Os heterônimos

São algumas das vozes de Fernando Pessoa — ele mesmo, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e de Ricardo Reis, diferentes nas respostas vislumbradas, mas iguais no empenho de "conhecer", tal como surgem em contraponto nesse fascinante mundo fernandino, que é um dos grandes desafios lançados à Crítica pela poesia contemporânea. E desafio, não porque seu discurso poético se emaranhe em processos de composição que acarretem a obscuridade da fala. Muito pelo contrário, com exceção de certa poesia experimentalista inicial, tudo é direto e nítido em seu dizer. Fiel ao postulado de que a "obra de arte, fundamentalmente, consiste numa interpretação objetivada duma impressão subjetiva", Fernando Pessoa repudia as abstrações.

Fácil é verificar, mesmo por uma primeira leitura, que não é o processo de dizer em si o que o preocupa basicamente, mas sim o que dizer. Daí que o experimentalismo formal só o tenha atraído na medida em que expressava o modo de ver de determinado sujeito. Assim, por sua preocupação com a nitidez da palavra poética, tratou sempre de maneira absolutamente objetiva a "coisa" a ser expressa, mesmo as mais obscuras ou incertas à apreensão lógica. Daí a facilidade com que se lê e se "entende" a quase totalidade de seus poemas.

O desafio que sua poesia representa, para o leitor interessado, está na genialidade com que o retira da visão estável do mundo, para levá-lo a perceber, com inquietação, uma existência-outra, ainda desconhecida, e que se pressente decisiva. Lida em conjunto e em confronto, sua produção poética contraria, de imediato, a nitidez de enunciado que lhe é peculiar, pois seus poemas se abrem em leque (ou em labirinto?), se diferenciando entre si, não apenas pela dicção poética que os individualiza, mas porque cada uma delas enuncia uma maneira distinta de sentir e conhecer o mundo. É como se "corporificando" em distintas personalidades os diferentes e conflitantes modos de sentir/conhecer o mundo e a vida, Fernando Pessoa tivesse conseguido "neutralizar" os desequilíbrios e angústias que, fatalmente, apareceriam se uma só personalidade (Fernando Pessoa ele-mesmo ) vivenciasse tais conflitos.

E essa aparente diversidade de raiz que se tem colocado para a crítica como um dos problemas iniciais dessa poesia, pois sabe-se, à saciedade, que o que define, singulariza e dá o valor definitivo à obra de um grande escritor é a unidade, a coerência de sua consciência-de-mundo. Sendo assim, como poderemos compreender essa "diversidade" de problemática em um gênio como Fernando Pessoa? Onde estaria a sua "unidade"?

Foi esse o ponto de partida da maioria dos estudos que se têm elaborado sobre a sua poesia, desde a obra pioneira de Jacinto do Prado Coelho ("Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa - 1950") que chega, afinal, a demonstrar que a "unidade essencial implícita na diversidade das obras ortônimas e heterônimas" está na "inquietação metafísica de Pessoa, no modo angustiado como viveu o problema do conhecimento, — logo, os problemas da apreensão do eu e da sinceridade profunda."

Nestes anos que se passaram desde a primeira publicação desse estudo basilar para o conhecimento de Pessoa, muitas outras esclarecedoras e perspicazes analises têm iluminado os mais diferentes campos do universo fernandino. Um dos mais recentes e inteligentes, Pessoa Revisitado de Eduardo Lourenço, leva mais fundo a análise para provar magistralmente não apenas a "unidade" da poesia fernandina, mas a totalidade que abarca os aparentes fragmentos heterônimos. E o problema central apontado continua a ser o do conhecimento. Não fosse ser esse o grande problema do nosso século, para o pensamento reflexivo, para as artes e para a vida.

Já foi analisado e provado que um dos índices básicos da Modernidade é a consciência de que o "eu" pessoal, empírico era o grande obstáculo entre o poeta e o verdadeiro conhecimento do mundo e das coisas (exatamente ao contrário do que exigia o romântico). Nessa ordem de idéias, o "eu" do artista passa a ser visto como um ponto de apoio da despersonalização, que devia servir de fundamento para uma nova apreensão de mundo e conseqüentemente a uma nova linguagem.

Vista pelo prisma dessa modernidade, a heteronímia criada por Fernando Pessoa não se apresenta, pois, como um fenômeno isolado ou absolutamente insólito, mas antes, corresponderia, a uma imposição geral dos novos tempos. A cisão moderna entre Homem e Real que se faz mais aguçado, em nosso século, como consciência-de-mundo e como crise de linguagem, exigindo novas respostas às interrogações de sempre: quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Quem ou o que justifica minha existência? E determina os valores que regem o mundo dos homens? Como posso eu conhecer o Real? E ter certeza da autenticidade desse conhecimento? Em que medida a minha palavra traduz a "verdade" desse Real entrevisto ou pressentido? Etc., etc.

A diversidade de "eus" do universo fernandino tentam, em última análise, dar algumas das várias respostas plausíveis, uma vez que já não era mais possível ao homem-século-XX qualquer resposta unívoca.

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