Capítulo 5

Grande Bacia

Julio Cezar Melatti

Línguas e População
da Grande Bacia
Apresentação da
América do Norte
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América do Norte
Mapa da
Grande Bacia
Mapa das áreas da
América do Norte
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“Página do Melatti”

A Grande Bacia é uma região semi-árida dos Estados Unidos, de solo nu ou coberto por estepe, e cujos rios não correm para fora, mas desembocam em lagos ou pântanos salgados. Ocupa quase inteiramente o estado de Nevada e parte dos estados circundantes. Para leste chega até os montes Wasatch, no estado de Utah, e inclui o Grande Lago Salgado. Para oeste vai até a serra Nevada, no estado da Califórnia. Na direção norte inclui parte dos estados de Oregon e Idaho, até as vizinhanças do rio Snake. Para o sul, chega próximo do rio Colorado, incluindo o vale da Morte e o deserto de Mojave, no estado da Califórnia. A Bacia é cortada por numerosas serras paralelas que se dispõem no sentido norte-sul. Para além desse bolsão fluvialmente fechado, a região também inclui as montanhas que ficam ao norte do rio Snake em Idaho e no Oregon oriental e também as montanhas cortadas pelo rio Colorado e seus tributários nos estados de Utah e Colorado.

O antigo modo de viver na Grande Bacia

O capítulo 6 do livro Theory of Culture Change, de Julian Steward (1976) dá uma idéia geral do modo de viver dos índios dessa região, antes do contato com os brancos, usando como exemplo os utes, os shoshones ocidentais e os paiutes setentrionais. A intenção de Steward é relacionar o nível de integração social os indígenas desta região com seu modo de adaptar-se ao meio ambiente.

Com um índice pluviométrico muito baixo, a umidade da região só é ligeiramente maior nos pés da serras de suas bordas a leste e a oeste. Os índios tiravam sua subsistência e a matéria prima de seus utensílios fazendo a coleta de vegetais silvestres e a caça. Além de consumirem a carne de antílopes e coelhos, incluíam com freqüência na sua alimentação ratos, gafanhotos, formigas, ovos de formigas, larvas de moscas, cobras, lagartos e algum peixe. Dos vegetais, além de sementes, folhas e raízes, estas onde havia mais umidade, o alimento mais valioso vinha das diferentes espécies de pinhões. Do junípero aproveitavam a madeira.

Como as chuvas não se distribuíam de modo uniforme por toda a região e sua quantidade oscilava de ano para ano, os vegetais e animais que os indígenas procuravam também variavam em quantidade e na sua distribuição espacial. O modo mais adequado de explorar esses recursos dispersos e variáveis era a distribuição em grupos de umas poucas famílias a elementares.

Uma maior aproximação entre esses pequenos grupos de famílias, mas ainda mantendo razoável distância entre si, se dava em outubro e novembro para a coleta dos pinhões, cujos cones tinham sido abertos pelas primeiras geadas, estocando-os para o inverno.

Caçadas coletivas só eram realizadas quando havia número suficiente de animais. Para os coelhos, usavam várias redes, como a de tênis, mas com centenas de metros, fazendo com elas um enorme semi-círculo. Homens, mulheres, crianças e cães perseguiam os coelhos, dirigindo-os para as redes, de modo que aqueles que não eram abatidos com bastões ou tiros nelas se embaraçavam. Homens experimentados dirigiam as operações da caçadas de coelhos. Além do consumo da carne, suas peles eram cortadas em tiras, torcidas e tecidas como roupas e cobertas.

Já a caçada coletiva de antílopes era conduzida por xamãs que tinham o poder de encantá-los. Faziam um curral de cuja entrada saíam dois tapumes levantados com pilhas de gravetos e de pedras que iam se afastando um do outro, prolongando-se por uns 800 metros. Os antílopes eram perseguidos por uma linha de caçadores que fechavam a largura do vale e os dirigiam para os tapumes, que se afunilavam na direção do curral. No curral ficava o xamã, que já teria antes da caçada se apoderado das almas dos antílopes, assim os atraindo para ali. Tratando-se de animais de porte maior, uma caçada dessas só podia ser repetida no mesmo local muitos anos depois, quando viesse a se formar outra manada.

A abundância de alimentos após uma caçada ou coleta bem sucedida podia dar lugar a danças e jogos de aposta, como dados, corrida, hóquei, hoop-and-pole game, hand-game.

Os laços de casamento podiam criar vínculos entre famílias por uma extensa área, mas o modo disperso de conseguir alimento e a efemeridade das concentrações para atividades coletivas, como caçadas, ou acampamentos de inverno, que não tinham a mesma composição a cada repetição dessa estação, operavam no sentido de obstar unidades políticas maiores, como aldeias.

A adoção do cavalo no século XIX e o aparecimento de bandos predatórios não chegaram a afetar todos os indígenas da região antes de 1870, quando vieram a ser submetidos ao poder das forças norte-americanas.

Depois da conquista norte-americana

Um xamã washo inovador. A história de um xamã washo, Henry Rupert, apresentada e comentada por Don Handelman (1967), constitui um bom exemplo das mudanças sofridas pelos povos desta área a partir de sua ocupação pelos brancos. Henry Rupert nasceu em 1885, em Genoa, Nevada, de pai e mãe washo. Seu pai abandonou a família quando ele tinha três anos de idade e ele só irá vê-lo outra vez, trabalhando num restaurante chinês em Carson City, dezessete anos depois. Sua mãe trabalhava como doméstica em um rancho em Genoa. O marido de sua irmã mais velha era também empregado de um rancho; além disso exercia o xamanismo e atuava nas caçadas anuais de antílopes realizadas pelos washos. O marido da irmã de sua mãe, já sexagenário quando ele nasceu, igualmente atuava como xamã. Henry Rupert convivia, portanto, com os dois xamãs, tanto nos invernos em Genoa como nos verões nas margens do lago Tahoe (cortado pela fronteira California-Nevada). Já nos seus primeiros anos tinha sonhos que denunciavam seu potencial para atividades xamânicas e místicas.

Aos oito anos de idade, Henry Rupert foi para a Escola Indígena Stewart, então sob a supervisão e controle das forças armadas norte-americanas, destinada a crianças indígenas da Grande Bacia, que aí deviam obrigatoriamente cursar até a oitava série. Nos três primeiros anos a criança não podia tirar férias nas casas dos pais. A disciplina era severa, mantida a chibatadas e detenção em celas. Era um centro de aculturação forçada, com batismo à revelia e exposição a missionários de diversas religiões. Também oferecia treinamento em alguma atividade profissional e Henry Rupert aprendeu composição tipográfica, que lhe possibilitou, após sair da escola, conseguir um emprego no jornal Reno Evening Gazette. E por dez anos morou na cidade de Reno.

Assim, Henry Rupert vivia entre dois mundos e suas próprias predisposições xamânicas passaram a receber influências estranhas à tradição washo. Foi o caso do hipnotismo, de que assistiu a uma demonstração num teatro de Reno. Ele resolveu dominar esta técnica, comprando até um livro para aprendê-la. E conseguiu, fazendo ele próprio suas apresentações mensais. Mas ao mesmo tempo continuava a receber instrução conforme as tradições washo. Aconselhado pelo xamã marido de sua tia materna, ele tomou como orientador um outro renomado xamã para ajudá-lo a treinar e controlar seus poderes.

Desse modo ele fez sua primeira cura em 1907, conforme técnicas tradicionais washo, que requerem a realização de quatro sessões, as três primeiras do anoitecer até meia-noite e a última a noite inteira, com o uso de tabaco, água, chocalho, assobio e penas de águia. Também sementes verdes e amarelas (que simbolizam alimento) e conchas de haliote (que simbolizam dinheiro) espalhadas ao redor do corpo do paciente. O assobio serve para atrair o objeto ou germe do mal do corpo do paciente para o do xamã, onde pode ser controlado. A água serve para lavagem e aspersões sobre a parafernália e o corpo do paciente. Visões durante os trabalhos permitem ao xamã conhecer a causa do mal e fazer prognósticos.

Mas logo Henry Rupert conseguiu um segundo espírito auxiliar, que era um jovem hindu. Esse espírito teria origem no esqueleto de um hindu do laboratório de um colégio de Carson City que ele costumava visitar. Este espírito entrou em disputa pela primazia com as duas mulheres mitológicas que introduziram o poder de cura entre os washos, até que o xamã conseguiu conciliá-los. O espírito hindu reforçou os princípios dos três xamãs washo que tinham orientado a formação de Rupert: ser honesto, discreto, fiel, delicado e não fazer mal. Também inspirou-lhe novas técnicas de cura.

Em 1910 ele se casou com uma mulher paiute do norte, antiga colega da escola Stewart. O pai dela, trabalhador de rancho e confeccionador de laços de couro cru, tinha sido um devoto de Jack Wilson, o apóstolo da Dança dos Fantasmas (Ghost Dance) de 1890. Era um tempo em que casamentos intertribais eram vistos de modo desfavorável pelos xamãs e outros conservadores washo. Ele voltou a trabalhar na Reno Evening Gazette, no linotipo; mas suspeitando que a fumaça do chumbo o estava envenenando, retornou para sua família em Genoa, onde trabalhou num rancho até 1924. Nesse ano seus filhos estavam na mesma escola Stewart, mas agora administrada pelo Bureau of Indian Affairs, e ele se retirou com a mulher para Carson Colony, destinada aos washos desde 1916, mas ocupada apenas por famílias paiutes do norte e shoshones (a maior comunidade washo então era Dressville). Sua mulher morreu de tuberculose. Ele plantava morangos e criava perus. Foi um tempo de introspoecção, auto-exame e de elaboração de suas idéias relativas ao xamanismo e ao sobrenatural. Sua fama como curador cresceu, era chamado a atender não somente índios de outras etnias, mas também não índios. Assim, em 1942, ele deixou seu emprego de bedel e vigia da Agência Indígena de Stewart, retirando-se para Carson Colony para dedicar-se exclusivamente à cura. E aí continuava em 1964, quando Handelman fez sua pesquisa.

Gênero e status entre os paiutes meridionais. Um artigo de Martha Knack (1989) discute o status das mulheres paiutes meridionais fazendo uso de um indicador de quatro variáveis proposto por Peggy Sanday: 1) a capacidade de alocar bens além da unidade doméstica, sobretudo produtos do próprio trabalho feminino; 2) demanda pelos produtos do trabalho feminino no mercado interno e externo; 3) possibilidade de expressar opiniões em procedimentos regulares oficiais que podem influenciar a política para além da unidade doméstica; e 4) possibilidade de as mulheres se agruparem de algum modo regular para proteger e representar seus interesses (p. 235).

Na verdade, fiz a leitura deste trabalho menos interessado na discussão da adequabilidade do indicador ou no teste das hipóteses levantadas do que nos dados referentes ao estado atual dos paiutes meridionais decorrente de sua inserção na sociedade mais ampla e dominante. A pesquisa foi desenvolvida nas cidades do sudoeste do estado de Utah, entre as quais se inclui Cedar City, incidindo sobre o período 1973-1974, ou seja, posterior ao término (“termination”) do reconhecimento federal como tribo em 1954, e sobre o período de 1981-1986, ou seja, posterior à reaceitação sob o status de responsabilidade federal em 1980. Portanto nos leva a considerar dois momentos importantes da história da política indigenista norte-americana. Mas seus dados são sobretudo provenientes de uma amostra de 43 grupos domésticos do período de 1973-1974. Os dados mostram que apenas 15 grupos domésticos da amostra eram mantidos pela contribuição do trabalho assalariado feminino, sendo 2 inteiramente, 10 combinado com o trabalho masculino e 3 pelas diferentes formas de seguridade social. Entretanto, 24% dos redimentos da comunidade paiute meridional naquele período não vinha de salários, mas de auxílios relacionados ao bem estar social. Destes, 75% eram obtidos devido à presença de mulheres com crianças, o que tornava sua contribuição para a manutenção dos grupos domésticos bastante significativa. As mulheres tinham acesso a empregos menos bem remunerados, porém em média por períodos mais longos. Os homens, embora com salários melhores e com um espectro maior de serviços, trabalhavam menos meses por ano. Além disso, as mulheres decidiam como alocar os rendimentos monetários que obtinham. Havia demanda para o trabalho feminino não somente fora, mas dentro da comunidade, contando-se entre estes babysitting, empréstimo de equipamento doméstico, cozinhar para as reuniões da comunidade e artesanato (em couro, contas e acabamento de vestes de dança). Satisfaziam assim os dois primeiros indicadores de Sanday (pp. 238-41).

Embora seja um tanto difícil acompanhar a ocupação de cargos pelas mulheres na organização tribal do primeiro (posterior à “termination”) e segundo período (depois do reconhecimento federal da tribo), por exigir um certa familiaridade com a moderna legislação indigenista norte-americana, em que termos como “tribo” e “bando” deixam de ser conceitos antropológicos (aliás antiquados) para terem um estatuto legal, a autora deixa claro que a participação feminina aumentou tanto a nível de bando quanto de tribo. Mais ainda, a partir de 1982 passou-se a realizar anualmente a Reunião de Mulheres Paiutes Meridionais (Southern Paiute Women’s Conference), com o propósito de prover as mulheres com informações, principalmente a respeito do processo político tribal, e de produzir solidariedade entre elas. E a partir de 1983 Conselhos de Mulheres passaram a ser eleitos para cada bando. Os dados oferecidos mostram que os dois últimos indicadores de Sanday também estão sendo satisfeitos (pp. 241-4).

A autora faz alusão a outros grupos paiutes meridionais, possivelmente reconhecidos oficialmente como outras tantas tribos legais (Moapa, Las Vegas, Kaibab), e a um não reconhecido (San Juan). Também ao conselho tribal em Uintah-Ouray. E ao papel ativo das mulheres no movimento tradicionalista entre os shoshones ocidentais. Minha plena compreensão destas alusões fica a depender de mais conhecimento da legislação norte-americana (p. 244).

Razões práticas de uma pesquisa. Um artigo de quatro autores (Stoffle, Halmo, Evans & Olmsted, 1990) discute a aplicação de um indicador, Index of Cultural Significance (ICS), e a elaboração de outros indicadores relacionados, usando dados de shoshones ocidentais, paiutes meridionais e paiutes do Owens Valley, localizados na região em que se aproximam as fronteiras de quatro estados norte-americanos: Nevada, Utah, Arizona e Califórnia. Não interessa aqui resumir a discussão desses índices, já bastante condensada no artigo, que tem poucas páginas. O que vale destacar são as razões práticas desta pesquisa, que está relacionada com a atual situação dos índios perante decisões estatais que afetam sua região. Yucca Mountain, em que os pesquisadores traçaram o retângulo que delimita a amostra dos vegetais, no sul do estado de Nevada, é o local proposto para despejar o lixo altamente radioativo do país. Por conseguinte, a elaboração de um indicador que considerasse a importância cultural de cada vegetal segundo as avaliações dos cientistas, mas sobretudo dos membros dos grupos étnicos envolvidos, ajudaria o Departamento de Energia a mitigar os efeitos adversos deste depósito sobre tais plantas. Os autores distinguem nessas considerações uma triagem igualitária (em que todas as plantas usadas pelos índios são igualmente significativas e valorizadas) de uma triagem ponderada (em que as plantas têm diferentes valores segundo o número de usos a que servem, o número de suas partes utilizadas, o número de grupos étnicos que as usam, se são presentemente usadas. Esse procedimento permitiria estabelecer uma ordem de prioridade entre as espécies individuais e as áreas em que crescem (pp. 417 e 421).

Um dos mapas presentes no artigo (fig. 1, p. 418) indica 20 locais onde estão reservas ou se adensa a população indígena, o que permite distinguir a distribuição atual da que geralmente mostram os compêndios, quase sempre a retratar a situação no momento do contato com os brancos.

Bibliografia

FOWLER, Catherine S. & LELAND, Joy. 1967. “Some northern Paiute native categories”. Ethnology 6 (4): 381-404.

HANDELMAN, Don. 1967. “The development of a Washo shaman”. Ethnology 6 (4): 444-464.

KNACK, Martha C. 1989. “Contemporary southern Paiute women and the measurement of women’s economic and political status”. Ethnology 28 (3): 233-248.

PRICE, John. 1975. “Sharing: The integration of intimate economies”. Anthropologica 17 (1): 3-27.

STEWARD, Julian, H. 1976 [1955]. Theory of Culture Change: The Methodology of Linear Evolution. Urbana, Chicago, London: University of Illinois Press.

STOFFLE, Richard W.; HALMO, David B.; EVANS, Michael J. & OLMSTED, John E. 1990. Calculating the cultural significance of American Indian plants: Paiute and Shoshone ethnobotany at Yucca Mountain, Nevada”. American Anthropologist 92 (2): 416-432.

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