, ajusta-se ainda mais ao tipo crow do que a resumida no gráfico de Fred Eggan. Ela também apóia a admissão de que este tipo decorre do princípio da unidade do grupo de linhagem, uma vez que os cherokees têm sete clãs matrilineares (p. 287).
Os natchez continuam a fascinar os etnólogos apesar de seu desaparecimento como sociedade organizada em 1731, quando, em decorrência de seu último conflito com os franceses, cerca de 400 foram vendidos como escravos em Santo Domingo, inclusive seu último soberano, e os restantes se dispersaram entre outros povos indígenas vizinhos (White, Murdock & Scaglion, 1971, p. 380). Mesmo os descendentes dos que assim escaparam não tiveram sossego, pois cerca de cem anos depois o governo dos Estados Unidos os obrigou a migrar, com outros povos do Sudeste que os tinham abrigado, para Oklahoma, do outro lado do Mississipi. Nos anos 1960 ainda havia uns poucos natchez no nordeste do estado de Oklahoma.
Os natchez viviam a leste do baixo curso do rio Mississipi, na altura da atual cidade de Natchez. Tinham pelo menos nove aldeias, ou mais propriamente vizinhanças, uma vez que suas casas estavam bem distantes umas das outras. O que mais parece ter impressionado os missionários, participantes de expedições e outros que sobre eles escreveram no século XVIII foi o seu sistema político-hieráquico-matrimonial.
Como ilustra o esquema, distribuiam-se em quatro camadas sociais: sóis (plural de sol), nobres, honoráveis e comuns (referidos pejorativamente pelos demais como fedorentos). Porém, as três camadas superiores constituíam uma unidade exogâmica cujos membros só podiam se casar com membros da camada dos comuns, estes constituintes da outra camada exogâmica. O próprio chefe supremo dos natchez, de poder absoluto, que era da camada dos sóis e ostentava o título de Grande Sol, tinha de se casar com mulheres comuns. A regra de descendência era matrilinear, de modo que homens e mulheres deviam, em princípio, pertencer à unidade exogâmica e à camada de sua mãe. Entretanto, as coisas se passavam de modo mais complexo. Assim, os homens sóis, que se casavam obrigatoriamente com mulheres comuns, não tinham seus filhos e filhas colocados na camada destas, e sim na dos nobres. O mesmo acontecia com os filhos e filhas dos homens nobres (que também se casavam com mulheres comuns), que iam para a camada dos honoráveis. Os filhos e filhas de homens honoráveis é que voltavam a pertencer à camada dos comuns.
Assim era a reconstituição de John Swanton (1911) com base na leitura dos cronistas franceses do século XVIII. Mas ela trazia uma dificuldade, que passou a ser conhecida como o “paradoxo natchez”. É que o funcionamento deste sistema tal como descrito conduziria à gradual extinção da camada dos comuns, ou seja, tornaria inviável o próprio sistema. Como as filhas das mulheres comuns casadas com homens sóis e homens nobres não eram colocadas na camada dos comuns (como a regra matrilinear pura e simples faria esperar), mas sim na dos nobres e honorários respectivamente, e a partir daí as mulheres delas descendentes produziriam filhas nobres e honorárias, a longo prazo a camada e unidade exogâmica dos comuns iria sendo desfalcada, até desaparecer. Outros fatores contribuíam para a redução da camada dos comuns, como a poliginia dos sóis e dos nobres, a promoção para uma camada acima concedida àqueles que se destacassem em feitos guerreiros e outras contribuições prestigiosas, como o sacrifício de um filho ou filha de tenra idade no funeral do Grande Sol para acompanhá-lo ao outro mundo.
Vários pesquisadores escreveram sobre problema com argumentos e tabelas para mostrar a inviabilidade do sistema ou soluções para superá-la. Até mesmo um livro de matemática, Introduction to Difference Equations, de S. Goldberg (New York, 1958, pp. 239-241) usou o caso natchez como exemplo ilustrativo. Quem nos lembra disso é J.L. Fischer (1964, p. 55), um dos autores que se ocupou na discussão do problema. Outro desses autores é Jeffrey Brain (1971). Além de outros que os precederam.
O artigo de Douglas White, George Murdock & Richard Scaglion (1971), que aproveita criticamente as contribuições dos autores anteriores, chega a conclusões plausíveis. Na verdade, o problema decorre das lacunas deixadas pelos cronistas, que estes pesquisadores tentam resolver com uma leitura mais atenta de seus textos e comparação com as instituições de povos indígenas vizinhos. Os três co-autores guiam sua argumentação por meio de três proposições.
1) Os sóis não constituiriam uma classe (ou camada), mas sim uma família real. Apoiados numa interpretação mais atenta de trechos dos cronistas, os co-autores admitem que os colaterais matrilineares do Grande Sol deixavam de ser sóis após a terceira geração, mantendo-se, entretanto, na camada dos nobres. Mas o mesmo ocorreria com as linhagens nobres, cujos membros (apenas os colaterais?), após três gerações, passavam a ser comuns (pp. 373-374).
2) A descendência para os filhos e filhas dos homens nobres era assimétrica. Ou seja, os filhos seriam honoráveis e as filhas, comuns. Aqui os co-autores se inspiram na etnografia de um povo vizinho, os caddos (pp. 374-375).
3) Não havia mulheres honorárias por nascimento. Esta proposição, que apóia a anterior, é suportada pela ausência de referências pessoais dos cronistas a qualquer mulher honorária, a não ser que cônjuge de homem honorário (pp. 375-376).
Em suma, os três co-autores chegam à conclusão de que o funcionamento do sistema social dos natchez não conduzia à extinção dos comuns; concluem também que eles só tinham duas classes (ou camadas) sociais: a dos nobres e a dos comuns. Dentro da classe dos nobres estavam os membros da família real. Já os honoráveis constituíam como que uma ordem, dentro da camada dos comuns, cujos membros estariam dispensados de se casarem com os sóis e desta maneira isentos de serem sacrificados quando de seus funerais (pp. 380-381). Vale notar que essa isenção dos honorários como que corresponde ao privilégio dos sóis de não sofrerem morte violenta.
Por conseguinte, o esquema gráfico anteriormente apresentado poderia ser substituído pelo que segue:
Quando do contato com os conquistadores e colonizadores franceses, sobretudo no século XVII e primeira metade do XVIII, os natchez viviam em pelo menos nove aldeias a leste do curso do Mississipi, ao longo do ribeirão St. Catherine (na altura da atual cidade de Natchez). O explorador espanhol Hernando de Soto, em 1542, ao navegar o Mississipi, teria enviado mensagem ao Grande Sol e dele recebido resposta. Os natchez seriam um exemplo histórico da fase arqueológica Plaquemine, a última do período Temple Mound II, que se iniciou por volta de 1200 A.D. Esse período foi precedido pelo Temple Mound I, que começou no baixo Mississipi mais ou menos em 700 A.D. Como o nome desses períodos indica, uma das características de sua tradição era a construção de terraços encimados por templos. E os cronistas relatam que não somente o templo natchez era sobre um terraço, como também cada Grande Sol que ascendia ao poder fazia para si uma grande casa sobre um terraço.
A mãe do Grande Sol tinha o título de Mulher Branca. Tal como Grande Sol, o título passava por linha materna. Um irmão do Grande Sol tinha o título de Serpente Tatuada e era o chefe de guerra. Outros irmãos eram chefes de guerra de outras aldeias ou ocupavam cargos como o de mestre de cerimônias do templo. Os natchez tiveram três conflitos armados com os franceses, mas sempre divididos: em 1716 o Grande Sol entregou dois chefes de guerra aos franceses para serem executados e em 1724 ele próprio mandou executar mais um. Em 1731, o próprio sucessor desse Grande Sol foi vendido como escravo pelos franceses nas Antilhas.
Os Natchez também foram tema e título de um romance escrito por François-René de Chateaubriand (1989) na virada do século XVIII para o XIX. Esse autor marca o início do romantismo literário na França. A obra se divide em duas partes. Na primeira, em que participam seres do mundo sobrenatural cristão, malévolos e benévolos, o autor dá mostra de almejar o estabelecimento de boas relações entre franceses e índios, respeitando os costumes destes últimos, mas sob a égide do cristianismo. Na segunda, que focaliza a ação dos personagens neste mundo, os personagens mostram uma extrema mobilidade geográfica, a ponto de os nativos da metade oriental da América do Norte, desde os esquimós até os índios mexicanos, conseguirem fazer uma reunião em uma suposta elevação sagrada ao norte do lago Superior. Tanto os natchez como os franceses se mostram divididos, com heróis e vilões de ambos os lados. Apesar de sua breve viagem aos Estados Unidos, certamente Chateaubriand não conheceu pessoalmente os natchez, dispersos e dizimados havia mais de meio século. Deve ter criado seu cenário e personagens a partir da leitura dos cronistas, ainda que use suas informações do modo o mais livre. Num dos episódios do romance, o velho natchez Chactas, depois de passar anos nas galés em Marselha, condenado por acusação injusta, é libertado, e visita a Paris do tempo de Luís XIV, e, num daqueles salões que a elite francesa costumava freqüentar, conhece artistas, literatos, militares, engenheiros, pensadores católicos da época. Quis mostrar o autor como era esplêndida a civilização francesa, apesar de suas mazelas, como a revogação do edito de Nantes, também por ele aludido. Chactas tinha contribuído, como o próprio Grande Sol, para modificar certos costumes, não explicitados, dos natchez. Possivelmente eram os sacrifícios humanos e, quiçá, o comportamento mais discricionário do soberano. Nem mesmo a hierarquia de camadas é aludida no romance. A avaliação das mesmas por Chateaubriand possivelmente dependia de suas idéias políticas na França. Tão ou mais discricionário que o Grande Sol dos natchez era Luís XIV, coincidentemente cognominado de Rei Sol.
Se alguns dos problemas antropológicos desta área tratados por pesquisadores modernos referem-se a situações do passado, como a hierarquia natchez ou a mudança da terminologia de parentesco dos choctaw, os indígenas que nela permaneceram após as grandes transferências para Oklahoma na primeira metade do século XIX hoje inspiram novas questões para exame.
Harriet Kupferer (1970) dá uma notícia da situação, nos anos 1960, daquela parte dos cherokees que permaneceu no Sudeste. A intenção de seu artigo é mostrar que esses cherokees como que ficam à margem de toda a movimentação política dos índios dos Estados Unidos nessa época, que Nancy Lurie, uma das organizadoras do volume que contém o artigo, chama de renascença indígena.
Esse “bando” cherokee ocupa uma reserva de 56.572 acres (cerca de 22.630 hectares), no extremo ocidental da Carolina do Norte, entre Asheville, desse estado, e Knoxville, do vizinho Tennessee. Ela se limita com o Parque Nacional Great Smoky Mountain, e 80% de sua superfície é coberta de árvores, passíveis de extração de madeira. Além da área principal da reserva, há uma outra, de 2.249 acres (cerca de 900 hectares), e um conjunto de vários lotes, que somam 5.000 acres (cerca de 2.000 hectares). A área principal tem cinco vilas. Em 1960, esse “bando” cherokee tinha 4.494 membros. Tinham sido 2.540 em 1924. A autora apresenta uma tabela da distribuição deste último número segundo a proporção de “sangue índio” comparada à dos alunos cherokees matriculados nas escolas em 1956-1957 (pp. 145-146). Isso mostra como era importante, e quiçá ainda seja, no indigenismo norte-americano a caracterização biológica da população indígena.
O “bando” era governado por um chefe e um vice-chefe eleitos por quatro anos. Os conselho se compunha de dois membros para cada vila, com mandato de dois anos, e arbitrava disputas de terras, a operação das empresas tribais, regulamentava arrendamentos e o desembolso de fundos tribais para membros necessitados. Era uma organização que atendia os ditames e necessidades administrativas do governo norte-americano (p. 147).
Os rendimentos dos cherokees provinham do turismo, três indústrias (selas e mocassins; acolchoados e acessórios almofadados para crianças; e acessórios para cabelos femininos), trabalho assalariado variado e extração de madeira. A agricultura era insignificante, destacando-se a plantação de tabaco. Havia 33 motéis, 39 lojas de artesanato, 9 mercearias com suprimentos para piqueniques e 9 estabelecimentos mistos (artesanato, restaurante e mercearia), uns de empresários brancos e outros de indígenas. Todos esses negócios pagavam uma taxa de 3% para o tesouro tribal. Esse fundos permitiam a assistência a indivíduos necessitados e o incentivo ao estabelecimento de indústrias, participando dos investimentos (pp. 148-149).
Os cherokee se distinguiam entre os “full bloods”, aqueles que se parecem com índios, e os “white indians”, os que têm menos de um quarto de ascendentes indígenas e se parecem com brancos. Alguns dos “white indians” eram zombeteiramente chamados de “five dollar indians”, numa alusão a seu arrolamento no “bando”, em 1924, por suborno. Mas havia uma outra distinção baseada na aculturação que os distribuía, de modo não coincidente com a anterior, entre conservadores e modernos. Os conservadores continuavam a falar a língua cherokee, recorriam, ainda que não exclusivamente, aos curadores e à medicina nativa. Além disso, pautavam seu comportamento pela “ética da harmonia”, isto é, tentavam manter relações harmônicas com os outros, sem ofendê-los, para isso evitando a agressão aberta e as situações que podem produzi-la; e respondendo a suas demandas, desprezando a avareza e estimando a generosidade. Os modernos, por sua vez, podiam ou não falar e entender a língua cherokee, mas raramente a usavam; não recorriam aos especialistas da medicina nativa, mas alguns se auto-medicavam com ervas. Já não aderiam à “ética da harmonia”, orientando-se mais pela “ética protestante”. Eram os proprietários e gerentes de negócios, os poucos fazendeiros, os trabalhadores especializados ou semi-especializados. Estimavam a independência e o individualismo, ainda que alguns recorressem aos auxílios federais, em conseqüência da falta de instrução, doenças ou outros infortúnios. Entre eles se esboçava a formação de uma classe média (pp. 149-151).
A partir daí a autora apresenta suas razões para negar que os cherokee da Carolina do Norte participassem do que Nancy Lurie chamou de renascença indígena. Uma delas era grande distância entre sua reserva e as outras mais próximas. Os outros índios da Carolina do Norte são os lumbees e os pembrokes, de ascendentes brancos, negros e índios, e que uma vez invocaram identificação com os cherokees, mas que estes negavam. Os mais alheios aos movimentos indígenas eram os conservadores, que moravam mais afastados, nas montanhas, e com pouco acesso aos meios de informação. Entre os modernos, os que mostravam mais interesse eram os funcionários da agência indígena e os professores. Outra razão para o seu desinteresse era a ausência de problemas relativos a sua reserva. Os vizinhos brancos não cobiçavam suas terras. Pelo contrário, admitiam que a reserva e o parque nacional eram propícios a seus negócios. O terceiro motivo era que o desempenho financeiro da reserva era superior ao das comunidades brancas vizinhas (p. 152-158).
Num interessante artigo, Lisa Aldred (1993), a propósito de dois objetivos que então almejavam os índios waccamaw, discute a questão da interferência externa na elaboração da identidade e imagem de um grupo indígena. Vivem em comunidades no Green Swamp (Brejo Verde), de terras pouco adequadas à agricultura, na parte meridional da faixa marítima do estado da Carolina do Norte. Alguns trabalham em moinhos, numa zona de baixa oferta de empregos. Por isso, projetaram a construção de um museu cultural vivo que lhes criasse empregos e ainda permitisse a venda de artefatos. Na elaboração de seu projeto tiveram de contrapor a própria imagem que fazem de si àquela idéia de índio veiculada pelas agências turísticas comerciais. Também discordaram dos alunos de arquitetura com quem discutiram o projeto de seu museu. Daí a autora ter tomado para título do seu artigo a reação de um waccamaw: “No cigar store Indians for us” (p. 213).
O outro objetivo, bem mais importante, era o seu reconhecimento pelo governo como tribo. Este reconhecimento era um pré-requisito para terem acesso à proteção, serviços e benefícios do governo federal norte-americano. Para obtê-lo é preciso satisfazer aos “Procedures for Establishing That An American Indian Group Exists As An Indian Tribe” (Procedimentos para estabelecer que um grupo indígena americano existe como uma tribo indígena) do “Code of Federal Regulations” (CFR: Código de Regulamentos Federais). Os tribunais federais consideram as tribos como “nações domésticas dependentes”, poderes estrangeiros soberanos incluídos nos Estados Unidos desde que estes se formaram. Reconhecem a retenção de alguns aspectos da soberania tribal original, permitindo às tribos um certo grau de poder legislativo, judiciário e de polícia sobre seus membros. Concedem-lhes benefícios como isenção de taxas de propriedade, direitos sobre terra, água, caça e pesca, e ainda a proteção do governo federal conforme os precedentes legais. O reconhecimento federal também é importante para a tribo denunciar violação de tratados ou reclamar terras por via judicial. Um documento básico nesses processos é o Nonintercourse Act, de 1790, que estabelecia que nenhuma compra ou cessão de terras de qualquer nação indígena poderia ser realizada, a não ser por tratado ou consentimento do governo federal. Entre os critérios estabelecidos em 1982 para reconhecimento federal como tribo se contam os seguintes:
Esse trecho do artigo de Lisa Aldred (pp. 214-216) é bastante instrutivo para os que desconhecemos a legislação norte-americana referente a indígenas. Curiosamente, o termo “tribo”, que hoje em dia está marginalizado nos textos antropológicos, tem lugar destacado na nomenclatura judicial. Mas o que a autora destaca é que esses critérios deixam os índios ao sabor da imagem que fazem os brancos de seu modo de vida e de suas instituições. O próprio termo “tribo”, ainda quando usado segundo seu significado antropológico tradicional, não se aplica a todas as formas indígenas de organização. Além disso, a exigência de uma continuidade histórica ignora mudanças, fusões, divisões de grupos indígenas, e afiliações sobrepostas, que ocorrem desde os tempos pré-históricos. O mesmo acontece com a associação do grupo a um local específico, tendo em vista os deslocamentos provocados pela própria expansão colonial. O critério da autoridade política também conflita com aquelas formas bastante flexíveis de distribuição do poder (pp. 216-218). Em suma, a situação dos waccamaw não é muito diferente daquela de certos grupos nordestinos e sudestinos brasileiros que aspiram ter sua identidade indígena reconhecida.
Além disso, a legislação dá prioridade à opinião de antropólogos, historiadores e outros scholars no que tange ao conhecimento do passado dos waccamaw, como se fossem portadores de um conhecimento sem lacunas ou falhas. Para começar, mal se sabe que língua os waccamaw falavam, se da família sioux (como lembra o nome de sua associação, Waccamaw-Siouan Development Association) ou da algonquina. Também não há certeza se os índios a que documentos escritos se referem com o nome de waccamaw ou assemelhados são realmente os ascendentes dos waccamaw de hoje. Também estão sujeitos a dúvidas os deslocamentos que fizeram no passado. Em suma, as reconstituições elaboradas pelos intelectuais brancos não são mais seguras que o passado auto-atribuído dos waccamaw. Se aqueles se aplicam mais na busca de critérios de reconhecimento nos séculos XVII e XVIII, estes dão mais valor ao passado pré-europeu e ao período de lutas pelos direitos civis do século XX (p. 221).
Na parte final do artigo a autora trata da hegemonia do discurso antropológico e das soluções propostas para evitá-la, corrigi-la ou atenuá-la, deixando-nos na dúvida se os waccamaw apenas serviram de mote para discutir esta questão (pp. 226-237).
Um texto de Ann Fischer (1970) retrata a situação dos houmas na época em que a aprovação pelo Congresso do Civil Rights Bill abalava a segregação racial no sul dos Estados Unidos. Vivem dispersos na orla do golfo do México entre o rio Mississipi e o Atchafalaya e nos pequenos rios (chamados regionalmente de “bayou”) que desembocam nesse trecho. Ocupam-se da pesca do camarão e da captura, com armadilhas, do rato almiscarado. Seriam originários da banda oriental do Mississipi e falariam uma língua muskogee. Mas hoje falam francês. Numa área com população negra e descendentes de franceses, os houmas, oriundos de uniões interétnicas diversas, tinham então dificuldade de convencer os funcionários do governo de sua identidade indígena, que, por outro lado, assim reconheceram um certo número deles que vive agrupado num mesmo local com o nome de chitimachas. Os choctaw da reserva de Philadelphia, no estado do Mississipi, parecem admitir que os houmas partilham da sua mesma identidade. Mais que pela aparência física, os houmas são identificados por serem portadores de uns poucos sobrenomes, alguns dos quais lhes são exclusivos (pp. 212-216).
Os houmas consideram-se descendentes de um mesmo casal, cuja exata afiliação étnica está em discussão, e herdeiros das terras que possuíam (pp. 217-218). Entretanto, foram perdendo essas terras. Consideradas como públicas, foram vendidas a brancos desde 1895. As empresas de captura de animais de peles comerciáveis foram obtendo permissões para atuar nelas. Aos houmas restaram as áreas mais difíceis para estas capturas. Desde a Segunda Guerra Mundial, esse tipo de atividade decaiu. Além disso, ratões do banhado escapados de uma fazenda que tentava sua criação se expandiram pelos pântanos e estes animais (que só servem para a fabricação de ração para cães) caíam nas armadilhas destinadas aos ratos almiscarados. Mais recentemente, a extração de petróleo e gás poluiu os bancos de ostras. A pesca esportiva, que às vezes toma um caráter indevidamente comercial, se faz nos locais em que os houmas procuram camarões (pp. 219-221).
Nos tempos da segregação, aos houmas não era permitido cursar em escolas de brancos. Tal medida estaria apoiada no caso de um deles, que, em 1918, ao recorrer à justiça para matricular seus filhos em escolas de brancos, admitira que um de seus avós fora escravo. Negando-se a se matricularem em escolas destinadas a negros, ficaram sem acesso à instrução até que alguns missionários tomaram a iniciativa de abrir escolas para eles. Porém, uma vez terminados os oito anos de escola elementar, surgiu o problema de fazer ingressar os jovens no segundo grau, até que em 1957 começou a ser instalado um colégio para eles. A freqüência às escolas é irregular, afetada pelas atividades a que os houmas se dedicam. Por exemplo, ela cai na estação da pesca do camarão (pp. 221-224). O direito ao ingresso nos colégios de brancos para cursar o segundo grau, pelo qual lutavam, foi sendo obtido no tribunal gradativamente até que em 1964, com ajuda do Civil Rights Bill, a resistência a seu acesso foi totalmente quebrada (pp. 229-232).
Os casamentos interétnicos têm como implicação o afastamento do casal da área onde vivem os houmas. O casamento com negros leva à identificação dos filhos com negros. O casamento de moças houmas com rapazes brancos faz os filhos passarem a brancos, por já não serem portadores de sobrenomes houmas. Os rapazes houmas que, ao fazerem o serviço militar em outros lugares, se casam com moças brancas, não voltam mais à área de origem. Os casamentos dentro da comunidade houma se fazem entre aqueles que não têm intenção ou perspectiva de migrar. Uma vez que o homem houma consegue que seu filho mais velho esteja apto a ajudá-lo nas suas atividades, não oferece resistência à retirada dos demais (pp. 224-226).
No tempo da redação desse artigo de Ann Fischer, os esforços pelo reconhecimento do direito à terra ainda não tinham surtido efeito (pp. 232-233).
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