| |
Hilal Iskandar
A Nadhir e Ibtsan Boucherit
"Ó Humanos, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos
dividimos em povos e tribos para reconhecerdes uns aos outros. Sabei que o mais honrado
dentre vós, ante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus é sapientíssimo e
Oniciente" (Sagrado Alcorão, Al Hujjurat: 13)
Era domingo, 28 de abril de 1996, ou melhor, 10 de Dul-hijja de 1416 A.H., dia do
festival de Eid al-Adha, a mais importante das festividades muçulmanas. Se não me
engano, um conto de Borges, "Uma aproximação à al-Mutazir", passa-se nesta
data o que não é impróprio ou arbitrário, dado o sentido da data e o do conto
disfarçado de resenha.
De todas as minorias da cidade, devemos ser a mais minoritária. Nove muçulmanos
vindos das mais distantes longitudes. Da lendária An-Shi, no centro da China à prosaica
São Carlos, passando por Argélia e Marrocos. Também o grau do sentimento religioso de
cada um de nós é diverso, do fervor devoto à crença derivada da inércia ancestral.
As diferenças e a nossa irrisória quantidade não intimidaram os amigos Nadhir e
Ibtsan, de todos os de chegada mais recente ao Brasil, a abrir mão da idéia de
reproduzir nestas terras tão distantes um Eid. Na noite daquele domingo, encontraram-se
oito pessoas - a nona, doente, não pôde vir: três ou quatro nacionalidades, cinco ou
seis línguas.
A multiplicidade de línguas e referências culturais não nos impediu a comunicação.
Talvez mesmo a tenha facilitado pela necessidade de buscar os termos certos,
explicar-mo-nos mutuamente os conceitos por detrás das palavras que costumamos reproduzir
de maneira automática. Aos poucos, desenvolvemos um certo patois meio misto de inglês,
francês e português, com uma ou outra expressão árabe do vocabulário comum que a
religião nos legou.
Da religião também vinha o laço a unir destinos tão distintos, pátrias tão
distantes, línguas tão diversas. Como converso, tenho talvez algumas desvantagens e
vantagens na compreensão do Islam em relação às outras famílias à mesa. É o meu
primeiro Eid al-Adha com outros muçulmanos e me escapam os ritos e as palavras, os
hábitos seculares transmitidos aos outros na infância. Mas talvez o significado destes
mesmos atos me sejam mais ricos porque preciso buscar seu significado, entendê-los. O que
para os outros a mesa talvez seja um ato repetido dezenas de vezes, para mim é
absolutamente original.
Naquela confusão de línguas e nacionalidades não posso deixar de lembrar-me da
lendária Torre de Babel. Ao lembrar-me dela, não posso esquecer a comparação entre
aquela mesa e a idéia ocidental da diferença. Os mitos idólatras ao redor do mundo
sempre atribuem a diferença a um castigo divino. Na tradição judaico-cristã, a
diferença entre os homens é sempre um sinal do castigo. A maldição da separação dos
homens como castigo pela soberba no episódio da Torre de Babel não é única. Ela
também está presente nas histórias de Caim, Abel e Set; na dos filhos de Noé; na de
Isaque e Ismail, pelo orgulho de Sara.
Ao lembrar da história dos dois filhos de Abrahão (Ibrahim em árabe) lembro-me que o
Eid al-Adha refere-se justamente a ele. É uma lembrança do sacrifício do filho único
do patriarca imposto por Deus como prova à sua fé, substituído instantes antes da hora
fatal por um carneiro como sinal da Sua misericórdia. Com a diferença dos muçulmanos
aceitarem a crença que o sacrificado não foi Isaque, mas Ismail (não por questões
racistas como apontam alguns) a história é relativamente conhecida no ocidente.
O Eid é o símbolo da unidade dos homens, uma lembrança da sua origem comum, da sua
descedência dos Banu Adam, os filhos de Adão - que não implica em nenhuma crença
criacionista, é bom lembrar. No mesmo domingo na al-Makka, homens de todas as
nacionalidades, cores e línguas; da Islândia à África do Sul, do Japão ao Alaska,
estariam como nós celebrando a igualdade oculta dos homens, que nenhuma diferença
material é capaz de ocultar da humanidade se ela tiver juízo.
Lembro-me de um trecho do filme Malcolm X, no qual Malik al-Shabbaz encontra a
identidade perdida e no mosaico étnico do Hajj descobre quão equivocado é o caminho
racista da Nação do Islam nos Estados Unidos. Também descubro no Hajj, que culmina com
o Eid, um sinal da igualdade essencial oculta nas diferentes identidades.
Só no dia seguinte, ao sentar para escrever este artigo, descubro que a oportunidade
de compartilhar um Eid al-Adha dado a nós por Nadhir e Ibtsan foi muito mais rica do que
o planejado. Naquela mesa repleta de línguas e nacionalidades, estávamos talvez vivendo
uma festa original, da qual talvez nenhum deles tivesse participado antes. A essência da
mensagem de unidade e igualdade não obstante as diferenças estava expressa de forma
radical.
Lá pessoas tão distintas, separadas por tantas coisas e unidas por tão pouco tempo -
um dos três casais eu conheci naquele dia - puderam encontrar tanto de comum a ponto de
fazê-los como amigos de longa data. Talvez Deus me dê a oportunidade de participar de
muitos outros eids, mas duvido que algum outro me será tão rico de significados e
lembranças como o deste domingo na casa dos meus amigos argelinos.
Quando era criança, vi uma foto numa enciclopédia - se não me engano chamava-se O
Livro da Vida - na qual uma loura criança européia conversava com um velho mendigo
etíope. A legenda, desnecessariamente, explicava que os ódios raciais eram uma
invenção cultural.
Enquanto comíamos e conversávamos, na sala ao lado Sulaiyman ibn Hilal e Mônica bint
Hai, a primeira geração de muçulmanos nascidos em São Carlos - brincavam juntos e
trocavam palavras naquela língua universal de laleios e balbucios dos bebês, ignorando
algumas centenas de séculos e dezenas de milhares de quilômetros separando a história
de seus pais.
|