O HOMEM E O MITO - A alvorada do pensamento discursivo


Antonio Carlos Machado


Mito quer dizer conto. Todos os povos sempre produziram seus contos, suas lendas, seus personagens extraordinários. Na Grécia antiga ou nos sertões do Nordeste, o mito é uma presença constante e viva na mentalidade do povo simples, que povoa o seu mundo com ídolos benfazejos e malfazejos, criações fantásticas de sua imaginação exuberante. No tempo de Homero (século VII, A.C.), mito designava um discurso genérico acerca das coisas e somente mais tarde essa palavra passou a significar um "conto sobre a divindade", uma história que envolvia o céu e a terra, os seres celestes e os mortais.

A origem do mito perde-se na penumbra da pré-história, mas podemos fazê-la coincidir, ao menos virtualmente, com o acontecimento chave, que demarcou inexoravelmente o surgimento da espécie humana, um acontecimento de extraordinária importância no longo caminho da evolução do homem, que foi o despertar da consciência, do pensamento reflexo. Até então aterrorizado e subjugado pelas forças da natureza, o homem começa a compreender que o raio incendiário, a tormenta voraz, o mar tempestuoso ou o sol que escurece no meio do céu não são fenômenos casuais e aleatórios, mas têm alguma causa, obedecem a uma lei misteriosa, a alguma autoridade poderosa da qual depende a vida de tudo e de todos: Não sabendo determinar com clareza qual seria esta causa, o homem passa a atribuí-la ao numinoso, ao excelso, ao destino, ao senhor da terra, ao espírito cósmico, não importa qual seja a denominação ou a personificação que estas forças passem a ter, elas funcionam como explicação e como origem para tudo o que ocorre.

A explicação advinda do mito é, geralmente, absurda, irracional, até contraditória. Mas isto é o que menos importa. O que interessa não é aquilo que está sendo afirmado, mas o fato de que, por trás desta afirmação, há um esforço de correlacionar um efeito a uma causa, de descobrir um nexo entre as coisas e a sua origem mais profunda. A partir de então, começa a lenta vitória da inteligência sobre o medo milenar da escuridão, da morte: o caos, o cego aglomerado da matéria primordial, anima-se, cria vida e toma forma, torna-se um cosmos, isto é, um universo organizado, onde cada força cósmica recebe um nome e uma função.


Na fantasia primitiva, os seres mitológicos ocupavam todo o espaço do pensamento, abrangendo todos os fenômenos e conferindo brilho às inteligências de então. Na Grécia antiga, por exemplo, Urano é o céu ("aquilo que está em cima") e Gaia ou Géia, a terra ("o que está embaixo); Eros é o amor, "o palpitar que distende o corpo". Urano une-se a Gaia e dessa união nasce Cronos, o tempo. Une-se novamente à terra e ao mar e povoa o universo com seres os mais diversos. Cronos, num ato de rebeldia, castra o pai (Urano), extinguindo sua fecundidade, e com isto torna-se o senhor do universo, a quem impõe sua vontade , em forma de dias, horas, anos, séculos.

A criação deste mundo fantástico tem ainda outra vantagem: agora o homem não está mais sozinho. Ele sabe que em cada fenômeno da natureza se escondem as presenças sobre-humanas; aprende a reconhecê-las e a chamá-las pelo nome e oferece sacrifícios e preces em sua homenagem para merecer proteção. O universo fica mais rico e o homem se sente mais seguro. Nascem aí os primeiros templos, os primeiros altares, nasce o culto do sagrado.

Moldados pela visão antropomórfica, os seres mitológicos, embora superiores aos homens, têm também os mesmos vícios e virtudes. O seu local de morada foi indicado no monte Olimpo, um pico da Tessália, cercado de brancas nuvens e bafejado por tépidas aragens, de onde se pode manter controle sobre a região toda em derredor. Contudo, os deuses eram também influenciados pelos hábitos dos humanos e muitas vezes preferiam a terra ao céu e o amor dos mortais ao dos imortais. Nascem, então, os bastardos, meio deuses e meio homens, os semideuses que, colocados pelo Destino, entre o céu e a terra, participam igualmente de prerrogativas divinas e limitações humanas. O Olimpo torna-se pequeno para acolher a enorme proliferação de deuses, cada um gerador de forças que governam cada ato da vida. E daí muitos deuses se transferem para a terra e passam a morar entre seus adoradores. Este é um outro momento de grande importância para a evolução da consciência humana, a percepção da proximidade entre o céu e a terra, quando o homem compreende que seu corpo mortal pode acolher e conservar em si a imortalidade, própria dos deuses.

Este mundo misterioso tem um guia, um intérprete, um responsável: o sacerdote. Em geral, é aquele indivíduo mais perspicaz, que é capaz de perceber mais além dos outros e descobrir a chave deste universo fantástico. Ele compreende a metáfora do poder divino e enxerga para além dela as forças naturais que governam os fenômenos Ele se destaca entre os seus semelhantes por ser capaz de alcançar aquilo que os outros ignoram ou temem e deste modo fica fácil para ele impor-se ao grupo, criando uma sólida liderança. Ele se torna o intérprete da tribo, aquele que tem, por intrepidez ou por ousadia, o poder de interferir nos poderes divinos e comandar as forças invisíveis que governam tudo, e que se manifestam por sua atuação. Esta 'ciência secreta’ dos sacerdotes é um grande segredo que somente uns poucos terão o privilégio de conhecer, ou seja, o sacerdote as cerca de todos os cuidados para preservar a sua dignidade, seja morando em casas separadas dos outros, seja usando vestes diferentes ou fazendo uso de drogas miraculosas. O papel exercido pelo sacerdote primitivo foi uma espécie de antecipação do poder que a ciência exerce atualmente sobre a sociedade, e que era então exercido em nome da religião. A ciência secreta tornou-se a ciência natural e a casta sacerdotal converteu-se na classe cientifica.



COSMOGONIAS E FILOSOFIA: Do Mito Para o Logos



As cosmogonias são os mitos que narram a origem do universo. Em geral, associam-se às teogonias, mitos que narram as origens dos deuses, porque, no inicio, as origens dos deuses se confundem com as origens do universo. Vejamos o que diz Hesíodo, em sua Teogonia: "Antes de todas as coisas, surgiu o Caos; depois Géia (terra), de vasto seio, assento sempre firme de todos os Imortais que habitam os cumes do Olimpo, e o Tártaro tenebroso nos recessos da terra espaçosa, e Eros, o mais belo dos Deuses Imortais... Do Caos nasceram Erebo e a negra Noite; da Noite foram gerados o Eter e o Dia. A Terra gerou, semelhante a si própria em grandeza, o Céu (Urano)... e gerou depois os grandes montes, morada dos deuses e das Ninfas, que habitam nos seus vales." E Aristóteles diz, na Metafísica: "O amante do mito é, de certo modo, também um filósofo, uma vez que o mito de compõe de coisas admiráveis. Costuma-se dizer que os deuses têm forma humana ou se transformam em semelhantes a outros seres viventes... Porém, pondo-se de lado tudo o mais e conservando-se o essencial, poderia pensar-se que isto foi dito por inspiração divina e, provavelmente, de toda Arte e Filosofia destruídas nas catástrofes, estas opiniões conservaram-se até agora, quase como relíquia."

Algo que sempre chama a atenção dos estudiosos é o caráter antropomórfico dos personagens mitológicos. Este antropomorfismo mitológico têm também grande importância, por outro aspecto mostra-nos que os problemas cósmicos foram concebidos inicialmente sob a forma de problemas humanos, traduzidos na personificação dos fenômenos naturais em deuses, semideuses e heróis. Isto nos leva a concluir duas coisas:

      1. que na concepção dos povos primitivos, as mesmas forças que governavam a natureza, agiam também no mundo humano;

      1. que ao procurar compreender a natureza, o pensamento mítico já possuía conceitos relativos ao mundo humano.

Por outras palavras, significa que a reflexão sobre o mundo humano precedeu a reflexão sobre o cosmos, e isto ilide a convicção tradicional, geralmente aceita pelos historiadores e filósofos, de que a atenção do homem se voltou em primeiro lugar para a natureza física e somente depois para os problemas humanos. "Deve-se acrescentar a estas observações que não só as cosmogonias filosóficas se modelam em parte sobre as precedentes teogonias míticas, dominadas pelas relações de geração e luta, mas que o mesmo conceito de cosmos é tirado do mundo humano para ser aplicado à natureza, ou seja, que toda a visão unitária da natureza é apenas uma projeção de visão da polis (sociedade e estado dos homens) no universo." (R.Mondolfo, O pensamento antigo, p. 15)

Para uma visão habituada aos elevados padrões tecnológicos da ciência do século XX, as explicações mitológicas não passam de tentativas grosseiras, absurdas e até jocosas de interpretação dos fenômenos da natureza. No entanto, visto dentro da perspectiva da evolução da consciência humana para formação do pensamento lógico, racional, o mito representa a primeira e real aproximação da racionalidade e a sua forma se manifesta como uma etapa compreensível e necessária para a instalação do pensamento filosófico e cientifico, que ocorreu depois. A evolução do mito levou o pensamento ao limiar da racionalidade, preparou o terreno. No entanto, esta transição do mito para o logos não pode jamais ser entendida como uma destruição do primeiro pelo segundo. O logos superou o mito (superação dialética, em verdade), sem comprometer a sua pureza e legitimidade. Basta observar-se a sobrevivência do pensamento mítico mesmo em meio a toda a avalanche do saber filosófico e cientifico a que chegamos atualmente. O mito continua a ser inesgotável fonte da sabedoria popular, intocável demonstração da inteligência livre e criadora, mantendo-se sempre bastante aproximado da produção artística.


Não é, porém, tarefa fácil traçar a fronteira entre o período em que prevaleceu o pensamento mítico e o aparecimento do pensamento racional. A epopéia de Homero, por exemplo, demonstra tão estreita interpenetração do pensamento mítico com os elementos racionais, que se torna impossível separá-los. Esta tarefa se torna ainda mais problemática se entendemos que não houve uma ruptura drástica entre ambos, mas sim uma passagem lenta e gradual. Os primeiros filósofos da natureza sucedem às teogonias, sem solução de continuidade, e no entanto, realizam extraordinário avanço em relação a estas. Tales continua Hesíodo e o supera, sem que isto signifique um rompimento traumático. No dizer de W. Jaegger, orientalista alemão, "esta íntima conexão (entre o mito e o pensamento racional) dá unidade arquitetônica à história do espírito grego... Não é fácil decidir se a idéia dos poemas homéricos, segundo a qual o Oceano é a origem de todas as coisas, difere da concepção de Tales, que considera a água o principio originário do mundo." Esta íntima relação entre as duas formas do pensamento é, sem dúvida, o aspecto mais intrigante e desafiador para o estudioso das origens da filosofia. Aquilo mesmo que os distingue e também o que os une. "O início da filosofia cientifica não coincide, assim, nem com o principio do pensamento racional nem com o fim do pensamento mítico", complementa W. Jaegger.

A partir deste ponto de vista, devemos considerar a origem da filosofia e da ciência (pensamento lógico, racional) como um processo de progressiva racionalização da visão religiosa do mundo implícita nos mitos. Se visualizarmos como uma série de círculos concêntricos, partindo da periferia para o centro, veremos que o processo pelo qual o pensamento racional toma posse do mundo se realiza na forma duma progressiva penetração que vai das esferas interiores para as mais profundas e interiores, até chegar ao centro, isto é, à alma, mais tarde, com Sócrates e Platão.


Pode-se afirmar que o mito nunca foi e nem será jamais totalmente extirpado da vida humana, porque a sua origem se confunde com a do próprio homem e a sua residência se encrava nos meandros mais recônditos, lá onde nenhuma ciência é capaz de penetrar. Nos últimos tempos, as pesquisas dos psicólogos evidenciaram que a maior parcela das motivações e decisões humanas se localiza exatamente naquelas regiões penumbrosas do pensamento, não acessíveis à luz do pensar racional. Estimativas mais ambiciosas calculam que somente de 10 a 20 por cento da capacidade intelectual humana é exercitada sob o comando do pensamento lógico; Independentemente, porém, do aspecto quantitativo, parece cada vez mais evidente que o avanço da ciência não está representando um maior empenho da faculdade intelectiva humana. O avanço linear da ciência não tem possibilitado aquilo que Kant chamou de "dar um passo para trás", como sendo a característica do pensamento reflexo. Quer dizer, neste campo, permanece intocada e inatacável o atuação do mito.

Não é sem motivo, portanto, que a atenção dos pensadores humanistas tem se voltado, nos últimos anos, para o estudo do imaginário, nome pelo qual passou a ser designado todo o acervo de pensamentos e afetos meta-racionais da vida humana. Historiadores, sociólogos, filósofos, antropólogos têm se dedicado a discutir largamente estes aspectos, até bem pouco, anatematizados pela filosofia e pela ciência. Neste contexto, cabe perfeitamente lembrar o enunciado profético de Ludwig Wittgenstein, no seu famoso Tractatus Logico-Philosophicus: depois que os cientistas houverem resolvido todas as suas dúvidas, os grandes problemas humanos não foram sequer tocados. Tudo leva a crer que eles, tanto quanto os mitos, são perenes.




Bibliografia:


l. MONDOLFO, R., O pensamento antigo, Ed. Mestre Jou.

2. JAEGGER, W., Paidéia, A formação do homem grego, Ed.UnB

3, NARDINI. B., Mitologia: o primeiro encontro, Ed. Circulo do Livro



Retorna à página do Curso de História da Filosofia
1