INSTITUTO DE CIÊNCIAS RELIGIOSAS

DISCIPLINA: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

PROFESSOR ANTONIO CARLOS MACHADO


O PROBLEMA POLITICO E SOCIAL


O homem é um animal essencialmente político e sociável, como já havia observado Aristóteles na sua Política. Nas condições das eras anteriores, essas características encontraram uma atuação restrita; era até possível então levar-se uma vida retirada, de eremita, longe do barulho e dos acontecimentos do mundo. Hoje tudo isto é impensável, além de impossível. O menor dos atos humanos e qualquer realidade, por minúscula que seja, estão envolvidos num regime social e político que os dirige e os compenetra por toda parte.

Assim, em nosso tempo, os problemas sociais e políticos adquiriram importância fundamental. O problema político é o problema relativo à origem e à fundação do Estado (pólis), à sua organização, à sua melhor forma, à sua função e a seu fim específico, à natureza da ação política e suas relações com a ação moral, as relações entre Estado e indivíduos, entre Estado e Igreja, entre Estado e partidos.

Este problema, tão vasto e complexo, foi estudado em seus diferentes aspectos, quando solicitado pelas instâncias históricas. Assim por exemplo, a questão da origem do Estado, da sua estruturação e da sua forma melhor foi debatida quando guerras ou revoluções colocaram em questão ou puseram fim a um estado, ou a uma forma de governo para substituí-lo por outro. Isto ocorreu na Grécia, no século V, em decorrência da guerra com os persas, das guerras entre Atenas, Esparta e Tebas e das guerras civis nas cidades-estado. Foram tais conjunturas históricas que induziram os sofistas, Platão e Aristóteles a examinarem o problema da origem do Estado, da sua função e da sua forma ideal. O mesmo ocorreu no século XVII, ao tempo das guerras religiosas, da Guerra dos 30 anos, das revoluções e das guerras civis na Inglaterra e na França. Estes eventos determinaram as especulações políticas de Hobbes, Bacon, Locke, Campanella, Hume e Rousseau. Em tempos recentes, o problema do Estado foi tratado por Hegel, Marx, Engels, Lênin, que determinaram longas correntes de pensamento e atuações inspiradas em suas ideologias.


1. Natureza social do homem


O homem é essencialmente sociável: sozinho não pode vir ao mundo, não pode crescer, não pode educar-se; sozinho não pode nem satisfazer suas necessidades mais elementares, tem realizar suas aspirações mais elevadas; ele somente pode obter isto em companhia dos outros. Por isto, desde seu primeiro aparecimento sobre a terra, encontramos sempre o homem colocado em grupos sociais, no início bem pequenos (a família, o clã, a tribo) depois sempre maiores (a aldeia, a cidade, o Estado). A medida que o nível cultural da humanidade se eleva, também a dimensão de sociabilidade torna-se mais ampla e rica. Hoje ela alcançou um horizonte ilimitado: de nacional tornou-se primeiro internacional, depois intercontinental e já está assumindo proporções planetárias.

Os modernos meios de comunicação colocaram cada um de nós em contato com todos os fatos (importantes ou insignificantes) que acontecem em qualquer parte do mundo. Portanto, a vida de cada de nós agora "pode ser transtornada de cima abaixo devido a um fato acontecido numa parte do mundo em que jamais se pôs os pés a qual, quando muito, se faz uma imagem muito vaga". "O menor dos atos humanos e qualquer realidade, por minúscula que seja, estão envolvidos num regime social que os dirige e compenetra de qualquer parte. Não posso cumprir o menor ato comercial, pretender o mais modesto salário, regular o contrato mais elementar, sem imediatamente sentir-me cercado por todo lado - e também sustentado - pela solidariedade econômica, social, jurídica, que constitui a própria base do meu contrato, do meu trabalho, do meu comércio, independentemente e além de minhas intenções. E isto numa interseção que, de um lado a outro do mundo, multiplica-se sem fim numa rede inextricável e invencível: um golpe na Bolsa de Nova York acresce hoje, sem que eu me interesse, meu capital, mas amanhã minha pequena empresa poderia falir sob a concorrência avassaladora da indústria japonesa. O mesmo deve-se dizer para qualquer outro setor". O quanto a trama social seja hoje vasta e profunda foi demonstrado, nestes últimos anos, pelo embargo do petróleo, nas relações do Ocidente com os países árabes durante o conflito árabe-israelense. Este simples achado dos árabes bastou para colocar em crise o imenso castelo da civilização do consumo, o próprio conceito de progresso e o modelo de desenvolvimento do mundo ocidental.

A sociabilidade assumiu, em nosso século, tais proporções que pode legitimamente ser considerada um fenômeno típico de nosso tempo. A dimensão privada praticamente desapareceu. Com muito custo podemos ocultar nossos pensamentos e nossos desejos. Mas tão logo estes se traduzem em ação, tornam-se apanágio também dos outros e, graças à televisão, ao rádio e à imprensa, num piscar de olhos são divulgados pelos quatro quadrantes da Terra. O isolacionismo hoje não é mais possível. “Se devemos de qualquer modo sobreviver, é claro que sobreviveremos somente como membros uns dos outros. A linha entre o privado e o público torna-se sempre mais confusa. Bem ou mal, este tempo em que vivemos é a época da planificação: da assistência social, do condomínio e, no plano internacional, das organizações supranacionais. A capacidade do indivíduo de agir e até de pensar com certa independência em relação a seu meio social, ou em oposição a este vai-se constantemente reduzindo. Isto significa que o nosso ideal de liberdade e de sociedade livre não pode ser simplesmente definido em termos de in-dependência. Para o homem contemporâneo a redenção coincide com a sua capacidade de tornar-se não um indivíduo - cuja independência seria, na realidade, impotência frente à gigantesca máquina do Estado -, mas sim uma pessoa que possa encontraar (e não perder) a si mesma na interdependência da comunidade. O conteúdo da sua salvação no seio da sociedade consiste, para o homem moderno, em descobrir-se a si mesmo como pessoa que deliberadamente decide a favor de uma relação de interdependência com os outros; cônscio de que sua natureza é feita para colocá-lo em relação com os semelhantes, ele quer positivamente esta interdependência, antes do que sofrê-la por efeito das pressões de sua época. A alternativa para 'eles' não é o 'eu', mas o 'nós'”.

Atualmente, enquanto por um lado os direitos da pessoa humana e sua exigência de liberdade obtêm reconhecimento universal, por outro os sistemas políticos, as estruturas econômicas e sociais, as descobertas da ciência e da técnica e o aparelho estatal ameaçam sufocá-los inexoravelmente.

Esta situação recoloca com especial urgência o problema tantas vezes debatido também nas épocas anteriores, a respeito da origem, natureza e funções do Estado, e das relações entre os indivíduos e a sociedade.


2. Problema da origem do Estado


O Estado é uma realidade empírica cuja existência é incontrovertível, mas é também uma realidade extremamente mutável: nasce, desenvolve-se e, desenvolvendo-se, assume múltiplas formas, e freqüentemente, por razões várias, debilita-se e desagrega-se. Tudo isto faz do Estado uma realidade problemática. Antes de tudo problemática no que concerne à sua origem. Donde provém o Estado? Quem é seu autor, sua causa, seu fundamento? A esta interrogação foram dadas muitas respostas, das quais as principais parecem ser as seguintes:


a) origem natural do Estado. O homem é essencialmente sociável: por si só não pode satisfazer suas necessidades nem realizar suas aspirações; somente pode obter isto em companhia dos outros. Com efeito, é a própria natureza que induz o indivíduo a associar-se com outros indivíduos e a organizar-se em comunidade, em Estado. Os principais teóricos da origem natural do Estado são Aristóteles, Hegel e Marx. Segundo Aristóteles, "é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é por natureza um animal político. Aquele que por natureza não tem Estado é superior ou inferior ao homem, quer dizer, ou um deus ou uma fera”. O motivo pelo qual nasce o Estado é o de tornar possível a vida, e também uma vida feliz. E visto que o alvo da vida humana é a felicidade, a razão de ser do Estado é a de facilitar a obtenção da felicidade.

Para Hegel, a natureza de Aristóteles torna-se o Espírito Absoluto; portanto, o Estado originou-se pela vontade -do Espírito Absoluto, de quem ele é, antes, a atuação conclusiva. De fato, segundo Hegel, o Espírito Absoluto expressa-se e desenvolve-se na história, a qual é essencialmente história do homem. Este como ser sociável une-se espontaneamente' aos outros. De tal modo surgiram as diversas organizações: primeiro a família, depois a sociedade civil e por fim o Estado. A família é a união amorosa de pelo menos duas pessoas. A sociedade civil é uma condição na qual há uma mútua dependência de todas as pessoas em relação a todas as outras, sendo elas uma coleção de indivíduos independentes. Esta apóia-se sobre um sistema de necessidades. O Estado é uma instituição concreta que unifica e dá uma realidade mais alta à vida ética de seus membros individuais. Portanto, o Estado é "a idéia do Espírito Absoluto na manifestação externa da vontade humana e de sua liberdade".

Também para Marx, como para Aristóteles, excluída a linguagem idealista (sustentada por Hegel), o Estado deve sua origem à própria natureza das coisas: deve sua origem à própria natureza do homem, que é feita de tal modo que lhe é consentido satisfazer as suas necessidades mais elementares de sobrevivência somente com a ajuda, concurso ou com a assistência de outros homens. Não se pode, pelo contrário, dizer o mesmo das diferentes formas concretas que o Estado assume na história. Elas não se devem à natureza, mas ao arbítrio humano: à sua decisão de distribuir de um ou de outro modo os três elementos constitutivos fundamentais da estrutura básica do Estado, que é a econômica: o trabalho, o capital e os instrumentos de produção;


b) origem convencional. Esta teoria diz que ao início, em seu primeiro aparecimento sobre a face da terra, o homem - o indivíduo - era plenamente auto-suficiente e, por isso, para viver e desenvolver-se não precisava unir-se aos outros. Contudo, a presença de tantos outros pequenos centros de poder (que eram os outros homens) fez, inevitavelmente, ocorrerem conflitos, e para serem evitados, foi necessário tratar com os outros, pôr-se de acordo com eles, renunciando a qualquer direito e sujeitando-se a alguns deveres. Assim, com base em tal acordo surgiu o Estado.

Esta teoria, já elaborada pelos sofistas, foi retomada e desenvolvida por muitos filósofos modernos, em particular por Spinoza, Hobbes, Locke e Rousseau. Cada um destes autores apresentou uma versão pessoal da teoria convencionalista ou contratual. Para Spinoza e Hobbes, o contrato social tem caráter irreversível; uma vez que se renuncie aos próprios direitos, para constituir o Estado, não se pode mais retomá-los e voltar atrás. Para Locke e Rousseau, em contrapartida, o contrato social tem caráter reversível;


c) origem sobrenatural. Esta teoria considera o Estado como conseqüência da queda do homem de uma condição originária de perfeição e de felicidade na qual não precisava de apoio e ajuda por parte dos outros. Já anunciada por Platão, a teoria da origem sobrenatural do Estado foi desenvolvida de forma orgânica por dois grandes pensadores cristãos, Agostinho e Vico.

Agostinho afirma a existência de duas grandes associações do espírito: a civitas dei (cidade de Deus) e a civitas terrena (cidade terrena ou Estado). Ambas estão fundadas sobre o amor. Mas enquanto a cidade de Deus está fundada sobre o amor de Deus, um amor tão altruísta que não teme chegar até ao sacrifício total de si mesmo, da própria vida, a cidade terrena é fundada sobre o amor próprio, um amor de tal modo cego e egoísta que chega até ao desprezo e à abjuração de Deus; "O que dá alma à sociedade terrena (civitas terrena) é o amor próprio a ponto de desprezar Deus ".

Historicamente, a origem da civitas terrena remonta à queda dos primogenitores, mas encontra sua primeira expressão simbólica na Torre de Babel. Como na Torre de Babel, também na civitas terrena reina permanentemente a confusão, a violência, a perversidade, a miséria. Porém, na opinião de Agostinho, a expressão mais monstruosa foi alcançada pela civitas terrena no Império Romano, exemplo supremo de conquista e exploração brutais: o "banditismo em grande escala" .


Também para Vico o Estado deve sua origem ao pecado, ou seja, a um ato de rebelião do homem em relação aos desígnios de Deus. Entretanto, Vico não tem, absolutamente, uma opinião tão negativa e pessimista do Estado como Agostinho. Com efeito, antes que uma invenção dos homens para melhor satisfazer seus anseios egoístas, é uma criação providencial com a qual Deus trata de tirar o homem de suas misérias. "É de suma admiração a providência divina que, entendendo os homens bem diversamente, levou-os primeiro a temer a divindade (com o primeiro raio. . .) Depois, com a própria religião, os dispôs a se unirem á determinadas mulheres para perpétua companhia de suas vidas: são os casamentos, reconhecidos como fonte de todos os poderes; e então percebiam terem fundado, com essas mulheres, as famílias, que são o seminário das repúblicas.


3. Relações entre "Estado" e "Igreja"


O "Estado" é por definição uma sociedade perfeita com um fim último próprio (o bem comum dos homens neste mundo) e com meios adequados para alcançá-lo. Mas também a "Igreja" considera-se uma sociedade perfeita, possuindo um fim último a alcançar (a salvação eterna do homem) e meios apropriados a serem utilizados para obtê-la.

Estado e Igreja por si só, tendo objetivos e instrumentos essencialmente diferentes, deveriam configurar-se como duas sociedades completamente separadas, mas de fato essa completa separação não pode acontecer. Primeiramente, porque os sujeitos das duas sociedades são os mesmos: os cidadãos de um Estado são normalmente também os membros de uma Igreja. Em segundo lugar, porque os objetivos que as duas sociedades perseguem não são totalmente estranhos uns aos outros, não sendo concebível um autêntico bem-estar que se desinteresse pela salvação espiritual do homem, nem uma salvação espiritual que esteja desligada de um concreto bem-estar material.

O ponto de partida para qualquer discussão do problema das relações entre Estado e Igreja é dado pelas claras palavras de Jesus: "dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mt 22,21) e por outras palavras dirigidas a Pilatos:" não terias poder algum sobre mim, se não te houvesse sido dado do alto" (Jo 19,11).

Nessas palavras estão expressos claramente dois princípios: primeiro, a existência dos dois poderes: o do Estado e dos reinos terrenos e o de Deus e da Igreja, corpo místico de Cristo. Estes dois poderes são essencialmente de natureza diferente, como diferentes são os seus fins: o primeiro ocupa-se da felicidade terrena do homem, o segundo tem por fim a sua felicidade eterna. Segundo, também o poder da sociedade política vem do alto: “omnis auctoritas a Deo”. Com essa afirmação entende-se que o poder terreno encontra sua justificação não em si, mas em Deus; portanto, afirma-se um nexo com o poder dado à Igreja.

Entretanto, Jesus não deseja determinar as aplicações concretas desses princípios universais. Isso deve ser tarefa de todos os cristãos inseridos no próprio momento histórico.

A questão das relações entre Igreja e Estado provocou debates prolongados e acesos, principalmente durante a Idade Média, no momento em que a Igreja dotada de um domínio próprio temporal encontrava-se em convívio com um Império (Sacro Império Romano) que abraçava os mesmos súditos e apoiava-se sobre bases jurídicas derivadas do cristianismo. Sob tal situação ainda era possível manter uma diferenciação entre Estado e Igreja? Qual?

Três foram as principais soluções elaboradas pelos políticos medievais para este difícil problema:

A - solução de Tomás de Aquino: entre Estado e Igreja ocorre uma subordinação indireta do primeiro à segunda. Ambas são sociedades perfeitas, mas o fim perseguido pela Igreja (a salvação eterna do homem) é superior àquele perseguido pelo Estado (o qual visa somente o bem-estar do homem material) e isto justifica uma subordinação indireta.

B - solução de Bonifácio VIII: subordinação direta do Estado à Igreja, pois o Estado está a serviço da Igreja e porque, enquanto o papa recebe a autoridade diretamente de Deus, o imperador deriva sua autoridade do pontífice romano.

C - solução de Marcílio de Pádua: subordinação direta da Igreja ao Estado. Este provê o bem-estar total de seus súditos e, portanto, também o espiritual: o papa, os bispos, os padres são ministros, funcionários do Estado encarregados de prover o bem espiritual dos cidadãos.

Do renascimento em diante, com a progressiva afirmação da autonomia da política em relação à moral e à religião, as teorias de Bonifácio VIII, Marcílio e Tomás caem em desuso e passa-se sempre a dar maior crédito à teoria da nítida separação entre Igreja e Estado.

Também essa hipótese, na prática, não está isenta de dificuldades, em virtude do que lembramos mais acima, isto é, que os mesmos indivíduos fazem parte tanto do Estado quanto da Igreja. Pode ocorrer (e efetivamente ocorre muito freqüentemente) que as decisões do Estado estejam em conflito com as das diferentes igrejas. Assim, a separação que fora elaborada teoricamente na realidade cotidiana não é facilmente realizável.

Mas à base do conflito moderno que deseja oposição total entre Igreja e Estado está o mal-entendido de quem não pretende considerar a “Igreja” a não ser em termos humanos, não lhe reconhecendo outro valor que o de instituição humana, nascida na história, como fato humano que, como todos os fatos humanos, pode ser modificada ou destruída. Quem considera a "Igreja” como fato humano tende a lançar todas as culpas, que os homens manifestam, sobre a própria Igreja. É preciso reconhecer ainda que, se o cristianismo fosse traído pelos cristãos (mas na realidade existem sempre homens que realizam plenamente o cristianismo em todas as épocas), isso não invalidaria os ideais e a realidade que a Igreja traz ao mundo. Do mesmo modo que no plano das civilizações humanas, estas não se julgam pelo comportamento desatinado por parte de seus próprios membros.


4. Relação entre fé e política


Atualmente o problema da relação política-religião não se configura mais apenas como estudo das relações entre Estado e Igreja, entendidas como duas associações autônomas e completas em si mesmas.

Cada igreja é hoje vista como uma comunidade espiritual que mantém seus membros unidos unicamente através do vínculo do amor, sem estruturas temporais que possam fazê-la aparecer como um estado em concorrência com os outros estados.

Nem por isso pode-se excluir a Igreja ou as igrejas dos acontecimentos de nosso mundo e confiná-las ao mundo impalpável das almas.

Nos últimos anos, muitos teólogos ressaltaram a importância da dimensão política da mensagem cristã e, em conseqüência, do empenho político de cada cristão, particular ou coletivamente. Antes de tudo, destaca-se que o destinatário da Palavra de Deus e da sua obra de salvação é o homem. Ora, este não é uma mônada, um anjo, um monge, mas um ser essencialmente sociável, um "animal político", como dizia Aristóteles. Ele não se realiza na clausura de sua alma, contemplando a verdade, mas na abertura intersubjetiva , na relação receptiva e comunicativa com os outros, inserindo-se numa sociedade, e valendo-se das suas múltiplas estruturas. Este aspecto político do ser humano está no centro da revelação na Bíblia (Antigo Testamento), a qual se ocupa constantemente das estruturas sociais e políticas do povo eleito, subtraindo-o ao domínio de seus inimigos (Exodo), determinando sua organização em tribos, atribuindo-lhe determinadas formas de governo, etc.

No Novo Testamento a atenção à dimensão política é menos explícita, mas encontra-se sempre presente. Embora não tomando iniciativas políticas, Jesus está envolvido na política. Sua conduta e seu ensinamento provocam a violenta reação dos poderes políticos constituídos. Ele torna-se a sua vítima. O "potencial subversivo" da sua doutrina e da sua graça, contudo, não será sufocado. Este agirá profundamente sobre as relações humanas, sobre as estruturas sociais e, pouco a pouco, as transformará radicalmente.

Portanto, existe um impacto inevitável da fé sobre a política. E se isto pode ser verdadeiro para qualquer fé, o é em modo singular para a fé cristã, que é fé na libertação do homem: para isto contribui O cristão com o testemunho da sua fé, a qual não é conseqüentemente aceitação passiva, nem contemplação estática da palavra de Deus, mas é atuação dinâmica das promessas divinas em ordem à plena realização do Reino de Deus anunciado por Jesus.


5. Leitura política da mensagem evangélica


Essas importantes razões (a natureza do homem e o processo histórico da revelação de Deus) autorizam uma leitura “política" da mensagem evangélica. Esta, entretanto, não pode ser lida exclusivamente em chave política, como muitos hoje pretendem.

De fato, o político é apenas um aspecto da mensagem cristã. Esta tem por objetivo, antes de tudo, o indivíduo (e depois a sociedade), e no indivíduo considera em primeiro lugar a dimensão interior: a conversão do espírito, a transformação do coração. Os profetas do Antigo Testamento e Jesus Cristo querem instaurar um novo tipo de relações, baseado essencialmente no amor, entre o homem e Deus e entre cada homem. Porém não tentam realizar tal objetivo com a força, com a violência, com as armas, mas sim com a transformação interior das almas, chamando-as à conversão com o testemunho das obras, com o ensino da verdade, com a paciência, a caridade e o sacrifício de si mesmos.

O amor por Deus e pelo próximo é o verdadeiro mandamento "político" de Jesus. Não o amor romântico, mas o amor crítico, não entendido apenas como ajuda caritativa ao próximo, mas como dedicação plena à justiça, à liberdade e à paz. Isto comporta uma crítica decidida contra toda forma de poder puro e um concreto empenho para transformar toda situação política opressora dos homens.

Frente aos grandes temas políticos o cristão sabe que a vida política tende para um bem comum que é superior à simples soma dos bens individuais, um bem que deve derramar-se sobre as pessoas humanas, isto é, sobretudo um bem relativo à melhoria da vida humana, não somente no plano dos desequilíbrios econômicos, mas também no dos valores espirituais, permitindo a cada um viver sobre a terra como homem livre e gozar dos frutos da inteligência humana.

Para o cristão a liberdade é uma realidade da qual deve tornar-se digno; a igualdade com os outros homens instaura-se somente num clima de respeito recíproco e de fraternidade, e não numa luta pela afirmação de uma só classe sobre as outras; a justiça é a força de conservação da comunidade política e a condição indispensável para permitir à "amizade cívica" tomar forma “conduzindo os desiguais à igualdade".

Poder-se-ia objetar que o cristão, segundo essa visão ideal, aparece estendido numa visão vertical, todo voltado à afirmação de princípios espirituais e morais que o desencarnam do mundo atual. É a acusação notória da alienação do cristão diante das responsabilidades do mundo presente. Na realidade, na natureza humana está presente também o movimento horizontal, também ele determinante à plena realização do homem em si mesmo. Tal movimento horizontal diz respeito à evolução da humanidade e revela progressivamente a substância das forças criadoras do homem na história. É o movimento horizontal da civilização que, orientado em direção a fins temporais autênticos, ajuda a tensão vertical da humanidade. O ideal supremo a que deve tender a obra política e social da humanidade é. a inauguraçãode uma cidade fraterna, a qual não comporta que um dia todos os homens sobre a terra serão perfeitos e amar-se-ão fraternalmente, mas a esperança de que o estado existencial da vida humana e as estruturas da civilização avizinhar-se-ão sempre mais da perfeição, cu;a medida é a justiça e a fraternidade.

"Este ideal supremo é também o da democracia autêntica, o ideal de nova democracia que todos esperamos. Esta exige não só a potencialização de todas as estruturas técnicas e uma organização sócio-política sólida e racional nas sociedades dos homens, mas sobretudo uma filosofia heróica da vida e o fermento interior vivificante da inspiração evangélica”.


(Texto adaptado a partir de MONDIN, B., INTRODUÇÃO À FILOSOFIA, 114-129)



Retorna à página do Curso de Introdução à Filosofia

1