"Todo fazedor de jornais deve tributo ao Maligno" (La Fontaine)
Clássico do cinema americano, A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole) quase que
vale por um curso de jornalismo por apresentar reflexões tão atuais que mal se pode
acreditar que tenha sido feito no início da década de 50 (51). Assistir a este filme -
como ler Ilusões Perdidas de Balzac - é essencial a quem se aventura no terreno a cada
dia mais pantanoso do jornalismo.
A história do filme é relativamente simples. Um jornalista desempregado nos grandes
centros por sua conduta questionável busca refúgio em um pequeno jornal da província,
em Albuquerque, no estado do Novo México. Após um longo e tedioso ano ele finalmente
encontra uma matéria que pode lhe levar de volta ao grande circuito: um homem preso em
velha ruínas indígenas, justamente na Montanha dos Sete Abutres que dá o título em
português do filme - até mais adequado que o título original.
O drama humano, as circunstâncias reais ou inventadas pelo repórter para a trama e a
abordagem sensacionalista logo chamam a atenção do público. Aos poucos o repórter
envolve tudo no enredo da sua história, manipula o xerife para ter acesso exclusivo às
ruínas, controla a esposa da vítima para que ela a contragosto desempenhe um papel
teatral como semi-viúva.
Por fim ele obriga o empreiteiro responsável pelo salvamento a adotar um método de
salvamento que demoraria uma semana ao invés de outro que libertaria a vítima em menos
de 24 h, pois precisa prolongar o espetáculo ao máximo. Quando estão próximos de serem
salvos - o soterrado da caverna e o repórter do ostracismo provinciano - a vítima morre
de pneumonia e acaba por provocar um surto de remorso no repórter.
Mas não só o enredo principal permite uma reflexão profunda sobre o jornalismo, a todo
momento o protagonista dita suas máximas e conselhos sobre o ele considera notícia.
Apesar de quase caricaturais, já que ele enuncia coisas que nem sempre são ditas, as
reflexões dele revelam toda a ideologia da "penny press" americana.
"Eu posso cuidar de grandes notícias e pequenas notícias e se não houver notícias
eu saio e mordo um cachorro" ("I can handle big news and little news. And if
there's no news, I'll go out and bite a dog.") diz Charles Tatum ao pedir emprego no
jornal de Albuquerque, brincando com a clássica definição do que é notícia.
Em um dos trechos mais elucidativos da ideologia da "penny press" - quando Tatum
discute durante uma viagem com o novato Herbie Cook o que é jornalismo e o que é
notícia - o protagonista diz que os anos de faculdade de Cook foram inúteis, muito mais
útil teria sido a experiência de Tatum como vendedor de jornais pelas esquinas de Nova
Iorque. Desta experiência ele aprendeu o que é notícia - entendida como sendo aquilo
que interessa ao público, que vende jornal.
A morte de centenas ou milhares de pessoas, prega Tatum, não tem o mesmo interesse que a
morte de uma única pessoa. Neste evangelho do penny press a morte de milhares é apenas
um número, enquanto a morte de uma única pessoa tem "interesse humano", faz
com que as pessoas "tenham interesse em saber tudo sobre ele".
A necessidade da notícia de impacto - que vende - independe da verdade, tanto que o
quadro com a frase "Diga a verdade" na redação do jornal de Albuquerque é
constantemente ironizada por Tatum e pressionado por temores de consciência é com ela
que ele tenta se reconciliar no final do filme. A "construção da notícia"
também é enfocada por Tatum durante a viagem já mencionada, ele e Herbie estão indo
cobrir um festival de "caça a cascavel" e Tatum menospreza o evento, a despeito
das centenas de serpentes. "Não preciso de centenas de cascavéis, dêem-me apenas
umas cinquenta no Centro de Albuquerque", diz ele. O pânico causado pelas cascavéis
caçadas pelas ruas da cidade seria amplificado quando uma única cobra ainda restasse, e
este último réptil estaria guardado na gaveta de Tatum, escondida para que a história
prosseguisse.
Quase não há inocentes na história brilhantemente dirigida por Billy Wilder, a despeito
dela ter sido um grande fracasso comercial. Tatum é quase tão vítima como o acidentado
Leo Minosa, o público que acorre em massa ao local do acidente (que gerou um segundo
título pelo qual o filme é conhecido "The Big Carnival") ou que acompanha com
grande interesse pelos jornais e rádios a epopéia é que fornece o leit-motiv da
abordagem sensacionalista.
A esposa de Minosa, ansiosa por obter dinheiro e sair ela também do buraco, o sherife
ambicioso que se submete à conspiração de Tatum para garantir sua reeleição são
apenas os atores mais evidentes de um enredo de oportunismo do qual só escapa a
patética, quixotesca, figura do pai de Leo, emblemáticamente a única a ficar defronte
1as ruínas após Tatum anunciar a morte de Leo.
Se os jornalistas que acorrem em massa ao evento - como no caso real do soterramento de
Floyd Collins em 1925 que inspirou o filme e inaugurou a "história de fundo
humano" como produto da imprensa - protestam contra Tatum não é pela manipulação
da notícia e da emoção dos leitores, mas sim porque ele conseguiu o monopólio do
acesso a Leo com sua maquinações. Mesmo o aparentemente inocente Herbie demonstra-se
encantado com as teorias de Tatum e ansioso por segui-lo na fama, deixando de lado seus
princípios.
O fracasso do filme é facilmente explicável, afinal dificilmente ele seria bem visto
pela imprensa que se veria retratada nele - e com isto compartilha o destino de seu
contemporâneo Cidadão Kane. Retrata também o gosto da massa, dos consumidores de
notícias ansiosos por uma desgraça que lhes traga alguma emoção à vida, e por isto
certamente também Não agradou.
O filme tem um final dramático, no qual transparece um fundo moral que quase empobrece a
trama com uma alegoria melada. Mas é sobretudo um final otimista porque demonstra alguma
esperança de uma renovação ética do jornalismo. Em uma resenha clássica do filme
William Shriver disse que o filme é para o jornalismo impresso o que outro clássico
"Rede de Intrigas" (Network) é para a TV, ainda que a comparação seja
brilhante é talvez imprecisa.
"Rede de Intrigas" - outro filme essencial aos jornalistas - é apenas uma
atualização do filme de Wilder para a década de 70. A grande diferença é que Network
já não comporta a mesma esperança no final, porque já demonstra a informação em
adiantado estado de mercantilização, já não mais fazendo sentido senão como produto
de uma indústria cultural, feita não mais para informar, mas apenas para ser consumida.
Se em 51 Tatum era um caso extremo, hoje ele seria a regra absoluta de um jornalismo que
não é só industrial por adotar modernos processos de produção e disciplina fabril,
mas também porque não produz informação e sim mercadorias. Hoje já não haveria
espaço para Mr. Boot - o editor do jornal de Albuquerque que orgulhosamente exibe o
quadro "Tell the Truth" e tenta conter os excessos de Tatum - porque sua visão
que a informação é um meio para as pessoas viverem melhor e não um fim em si mesmo já
não tem mais espaço no jornalismo industrial moderno.