Línguas e População do Ártico |
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Esta área inclui as partes habitáveis da Groenlândia, a franja continental do litoral setentrional do Canadá, as partes habitáveis dos grandes arquipélagos do norte canadense, a franja litorânea do Alasca, inclusive as ilhas Aleutas e exceto a projeção para o sul de sua costa altamente recortada no Pacífico.
Os povos que aí vivem são os aleutas, nas ilhas de mesmo nome; os esquimós ocidentais (yupik), no lado asiático do estreito de Bering e na costa ocidental do Alasca; e os esquimós orientais (inuit). Estes se distinguem por duas línguas, quiçá dialetos de uma mesma língua: inupiatum (inupiaq), no norte do Alasca; e inuktitut, no norte do Canadá e na Groenlândia.
Como estes povos entraram na América numa onda migratória mais recente, geralmente não são conhecidos como índios, termo aplicado a sua população nativa mais antiga.
Não me ocorre nenhum texto em português referente a esta área que não seja a tradução do clássico ensaio de Marcel Mauss e H. Beuchat (2003) sobre as variações sazonais dos esquimós. Esse trabalho, publicado pela primeira vez em francês no volume 9 da revista Année Sociologique, de 1904/1905, continua a ser de leitura proveitosa, não somente para conhecer os esquimós de um século atrás pelo ângulo escolhido pelos autores, como para admirar o método de trabalho destes. Eles começam, logo no seu primeiro parágrafo, com uma definição de morfologia social, que os orientará na seleção das informações oferecidas pela bibliografia da época, que vasculham exaustivamente. Chamam de morfologia social a descrição e explicação do substrato material das sociedades, isto é, a forma que tomam ao estabelecer-se sobre o solo, o volume e a densidade da população, o modo desta se distribuir, assim como o conjunto de coisas que sediam a vida coletiva. Em seguida fazem uma crítica de trabalhos que trataram do tema, sobretudo os da então chamada Antropogeografia.
A seguir começam a tratar da morfologia geral dos esquimós, traçando sua extensão geográfica, caracterizando-os com um povo costeiro, ou melhor ainda, de falésias, a não ser a ocupação de alguns estuários (do Yukon, do Kuskokwin e o delta do Mackenzie), sua pequena comunicação com o interior do continente, a dificuldade de definir seus grupamentos. Optam por escolher como unidade territorial o que chamam de estabelecimento, que seria um grupo de famílias unidas por laços especiais que ocupam um hábitat sobre o qual se distribuem desigualmente em diferentes momentos do ano. Inclui casas, lugares de tendas, de caça marinha ou terrestre, pertencentes a determinados indivíduos, bem como caminhos, canais e portos, nos quais se encontram constantemente. Cada estabelecimento tem um nome, pelo qual seus membros se designam, freqüentemente um nome descritivo de lugar, seguido do sufixo miut. Tem fronteiras bem marcadas e ainda uma unidade lingüística, moral e religiosa. Depois chamam a atenção para alta mortalidade masculina, motivada por acidentes e mortes violentas (homicídios?), o grande número de mulheres, o pequeno número de crianças e de velhos.
A seguir passam a descrever a mofologia segundo as estações: a do verão e a do inverno. No verão se dispersam as famílias elementares, cada qual em sua tenda, cônica, mas distinta das indígenas por não ter a abertura superior, uma vez que a lâmpada esquimó não faz fumaça. No verão as famílias elementares se agrupam em casas maiores, que se compõem de três partes: (1) um corredor semi-subterrâneo que dá acesso a (2) um cômodo onde se dispõem plataformas com lugares para lâmpadas (3) separadas por tabiques fazendo nichos para cada família elementar. A casa contém um número variável de famílias, de duas a oito, que constituem uma família grande ou extensa. Esse plano básico tem variações no formato trapezoidal, estrelado, redondo, que os autores descrevem. O material para construí-la também varia regionalmente, dependendo entre outras coisas da exitência de madeira. Embora a região em que vivem os esquimós não seja florestal, em alguns lugares a eles vêm ter troncos que descem flutuando pelos rios e trazidos pelas correntes marinhas. Na ausência de outros materiais, recorrem à casa de gelo. Além das casas familiares, no inverno se constrói também uma casa de assembléia, que não está presente em toda a extensão da área esquimó; na Groenlândia, por exemplo, ela não existe. Ela é maior que as familiares e não tem as divisões para famílias elementares.
É curioso que o termo estabelecimento, proposto pelos autores para chamar as unidades em que se distribuem geograficamente os esquimós, fique em segundo plano e, no início do item II, 3º, comecem a usar o termo estação, station, sem definição prévia e sem explicitar se corresponde a estabelecimento. Ao que parece, estação é mais inclusiva que estabelecimento.
Quanto às causas das variações sazonais, os autores, após discutirem e descartarem explicações de outros, admitem que a concentração e dispersão dos esquimós acompanha o mesmo movimento de concentração e dispersão dos animais de caça terrestres e aquáticos. Identificadas as causas, examinam seus efeitos na vida religiosa, na jurídica e no regime de bens.
Quanto à religião, no verão se realizam apenas ritos de interesse individual, relacionados a nascimento e morte, respeitam-se algumas interdições e se pratica a magia curativa; seria um período mais secular. O inverno é tempo da narração de contos e mitos, sessões xamânicas de interesse coletivo, como as relacionadas à fome, quando os estoques de alimento estão terminado no fim do período. Realizam-se confissões públicas para identificar transgressões que motivaram acontecimentos nefastos. Realizam-se a festa das bexigas, para propiciar o retorno da fauna marítima que fornece recursos alimentares; a festa dos mortos, em que espíritos de pessoas falecidas encarnam nos vivos que têm seus mesmos nomes pessoais; o rito do solstício de inverno, em que se apagam as lâmpadas para renovar o fogo; é um tempo de licença sexual. Uma série de atos simbólicos distinguem as coisas do inverno das coisas do verão. Na ilha de Baffin os nascidos no inverno são associados à ave ptármiga, enquanto os nascidos no verão, ao pato êider; na Groenlândia essa distinção define qual será o conteúdo da primeira refeição da criança. Uma série de cuidados são tomados para não contatar vestes ou alimentos derivados da rena ou do caribu, associados ao verão, com os da morsa, associada ao inverno.
No que tange aos aspectos jurídicos, os autores apontam o poder do pai dentro da família elementar, e a indispensabilidade, para as crianças, do pai e da mãe, no tempo do verão. Por outro lado, dentro da casa de inverno as relações são menos rígidas, assim como entre as casas da mesma estação (station): o chefe da grande família, um velho, bom caçador, com recursos materiais e xamã, é menos patriarcal; faz-se troca de esposas; o homicídio dentro do grupo é tratado com indulgência, as ofensas se resolvem pelos duelos de canto (desafios).
Quanto ao regime de bens, no verão as propriedades dos utensílios são bem definidas, e os animais terrestres ou aquáticos abatidos pelo homem se destinam ao consumo de sua família. No inverno os animais abatidos são partilhados por todos, o empréstimo e a devolução de objetos são mais relaxados e se fazem trocas rituais de presentes nas festas de Sedna, aos homônimos dos ancestrais falecidos, às crianças, aos visitantes; os indivíduos de muitos recursos se sentem pressionados a distribuí-los. Há como que um comunismo econômico paralelo ao comunismo sexual.
Um artigo de Dominique Legros (1978) toma um ramo dos inuit chamado nunamiut, conforme se apresentava, segundo outros autores, na segunda metade do século XIX, para discutir a relação entre as idéias, usos e costumes de um povo e o seu ou seus sistemas de produção. Os nunamiut habitavam então as montanhas Endicott, que integram a cadeia Brooks, e os vales dos rios que daí correm para o mar Ártico — o Colville, o Sagavanirktok e o Canning — no norte do Alasca. Dividiam-se em bandos, no mínimo quatro, às vezes mais, de composição um tanto flutuante, pois não raro perdiam parte de seus membros para bandos de outros ramos inuit, assim como destes recebiam migrantes. A população nunamiut, quando nos seus ápices, alcançava de 1.000 a 1.500 indivíduos. Não explorava os recursos do mar, de cuja orla estava afastada, e vivia no interior da tundra, apoiando-se principalmente na caça do caribu. Nos anos 1960 restavam cerca de 85 nunamiut, em cuja memória estava o conhecimento de seu passado (pp. 146-147).
A autora distingue dois sistemas de produção ou bases econômicas na formação social nunamiut. Um era a caça de pequenos grupos de caribus dispersos na tundra que se estende ao norte das montanhas Endicott. O outro, mais produtivo, era uma atividade coletiva de direcionamento de imensos rebanhos migratórios de caribus, de modo a encurralá-los para abatê-los (pp. 147-148). O primeiro procedimento era utilizado no verão, quando pequenos bandos de caribus, de 10 a 30 animais, se espalhavam pela tundra, entre a cadeia Brooks e o mar de Beaufort. O segundo, em setembro e outubro, quando os bandos se juntavam em imensas manadas de até 60.000 cabeças e migravam para as regiões boscosas ao sul da cadeia Brooks; e ainda quando daí retornavam de fevereiro a maio, dirigindo-se para o norte. Tanto no ir quanto no retornar os caribus passavam pelos vales que cortam essa cadeia de montanhas. Assim, no inverno e no verão, os pequenos grupos de caribus eram perseguidos por membros de uma ou duas famílias nucleares. No outono e na primavera, o encurralamento de grande manadas de caribus exigia o trabalho dessas famílias reunidas em bandos (p.149).
Nas caçadas coletivas, cada bando ocupava-se de um vale por onde deveria passar a manada migratória. Compunha-se de cerca de 20 famílias elementares, o que corresponderia a 20 homens adultos, outras tantas mulheres e 60 jovens e crianças, ou seja, cerca de 100 pessoas. Podia alcançar mais, como 30 famílias. Construíam um curral em forma de U, com largura de várias centenas de metros, constituído de duas ou mais barreiras sucessivas de estacas fincadas no chão unidas por laços. O bando caçador se distribuía em três equipes. O homens ficavam em volta do curral. Os jovens, com ajuda de espantalhos colocados em lugares estratégicos, e dando gritos de lobo dosados quando necessários, acompanhavam ao logo de quilômetros a manada de caribus, conduzindo-a na direção do curral, sabendo que qualquer erro faria com que o animal cabeça da manada desse meia-volta, fazendo os caribus retornarem e levando ao fracasso todo o empreendimento. Mulheres e crianças montavam guarda junto aos espantalhos mais próximos do curral. Quando os caribus estavam bem próximos ao curral, tanto os jovens quanto as mulheres faziam grande alarido, de modo a precipitar os animais na direção do curral. Os que não se estrangulavam nos laços das estacas, ultrapassando-as, eram abatidos a flechadas pelos homens adultos. A matança terminava quando as flechas acabavam. Dado o imenso número de animais, a maior parte da manada escapava e prosseguia seu caminho (pp. 150-153).
A autora se pergunta por que, com a quantidade de animais disponível, os bandos nunamiut não eram maiores, e como era possível dois modos de produção, que alternavam com as estações, serem operados pelo mesmo grupo humano.
Uma das resposta estaria no funcionamento do sistema de parentesco como instrumento de fragmentação. Os nunamiut não tinham grupos unilineares de descendência, e os seu parentesco era cognático, considerando todas as linhas. Entretanto, os laços de parentesco de cada indivíduo não se extendiam indefinidamente, pois cessavam no sentido vertical e horizontal de sua genealogia conforme uns poucos graus. Como esses graus se contam a partir de cada indivíduo, apenas irmãos germanos teriam exatamente os mesmos parentes, e as partentelas dos demais membros da família elementar não coincidiriam inteiramente. Com os indivíduos que estavam além da linha de parentes é que era possível o casamento, mas também era com eles que as relações mais facilmente se degradavam em conflito, quando já não eram de antemão conflituosas. Assim, por força do casamento com não parentes, mesmo um grupo constituído por um pequeno grupo de famílias teria em seu seio pessoas passíveis de entrarem em conflito. Embora os afins efetivos imediatos, amigos ou parceiros, dentre os não parentes, fossem solidários para com ele, um indivíduo já não contava com os mesmos sentimentos dos assim relacionados àqueles. Desse modo, quanto maior o número de componentes de um bando, maior a possibilidade de eclosão de conflitos (pp. 156-162). A coesão do bando estava mais assegurada quando chefiado por um dos irmãos germanos constituintes de seu núcleo, pois seus parentes coincidiam, proporcionando mais transitividade nas relações do líder com os não parentes a eles imediatamente ligados (p. 172).
A autora então toma como indício desses conflitos o alto número de homicídios que ocorriam entre os nunamiut e outros grupos inuit de mesmo “regime ideológico”. No norte do Canadá, era o caso dos ahiarmiut, do rio Ellice, no golfo da Rainha Maud (em frente ao sudeste da ilha Victoria), e dos “esquimós do caribu”, do Barren Ground (vasta região entre a baía de Hudson e os lagos Grande Urso, do Escravo e Athabasca, de baixa altitude, de solo sempre congelado a poucos centímetros da superfície, coberta de musgos, líquens e gramíneas, com muitos lagos e afloramentos graníticos), e, no Alasca, de seus próprios vizinhos malemiut (pp. 162-167).
Sempre à beira da eclosão de conflitos, o sistema tinha propriedades estruturais que asseguravam (1) a dispersão da população em pequenos grupos familiares, (2) uma circulação de bens própria a equilibrar as inevitáveis irregularidades e disparidades de produção entre esses pequenos grupos, e (3) a ocultação, aos atores, da ajuda que indiretamente prestavam uns aos outros (p. 168).
A superação das limitações do parentesco no sentido que se obter agregações maiores recorriam a três instituições. Uma delas era a construção de uma grande tenda comunal para todo o bando, para mais de 100 pessoas, em que cada família contribuía com suas estacas e couros. O abrigo somente se mantinha com a articulação de todos, pois, se uma família resolvesse sair, retirava seu material da construção (p. 173). A outra eram as refeições coletivas, para as quais cada mulher levava à tenda comunal sua contribuição culinária; eram os jovens que serviam a refeição aos homens mulheres e crianças, comendo eles próprios no fim, como se repetissem simbolicamente seu papel na caçada coletiva, de conduzir a manada de caribus até os que a aguardam nas vizinhanças do curral, sendo os últimos a participar da matança (p. 174). A terceira era o rito de aceitação de novo membro do grupo, que tinha que passar por provas que o levariam a desistir se não estivesse muito decidido (p. 175). Enfim, essas três instituições operariam no sentido de se obter a coesão em grupos maiores, para além dos limites que o sistema de parentesco, tal como estava estruturado, permitiria.
Penelope Eckert e Russel Newmark (1980) discutem os duelos realizados pelos inuits com base em 17 de seus cantos recolhidos por Kund Rasmussen nos anos 1920, no norte do Canadá, a oeste da baía de Hudson. Apesar de outros autores terem admitido que este tipo de duelo era um instrumento jurídico para resolver disputas e restaurar as relações normais entre os membros da comunidade, ou compelia a conformidade às regras sociais, ou ainda fazia a catarse das pressões e frustrações, Eckert e Newmark o consideram de outra maneira: era um dos meios de lidar com os conflitos interpessoais, mas não eliminava as causas e os efeitos deles decorrentes, antes reestabelecia a ambigüidade estável das relações entre os indivíduos envolvidos . Dentro de um esquema ritual, o duelo reconciliava forças contraditórias e ambigüidades centrais na vida dos inuits (p. 191).
Os duelos com cantos ocorriam no escuro do inverno, nos festivais realizados na grande casa construída para esses eventos, em meio a danças e jogos, após os participantes terem comido bastante, e à luz de lâmpadas de óleo. Um dos contendores se adiantava e iniciava seu canto, dançando e batendo um grande tambor de couro de caribu. Seu canto dirigia-se ao oponente, mas também tinha por alvo envolver e excitar os demais presentes. Os contendores alternavam seus cantos, que continham mútuos insultos e acusações, e ao mesmo tempo cada qual fazia alarde de seu próprio bom caráter, tudo acomodado em humor e recursos retóricos. Comportavam-se assim de um modo totalmente reprovado nas relações quotidianas. O duelo continuava até que um dos contendores sentia-se completamente humilhado pelos risos da audiência ou tão confuso que era incapaz de responder. A expectativa da platéia era que os oponentes abandonassem seus maus sentimentos, rissem de suas animosidades e restabelecessem uma relação amigável (p. 192).
O objetivo do duelo não era pôr em evidência a culpa de um e a inocência do outro contendor, pois suas desavenças decorriam das pressões contraditórias da vida inuit, que impunham simultaneamente a cooperaração e a competição. Apesar do valor atribuído à paciência, pacifismo, coragem, generosidade, modéstia, honestidade, cooperação, a violência permeava muitos aspectos da vida inuit, exemplificados, segundo os autores, pelo suicídio, senilicídio, assasinato, infanticídio feminino. E os autores oferecem alguns números para indicar as altas taxas de mortes violentas. Segundo eles, o infanticídio de recém-nascidos do sexo feminino criava um desequilíbrio que resultava em intensa competição por mulheres. Mas sabemos de outros autores que, mesmo assim, o número de mulheres sempre superava o número de homens, por causa das inúmeras mortes destes, não somente por violência, mas também por acidentes, principalmente nos caiaques. Lembram ainda a competição engendrada pela escassez de recursos alimentares (pp. 193-195). Os autores lembram que a ameaça de conflito, e morte violenta, estava sempre presente, desde as relações com estranhos, marcadas por intenso medo, desconfiança e suspeita, passando pelas relações com parceiros (de caçada, de partilha de alimentos, de transmissão de nomes), dada a possibilidade de as relações jocosas, se excessivas, resultarem em desentendimentos, até as relações dentro da família, no seio da qual, entre outros motivos, a mulher podia instigar o homem pretendido a matar-lhe o marido, ou o filho matar o padrasto para vingar a morte do pai, assassinado por aquele (pp. 195-197).
Uma alternativa para as soluções violentas, era o duelo com cantos, em que um acusava o outro hostilidade, avidez, inveja, preguiça, furto, pretensão, imodéstia, excesso sexual, enquanto faz seu auto-elogio, destacando sua boa natureza, modéstia, habilidade na caça, e suas boas intenções. Tal confronto seria totalmente desastroso, não fosse o ambiente ritual, festivo e cheio de humor em que ocorria, ou seja, isolado do contexto quotidiano. Também o trazer a audiência para seu lado era um recurso do cantor para não atuar como único acusador. Além do mais, apesar de contundente, a acusação se apresentava dentro de um ambiente de ambigüidade, em que a platéia podia estar se colocando a favor de uma das partes ou simplesmente apreciando o desempenho artístico; os ataques e contra-ataques podiam ser expressos em termos irônicos, permitindo assim serem interpretados como verdadeiros ou não. Os autores exemplificam os recursos retóricos utilizados pelos contendores transcrevendo trechos dos cantos anotados por Rasmussen (pp. 197-207). Enfim, o duelo restaurava a estabilidade da ambiqüidade, sempre passível de voltar a desequilibrar-se (pp. 208-209).
Sem dúvida o artigo de Bernard Saladin d’Anglure (1993) tem densidade etnográfica e resiste a um pequeno resumo. Mas é tão interessante que vale uma referência, ainda que não dê conta de toda a sua complexidade. Admirador do “Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós” de Mauss e Beuchat, seu artigo tem entretanto o objetivo de matizar o dualismo puro e simples daquele famoso ensaio, que articula todo o modo de vida dos esquimós em torno de dois pólos, o individualismo do verão e o comunismo de bens e mulheres do inverno. D’Anglure admite um terceiro elemento, que seria a atividade do xamã. Porém, mais interessante do que a discussão das idéias de Mauss sobre comunismo é o material empírico que utiliza para desenvolver seu argumento.
Para examinar o papel do xamã na troca de esposas, um dos componentes do festival de Tivajuut, ele recorre a sua pesquisa de 1971, realizada na ilha de Iglulik, próxima da península de Melville, no norte do Canadá, na mesma região focalizada por Eckert e Newmark no artigo acima comentado referente ao duelo com cantos. O festival de Tivajuut não se realizava mais, e o pesquisador se informava sobre ele com um velho inuit chamado Ujarat, que era filho de um casal de xamãs. Ujarat conhecera Rasmussen em 1922/23, na mesma época em que seus pais tinham se convertido ao cristianismo. Informado por Ujarat que sua irmã, Aatuat, que morava na ilha de Baffin, conhecia aspectos do festival que ele próprio ignorava, D’Anglure convidou-a a vir a Iglulik, o que ela fez em 1974. Ela tinha sido xamã e era uma das últimas mulheres da região a ter no corpo tatuagens no antigo estilo. E fez uma descrição de um festival de Tivajuut, realizado em Iglulik, de que ela, ainda adolescente, tinha participado.
Aatuat morreu em 1976. Porém, em 1986, folheando um catálogo de desenhos inuit coletados em 1964, D’Anglure constatou que um deles tinha sido feito pela mesma Aatuat e percebeu que representava o mesmo festival de Tivajuut que ela tinha descrito para ele. O elemento principal do desenho é um círculo, com abertura em baixo, que representa a casa cerimonial, e dentro dele estão 30 figuras humanas. Sua disposição permite traçar duas linhas perpendiculares imaginárias sobre o círculo: a horizontal separaria homens, embaixo, das mulheres, em cima. A vertical, separa os oponentes nas lutas e jogos. À porta, a abertura inferior do círculo, estão duas figuras mascaradas.
Usando as informações dadas por Aatuat e por seu irmão Ujarat, as do pai destes, publicadas por Rasmussen, e ainda as constantes em outros autores, D’Anglure tenta uma reconstituição do ritual. Acha que talvez os dois homens que estão no centro da casa lutando, apenas vestidos de calção, sejam os parentes a que ela se referiu no seu relato. Segundo Aatuat, os homens se batem nas têmporas. Quando um é vencido, outro o substitui, até que não haja mais adversários masculinos. Então suas mulheres os substituem e se batem nos ombros. No desenho, acima dos lutadores masculinos, duas mulheres se defrontam, agachadas, mas não estão se batendo. Talvez estejam num outro tipo de disputa, de resistência, flexionando e retesando suas pernas e ao mesmo tempo cantando até que uma desista por cansaço.
D’Anglure se demora na discussão das duas figuras que estão na porta da casa, mascaradas. São os tuvajuut. Ambos são do sexo masculino, mas um se apresenta como homem e outro como mulher. O homem tem uma barba, uma protuberância na testa, um bastão na mão esquerda e um enorme pênis artificial. O homem vestido de mulher traz uma máscara e uma faca na mão esquerda. O autor percorre os dados tomados por ele e por outros de modo a interpretar essas figuras, chegando à conclusão que a masculina evoca Lua e a feminina, Kanaaluk (pp. 78-80). Ambos, conforme os mitos referidos no artigo, estariam relacionados aos limites da escolha matrimonial. Lua abusou sexualmente de sua irmã, Sol, um ato que originou as fases da Lua e a alternância das estações (p. 79). Kannaaluk tinha sido uma jovem que, recusando todos os pretendentes, acabou se casando com um cachorro, que foi afogado pelo pai dela, e seus filhos foram espalhados em todas as direções, dando origem a vários grupos humanos e a alguns espíritos. Depois se casou com a procelária, que provocou uma grande tempestade quando ela quis livrar-se deste marido, com ajuda do pai, que para escapar jogou-a na água, causando-lhe a perda de um olho, e cortou-lhe os dedos, quando ela tentou agarrar-se à borda do barco. Ela foi para o fundo e seus dedos deram origem aos mamíferos marinhos. Seu pai, desesperado, fez-se cobrir pela maré, indo para junto dela e do cachorro (pp. 66-67). Enfim, um dos personagens rituais, Lua, teve relações sexuais com parenta próxima demais e o outro, Kannaaluk, com seres afastados demais. Apenas de passagem, Kannaaluk é equiparada a Sedna (p. 78).
São essas figuras rituais, personificadas por xamãs, que num momento do festival presidem à escolha, pelos homens, das mulheres com quem desejam ter rtelações sexuais. As mulheres permanecem dentro da casa cerimonial e os homens ficam do lado de fora. Cada homem, aproximando-se desses personagens, indica, cochichando, a mulher que deseja. O homem entra na casa e, junto com a mulher que escolheu, mantêm uma atitude séria, enquanto as outras mulheres manifestam-se alegremente. Caso um deles não resista às suas provocações e ria, isto será sinal de que viverá pouco. Como os homens que escolhem primeiro certamente ficam com as mulheres mais desejáveis, o autor supõe que eles fazem a escolha obedecendo a uma ordem de prestígio, seja por ser bom lutador, ou bom caçador, ou xamã (pp. 80-81).
Por fim D’Anglure comenta a importância dos papéis desempenhados pelos xamãs no rito e como as informações sobre eles são provenientes sobretudo de xamãs ou de pessoas intimamente relacionadas com eles. Lembra ainda como são os xamãs que mais incidem na troca de esposas, fora do ambiente ritual. E mais ainda, como os xamãs, mesmo depois da conversão ao cristianismo, ainda mantêm a multiplicidade de parcerias sexuais ou a ela aludem (pp. 85-88).
Num artigo tão cheio de idas e vindas fica difícil constatar se o autor realmente superou de modo convincente o dualismo estrito sugerido por Mauss e Beuchat.
Com base em sua pesquisa junto aos esquimós inupiat do cabo Hope, na costa alasquiana, entre os paralelos de 68º e 69º norte, Edith Turner (1989) escreveu um interessante artigo sobre as curadoras que sucedem aos antigos ou antigas xamãs. A comunidade, com cerca de 600 habitantes na época da pesquisa, dos quais uns 30 eram brancos, só mostrava prosperidade na estação de caça às baleias. Eles tinham passado por grande mudança num período de cerca de 20 anos a iniciar-se em 1912, quando, induzidos por missionários episcopais, mudaram-se de suas casas subterrâneas cobertas de grama para casas modernas construídas em torno de uma escola (pp. 3-4).
No passado os xamãs que assistiam a comunidade eram freqüentemente mulheres, uma por família. Constavam dos atos xamânicos sugar itens maléficos introduzidos no corpo, achar objetos perdidos, predizer e mudar o tempo, atrair animais para os caçadores, fazer reviver os mortos e falar com eles. O xamã atuava sobre o doente em sessão pública, ao som de tambores. O xamã dançava e entoava seu cântico espiritual pessoal, caía ao lado do paciente e deixava seu espírito procurar a alma fugitiva deste. Com ajuda de seu espírito auxiliar, que ele ganhara em sua iniciação, alcançava a alma fugitiva e retornava com ela, restituindo-a ao paciente e restabelecendo-lhe a saúde (p. 5). Os xamãs também podiam usar seus poderes para matar, o que a autora toma como uma corrupção da antiga religião. Esse aspecto teria sido acentuado pelos missionários como típico do xamanismo, afetando as atitudes para com esta atividade até os dias de hoje (p. 6).
A comunidade também tinha seus festivais: troca de alimentos entre clãs, ritos da primeira lua nova, a festa do mensageiro, os diferentes festivais da baleia, o festival da bexiga, que estabeleciam comunicação com os animais e os traziam para perto dos caçadores (p. 6).
Desde 1820 a região era freqüentada pelas equipes comerciais de caça à baleia, que estabeleceram um depósito na proximidades. Moléstias e bebidas alcoólicas produziram queda na população inupiat. Ao instalar-se a missão episcopal, em 1890, a população tinha caído para 250 pessoas e, em 1908, mais ainda, para 179. O primeiro missionário era também médico. Os missionários foram bem recebidos. Defendiam os inupiat da exploração dos baleeiros. Pouco antes de 1907 a comunidade proibiu as bebidas alcoólicas, sob protestos dos comerciantes. Os missionários se opuseram a todas as manifestações da religião inupiat e a todos os aspectos da cultura a ela referentes. Estabeleceram celebrações dos brancos e, nelas, as danças inupiat só eram permitidas se de natureza secular. As sessões xamânicas foram abolidas. A língua inupiat foi proibida na escola; a criança que a falasse era punida com uma reguada nas articulações dos dedos ou tinha a boca fechada com um esparadrapo (pp. 6-8).
A religião dos missionários suplantou a nativa. Mas a atividade de cura, muito associada à religião inupiat, continuava na figura das curadoras, que a puseram sob a égide da crença cristã. Além de ervas, manipulações, sangrias, atuação de parteiras, o ato mais importante dessas atividades era o curar com as mãos. Aliás as condições de saúde continuaram precárias até o final da segunda guerra mundial, quando passaram a ser controladas pela saúde publica. As casas acima do chão eram mais frias e grassava a tuberculose. Embora qualquer referência ao antigo xamanismo causasse horror, as curadoras contavam com capacidades outrora concedidas pelo espírito auxiliar do xamã, como a clarividência, e não deixavam de ser ajudadas por um espírito, que agora era o do “Bom Senhor” (pp. 8-10).
No tempo da pesquisa os inupiat continuavam a obter 60% de seu alimento das fontes locais: baleias, focas, morsas, baleias brancas, caribus, ursos polares, patos, peixes, caranguejos, ovos, vegetais da tundra e bagas (berries). A escola norte-americana operava no sentido da assimilação, consumiam-se açúcar, refrigerantes, tabaco, enlatados. Também álcool e maconha, com adição de violência e crime. A língua inupiutat continuava vigorosa. Costuravam-se peles e confeccionavam-se parkas. Aos festivais cristãos somavam-se os ritos inupiat. Realizava-se uma modificação do rito da bexiga (bexigas de foca arremessadas ao mar para propiciar fartura de alimentos). Em 1961 o primeiro pregador episcopal inupiat foi ordenado e logo depois estabelecia-se a Assembléia de Deus na comunidade. Se a princípio houve algum estranhamento entre as duas religiões, ambas se acomodaram, até com alguma incorporação de influência da Assembléia pelos episcopais (pp. 10-12).
Edith Turner passa então a descrever e comentar a atuação das curadoras: quatro acima de 70 anos de idade; cinco entre 40 e 70, duas aspirantes entre 28 e 30; e sete aprendizes de 7 a 27. Ela curam principalmente dores de cabeça, indisposições de estômago, dores nas costas, ferimentos, torceduras, artrite, , destroncamentos e fraturas ósseas, perda de fôlego, pneumonia, furúnculos, ofuscação pela neve, cálculo biliar e ainda atuam como parteiras, quando a mãe dá à luz antes de ser levada por avião ao hospital, que é a prática normal. A maior parte dos males é curada com manipulações internas, combinadas com orações e com a retirada daquilo que afeta o corpo. A sangria é pouco usada. Também usam poções de Artemesia tilesii, óleo de foca e de baleia branca. De 8 de setembro de 1987 a 24 de agosto de 1988 houve 151 atuações de cura, das quais a pesquisadora observou 46 (p. 13).
A autora apresenta então alguns casos, um em que ela própria é paciente, outro em que ela age como curadora. E destaca as seguintes características: 1) um nível diferente de percepção, a clarividência; 2) a ajuda de um espírito curador, o “Bom Senhor”, Jesus; 3) o conceito de doença como uma coisa, uma substância que pode ser retirada; 4) as mãos como instrumentos de cura; 5) a conexão entre curador e sofredor, a “conversação de corpos”; 6) o correto posicionamento do órgão corporal, de fundamental interesse na cura inupiat; 7) a prontidão terapêutica, a “curabilidade”. Em um ou outro caso descrito a pesquisadora chama a atenção da passagem do mal do corpo do paciente para o da curadora, que dele se livra lavando as mãos ou levantando-as para o alto e soprando-as (pp. 14-21).
Mauss e Beuchat puderam escrever seu ensaio clássico sobre as variações sazonais fundados nas informações etnográficas do final do século XIX e ainda em cronistas mais antigos. O contato interétnico trouxe muitas modificações. Entretanto, a oscilação entre inverno e verão continua a condicionar as atividades esquimós, e manter muito de sua antiga morfologia social, no que tange aos períodos de dispersão espacial das famílias e ao de concentração na comunidade, quando se realizam os ritos, que não são mais os mesmos. É possível dar-se conta disso com a leitura de um pequeno artigo de Richard Condon (1982), referente a uma comunidade inuit de Holman Island (apesar do nome, não é uma ilha), na costa ocidental da ilha Victoria, no norte do Canadá. Não vou resumir o artigo, que não tem pretensões maiores do que ser um informe, mas apenas pinçar alguns detalhes.
Trata-se de um posto de comércio da Companhia da Baía de Hudson, no qual os inuit foram se instalando em meados do século XX, para aproveitar o programa de casas subsidiadas pelo governo federal e outros serviços municipais. Por volta de 1980 a população era de 270 inuit e de 15 a 20 brancos, geralmente funcionários do governo. Tinha escola, cooperativa, enfermaria e campo de pouso. Estando ao norte do Círculo Polar, falta-lhe a luz direta do Sol de meados de novembro a meados de janeiro e, por outro lado, goza de luz do dia contínua de meados de maio até o mês de julho. A temperatura média mensal varia de 13 graus centígrados abaixo de zero em fevereiro a 7 graus positivos em julho. A comunidade desfruta de conforto moderno, como calefação, eletricidade, casas subsidiadas, rifles, snowmobiles e assistência social. Mas a drástica diferença entre as estações continua a marcar a vida de seus membros. Assim, setembro é um mês difícil para deslocamentos, pois os ventos vindos do norte tornam as viagens marítimas perigosas e, por outro lado, ainda não há queda de neve que permita o uso do snowmobile em terra. Outro mês difícil é maio, quando a neve, derretendo-se, vira lama.
As atividades de caça se distribuem segundo as estações. No inverno se distribuem armadilhas para raposas, caçam-se os caribus, o urso polar e o boi almiscarado, menos nos dois meses em que o sol não desponta. O uso de armadilhas termina oficialmente em 30 de abril. O verão é o tempo da caça aos patos. A foca tem um período de caça mais longo, com diferentes modalidades: por espera, na primavera; de canoa, no verão; à beira do gelo, no outono. O outono também é o tempo da caça ao coelho. A pesca em mar aberto se faz no verão; na primavera e no outono, por debaixo do gelo.
Não há mais atividade ritual na grande casa cerimonial. As festividades natalinas ocupam seu lugar. Mas do outono à primavera é um tempo de concentração na comunidade, enquanto o verão é tempo de dispersão, devido às férias escolares. A cooperativa de artesanato também fecha. As famílias se espalham em tendas perto ou longe de Holman Island. Como a cada ano chega em agosto a barcaça com materiais de construção e outros suprimentos, instala-se um período de emprego para muitas pessoas em atividades que devem ser interrompidas com o começo do inverno. No final de setembro, fazem-se reparos nos snowmobiles, para usá-los no mês seguinte com a primeira neve, que permite uma expedição ao lago Fish, 80 km ao norte, para pesca com redes embaixo do gelo.
Noutra parte do artigo, o autor se ocupa das fontes contemporâneas de violência e admite que embora fontes tradicionais de conflito interpessoal ainda persistam, o que as agrava é o uso do alcool, que se torna mais intenso nos períodos como os de maio e setembro, em que as condições climáticas impõem a imobilidade à população, tornando-os bastante aborrecidos. Entretanto os delitos não deviam de ser muitos, pois o destacamento da Real Polícia Montada Canadense não era permanente na comunidade, apenas a visitava. Os quadros apresentados pelo autor estão prejudicados porque reúnem os números desta comunidade com a de outra maior, de Coppermine.
Um número da revista canadense Anthropologica, especialmente dedicado aos jornalistas ameríndios, inclui três artigos entre si relacionados que focalizam os inuits. Um deles advoga a imprescindibilidade do uso do vernáculo, no caso a língua inuktitut, para o sucesso da instrução escolar das crianças, sem defender o exclusivismo do uso desta língua nas fases posteriores, pois o conhecimento de uma outra que ponha o grupo em contato com o mundo exterior, no caso a língua inglesa, somente traz vantagens ao indivíduo fluente em ambas. Os autores do artigo propõem as condições mínimas para um efetivo bilingüismo (Prattis & Chartrand, 1983, p. 101), enumerando entre outras o reconhecimento oficial do inuktitut, o seu uso nos ambientes administrativo, burocrático e legal, a concordância e apoio da comunidade local para com a educação bilíngüe no âmbito de uma comunidade mais ampla, apoio e financiamento para instrução em inuktitut em todos o níveis do sistema educacional, disponibilidade de leitura em inuktitut em todos os níveis, professores fluentes em inglês e inuktitut, programas culturais para prestigiar o inuktitut, apoio ao inuktitut na mídia, inclusive programas de rádio e televisão em inuktitut para escolas, para crianças em casa, e dirigidos ao público com interesses mais amplos.
A última dessas condições relaciona o artigo com os outros dois, como o de Debbie Brisebois (1983), que apresenta os esforços dos inuits para conseguirem uma programação de televisão não somente a eles dirigida, mas também feita por eles mesmos, de modo a não ficarem exclusivamente expostos à que se produzia no sul do Canadá e voltada a temas e valores que não eram os seus. Sua reação começou quando, em 1975, a Canadian Broadcasting Corporation (CBC) deu início a um plano de pôr a televisão ao alcance de todas as comunidades do Canadá com mais de 500 pessoas. É que o plano só proporcionava fundos para equipamentos e não para programação. Expunha os inuits, sobretudo suas crianças e jovens, a valores, atitudes, comportamentos que lhes eram estranhos, ameaçava a sua língua, sua cultura e a coesão de suas comunidades. Uma comunidade, Igloolik, do oeste da ilha de Baffin, chegou a ponto de proibir a recepção dos programas de televisão. Entretanto, como a televisão constituía um meio que poderia operar de outro modo, a favor de seus interesses, da sua língua e sua cultura, a Inuit Tapirisat of Canada, uma organização que representava os então 25 mil inuits dos Territórios do Noroeste, norte de Quebec e do Labrador, começou a reivindicar algo nesse sentido, recebendo, em 1975, do Departamento de Comunicações do Canadá, acesso experimental por um ano ao satélite Anik B. A organização deu então início ao Projeto Inukshuk, que tinha por objetivo instalar a primeira rede de televisão dos Territórios do Noroeste, nos quais nessa época a Canadian Broadcasting Corporation (CBC) só tinha um estúdio em Yellowknife. O plano era transmitir os programas a partir da baía de Frobisher (na ilha de Baffin), em interação com outros cinco centros de produção em núcleos inuits. Inicialmente houve uma produção de videotapes, que eram mostrados nas comunidades do Ártico, enfrentando as dificuldades de transporte. Em 1980 iniciaram-se as transmissões por satélite a partir da baía Frobisher. Havia programas interativos para discutir temas de interesse de associações de caçadores e armadilheiros, de comitês locais de educação e funcionários do governo, de comissões de discussão de direitos aborígines relacionadas à reforma da constituição, entre caçadores, armadilheiros e soldados do fogo de diferentes comunidades, a ainda perfis comunitários, documentários culturais, notícias, música, serviço de utilidade pública, e instrução em artesanatos e habilidades tradicionais. A experiência, que durou 18 meses, mostrou que o empreendimento era possível.
Assim, em 1981 foi criada a Inuit Broadcasting Corporation (IBC). Temporariamente ela recebeu os horários mais tardios da programação da CBC voltada para o norte. Porém a IBC apoiava-se mais na boa vontade das comunidades inuits do que em fundos proporcionados pelo governo. Além disso, sua programação era tratada como de menor importância pela CBC, indo ao ar somente depois das 23 horas, e mesmo assim preterida em favor de qualquer jogo, campeonato ou evento político. Isso levou a presidente da IBC a queixar-se: “A natureza fez de nossa terra a ‘Terra do Sol à Meia-noite’; coube à CBC fazê-la a ‘Terra da Televisão à Meia-noite’”. A IBC propôs ao governo que considerasse as comunicações nativas e setentrionais como um elemento permanente e essencial do sistema de transmissão canadense, apresentando-lhe opções para uma produção e distribuição mais eficiente. Sugeriu ainda num outro documento que um simples transponder no novo satélite Anik D podia ser partilhado pela IBC e pelo serviço voltado para o norte da CBC, satisfazendo melhor as necessidades dos inuits. Em 1983 o governo federal respondeu com a criação do Northern Native Broadcast Access Program, com a duração de quatro anos e uma dotação de 40,3 milhões de dólares a serem administrados pelo Programa de Cidadãos Nativos da Secretaria de Estado. Essa medida se pautava pelos seguintes princípios em favor dos nativos do norte: oferecimento de acesso a um crescente leque de escolhas pela exploração de oportunidades tecnológicas; oportunidade de participação ativa na determinação do caráter, quantidade e prioridade da programação a ser transmitida para suas comunidades; acesso aos sistemas de distribuição da transmissão para o norte de modo a manter e desenvolver suas culturas e línguas; onde constituírem uma percentagem significativa da população, a programação para eles relevante e de conteúdo elaborado por eles deve ser produzida para distribuição pelos serviços de transmissão do norte; as agências do governo incumbidas de estabelecer políticas de transmissão que afetam sua cultura nativa devem consultar regularmente seus representantes.
Apesar de os fundos proporcionados pela nova medida apenas cobrirem as operações já existentes, houve como melhoria inicial a ampliação da programação para seis horas semanais e num horário menos tardio, às 22:05 horas. E também foi proporcionado um treinamento em larga escala para aprimorar a capacidade dos empregados da IBC, além da instrução de mais treze nos fundamentos da produção televisiva. A par disso, a IBC tinha um programa interno de treinamento que incluía instrução técnica, jornalismo básico, workshops de linguagem e cultura, e prática de produção.
Entre os trabalhos da IBC se contam a cobertura da reunião dos Primeiros Ministros sobre os Direitos Aborígines, em Ottawa, e da III Reunião Circumpolar Inuit de 1983, na baía de Frobisher.
O artigo termina com uma referência à pesquisa referente à reação dos espectadores à programação da IBC. Mas sobre esse assunto há o artigo de Valaskakis & Wilson (1983), publicado na mesma revista. Os autores aplicaram um questionário de 95 perguntas em 11 comunidades inuits, recebendo 1.378 preenchidos. Teriam sido mais se os de uma comunidade não se perdessem transviados no serviço postal. A pesquisa incidiu sobre toda a programação e não somente a da IBC, que se limitava a cerca de uma hora por dia. Dos que responderam o questionário, 46,4% eram homens, 52%, mulheres e 1,5% não indicaram o sexo. Falavam o inuktitut 97,4%. Quanto a falar inglês, daqueles de 10 aos 15 anos de idade 92,8% o faziam; de 16 a 25 anos, 96, 2%; de 46 a 60 anos, 14, 1%; de 61 anos ou mais, 8,2%. Quanto a usar o silabário inuit, 84% o sabiam, sendo 96, 2% na faixa de 46 a 60 anos, 76,2% dentro da faixa de 16 a 25 anos, e 80,6% na faixa de 10 a 15 anos. Tinham estudado em escola 72, 4%. Em todas as categorias de idade, menos da metade tinham um emprego. Não fica claro aqui se, quando os autores se referem a atividades tradicionais, se estas se realizam dentro de um emprego ou não. Todas as categorias de idade indicaram uma forte preferência pelos programas referentes à língua inuktitut, comunidades do norte, música inuit e caça. Os programas preferidos para os espectadores da faixa de 46 a 60 anos eram os da IBC; e um pouco menos para as pessoas acima dela. Dos jovens de 10 a 15 anos, 80% pediam por mais programas esportivos, e 84,55% da faixa de 26 a 45 anos e 87% da faixa de 46 a 60 anos mostravam interesse por mais programas destinados às crianças. Dos homens, 77,5% desejavam mais programas esportivos e 92,1% sobre caça. Das mulheres, 80,9% preferiam os programa da IBC sobre saúde e medicina, 78,8% sobre problemas domésticos, e grande proporção apoiava os programas para crianças. Mais da metade de cada categoria de idade, 68% do total, mostraram interesse por programas religiosos, assim como os de “linha aberta” (?). Nos comentários escritos, todas as idades protestaram contra a repetição de programas e sublinharam seu interesse pelo teatro inuit e por programas “southern style”. Quanto aos programas a eles dirigidos pela CBC, os preferidos eram: Nutatsiaqmiut, The National (notícias), Taqravut, Focus North, All My Children, Dallas, Happy Days. Entre os programas menos vistos estava o Sesame Street, mas os autores lembram que o questionário não foi aplicado à faixa de idade de menos de 10 anos.
Desde 1° de abril de 1999 os Inuit administram um território criado no Canadá com o nome de Nunavut, resultante do desmembramento da banda ocidental dos Territórios do Noroeste. Um mapa de Nunavut está disponível no site The Atlas of Canada.
Em 1982, a divisão dos Territórios do Noroeste em dois foi apoiada por 56% dos votos em um plebiscito. No mesmo ano formou-se o Nunavut Constitutional Forum com o propósito de definir o governo, mediante consulta popular, do território oriental resultante dessa divisão. A proposta para Nunavut era dispor de uma assembléia legislativa, semelhante às das províncias canadenses; porém algo mais: um governo que tivesse também alguma jurisdição em assuntos estrangeiros. O motivo desta reivindicação era assegurar a possibilidade de manter contato com os inuit e outros ramos esquimós, que vivem na Groenlândia, Alasca e Rússia. Os inuit têm contato ativo com eles mediante a Inuit Circumpolar Conference. O inuktitut deveria ser uma das línguas oficiais de Nunavut (Purich, 1991, pp. 432-433).
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