INSTITUTO DE CIÊNCIAS RELIGIOSAS

DISCIPLINA: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

PROF. ANTONIO CARLOS MACHADO

 

A FILOSOFIA E SEUS MÉTODOS

 

1.      AS VIAS METODOLÓGICAS

 

            Na filosofia, assim como em outras disciplinas, a solução de problemas é o resultado da articulação de algum método, ou seja, de algum mecanismo ou instrumental, que possa determinar os critérios da veracidade ou falsidade. Entretanto, há muitos problemas para os quais não temos nem solução, nem método para obter uma solução. Aliás, métodos que servem para solucionar um conjunto de problemas podem ser totalmente inoperantes para solucionar outros. Formular e testar afirmações, previsões e explicações; descobrir meios de chegar a uma reflexão mais precisa e eficaz – essa é a finalidade de qualquer método.

            Considerando a diversidade dos problemas filosóficos, vários métodos têm surgido na filosofia no decorrer dos séculos, mas há algumas constantes que sempre aparecem nessa variedade de métodos. O fundamento e a base de todos os métodos é o senso comum ou bom senso, o conhecimento compartilhado por todos. Esta é a fonte do conhecimento mais fundamental, o ponto de partida de toda reflexão. Podemos aprimorá-lo, mesmo ultrapassá-lo, porém nunca dispensá-lo.

            Porém, o senso comum ou bom senso por si só não basta. Diante dele, a filosofia exige um instrumental que revele a evidência, pois é a evidência que justifica a adesão a uma idéia ou posição. Havendo evidência a favor de uma idéia, o filósofo assume a atitude de mantê-la; havendo evidência contrária, a atitude de revê-la ou rejeitá-la; e na falta de evidência a favor ou contra, assume a atitude de dúvida.

            Na procura desse instrumental de evidência, está constantemente a intuição, ou seja, a capacidade natural que o homem tem de adquirir o conhecimento de certos princípios fundamentais, sob condição de exercer bem essa capacidade. A intuição pretende levar ao conhecimento da veracidade ou da falsidade desses princípios sem passar por um processo de raciocínio e sem testá-los, pois são apreendidos por uma visão direta. Os princípios assim alcançados são evidentes por si sós, não exigem provas e garantem a sua própria veracidade. Assim se alcançariam os primeiros princípios filosóficos.

 

2.      SÓCRATES E A VERDADE INTERIOR

 

            Em Sócrates, mais do que em qualquer outro grande pensador, encontramos o esforço de ligar intrinsecamente pensamento e vida. Para ele, o lugar da filosofia não é num círculo fechado, mas sim na praça pública, no ginásio, no foro, no mercado, todos guiados apenas pelo bom senso. Por um questionamento preciso e incisivo, Sócrates leva as pessoas a tomarem decisões definidas e enfrentar as dificuldades, ou seja, força-os a cederem diante de uma evidência. A certeza emerge dessa massa caótica de opiniões muitas vezes levantadas por pretensos sábios (os sofistas), opiniões assediadas por dúvidas não apenas quanto ao seu conteúdo, mas também quanto à própria forma, valor e dignidade.

            O método socrático resume-se na frase do oráculo délfico: CONHECE A TI MESMO. Empreendimento difícil e penoso, mas só por este caminho a verdadeira ciência pode ser alcançada. Renunciando às construções cosmogônicas fantasistas, Socrates volta-se ao homem, às instituições e valores humanos mais fundamentais, às ações e atitudes que ocupam o lugar central da vida da cidade: piedade e impiedade, belo e feio, justiça e injustiça, sabedoria e ignorância, coragem e covardia, cidade e cidadão, o governo e quem deve governar.

            Sócrates interroga seu interlocutor: o que pensas da justiça? e da prudência? Este responde dogmaticamente, conforme o imediatismo da percepção sensível. A crítica socrática ataca esse imediatismo, mostrando que isso leva inevitavelmente a contradições insolúveis ou se anula no decorrer do seu desenvolvimento crítico.

            É preciso superar as aparências e chegar ao conceito, o essencial que é constituído por um relacionamento racional descoberto pelo pensamento entre os dados sensíveis, que devido à sua natureza intelectual escapa à instabilidade das coisas materiais. Os homens, por exemplo, variam de forma e se diferenciam infinitamente entre si, mas o conceito de homem, enquanto expressão da sua essência em termos de espécie humana, é imutável.

            A descoberta socrática do conceito é o ponto culminante do seu método, levando o interlocutor a confessar a própria ignorância e rejeitar o dogmatismo inicial. Mesmo assim, Sócrates continua afirmando nada saber, nada ensinar. Só que ele dispõe de uma arte maravilhosa, capaz de extrair do interlocutor a verdadeira ciência que este já possui em seu íntimo sem notar: é a maiêutica, a arte da parteira, que ajuda o intelecto a dar à luz criaturas do pensamento. Por um processo de interrogação contínua, Sócrates leva o interlocutor gradativamente à meta, que é o conceito, elemento constitutivo da ciência. Com essa ciência, a unidade de visão da realidade é conseguida, sem prejuízo da pluralidade e da variedade que o conceito pode refletir no sensível.

            O conteúdo da ciência socrática é a realidade moral do homem, que reflete os esforços, os impulsos, as paixões, que formam o ideal prático da vida humana. A moral é elevada a ciência e o saber se torna a força dinâmica da vida prática. É nessa reciprocidade que reside o ponto de união entre vida teórica e vida prática, o ponto de convergência entre especulação e ação.

 

3.      DESCARTES E A DÚVIDA METÓDICA

 

            O caminho que levaria Descartes a formular um método, ou seja, um roteiro seguro para a ciência, será o caminho da dúvida. É a partir da dúvida que Descartes pretende criar um método que proporcione o aumento gradativo do conhecimento, levando-o gradualmente ao seu ponto máximo.

            Descartes se vê enlaçado por tantas dúvidas e erros que só parecia descobrir cada vez mais a sua ignorância. Na filosofia, não encontrava nada que não fosse objeto de discussão, sendo por isso duvidoso. Com respeito às outras ciências, na medida que tiravam seus princípios da filosofia, acreditava não se poder ter construído nada firme sobre bases tão pouco sólidas. Mesmo nos costumes dos homens, nada achava que o convencesse e notava, a propósito, quase tanta diversidade quanto achava nas opiniões dos filósofos.

            Descartes passa a não aceitar com muita firmeza nada do que lhe havia sido ensinado, pois apercebia-se de que, desde os primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras e de que aquilo que depois se fundava em princípios mal assegurados não poderia ser senão mais duvidoso e incerto, de modo que seria necessário tentar desfazer-se de todas as opiniões a que até então dava crédito e começar tudo novamente, desde os fundamentos, para estabelecer algo firme e constante nas ciências. Assim, Descartes se aplica em destruir globalmente todas as suas antigas crenças e opiniões.

            O ponto básico que Descartes utilizou para se afastar de tudo em que poderia imaginar a menor dúvida foi a proposição “eu penso, logo eu existo”. Para Descartes, essa proposição é necessariamente verdadeira todas as vezes que a concebo em meu espírito, por todo o tempo em que penso, em que duvido, em que afirmo, em que nego, em que odeio, em que quero, em que também imagino e em que sinto.

            A partir desta certeza, que leva à certeza da existência de Deus, substância infinita, eterna, imutável, ndependente, onisciente, onipotente, pela qual eu próprio e o mundo existimos, é indispensável o método que me dará a segurança de não estar às voltas com conhecimentos apenas prováveis, pois não se deve dar assentimento senão àqueles perfeitamente conhecidos, a respeito dos quais não nos cabe duvidar. Para não incorrer nos mesmos erros e para sair da dúvida, passo preliminar à formulação das regras do método, Descartes se propõe a enumerar todos os atos de nosso entendimento por meio dos quais podemos chegar ao conhecimento das coisas sem temor algum de erro. Ele admite apenas dois, que são: a intuição e a dedução.

            Intuição é uma concepção do puro e atento espírito, tão fácil e distinta que não fique absolutamente dúvida alguma a respeito daquilo que entendemos ou, dito de outro modo, uma concepção não duvidosa da mente pura e atenta, que nasce só da luz da razão. Dedução é a simples inferência de uma coisa da outra. Esses dois são os caminhos mais seguros para a ciência. Todos os outros caminhos devem ser rejeitados como suspeitos e expostos a erro.

 

4.   HEGEL E O MÉTODO DIALÉTICO

 

            Hegel aprendeu de Platão que a dialética é um método e uma arte de contrapor conceitos; não apenas isso, mais que um método, é a ciência que descobre o absoluto no conflito reinante no relativo. A dialética antiga tem duas partes, a hegeliana é baseada numa tríplice divisão. A dialética antiga trabalha com dois termos: finito e infinito, universal e particular, concreto e abstrato. A dialética proposta por Hegel abrange três momentos: unidade, divisão e nova unidade, sendo esta última resultado da divisão. É um processo que sempre se renova e perpetua sob a forma de tese, antítese e síntese. Hegel divide em três momentos distintos aquilo que na realidade é uma passagem, uma confluência de momentos um no outro. Esse processo é o segredo do mundo e da filosofia, que compreende o mundo estruturado em opostos.

            Retomando o conflito ‘finito x infinito’, para Hegel o infinito é o espírito como força fechada e recolhida sobre si, mas que procura externar-se. O finito é o ato pelo qual o infinito se manifesta e realiza. Mas na medida em que nenhum finito pode conter em si a força infinita, o finito tende a ultrapassar-se, pois contém em si uma dupla força: o negativo, enquanto delimita o infinito, e o positivo, enquanto contém em si o infinito que transborda os seus limites. Daí surgirá a síntese, um novo finito que iniciará um novo processo.

            A dialética é o princípio de todo movimento e de toda atividade que encontramos na realidade. Tudo o que nos rodeia pode ser considerado como instância da dialética. Essa dialética se manifesta no movimento dos corpos celestes, nas revoluções políticas, nas tensões familiares, nas oscilações emocionais... tudo que existe envolve aspectos opostos e contraditórios, pois a contradição é a força propulsora do mundo.

            Um exemplo claro da luta dos opostos está na própria vida, onde a unidade é representada pelas espécies e as distinções, pelos indivíduos. A luta pela vida surge a partir do desejo que cada indivíduo tem de invadir o terreno alheio. O fim do conflito é o triunfo da espécie sobre o indivíduo, tanto na geração como na reprodução, como em todos os demais episódios da luta pela vida.

            O princípio propulsor do método da dialética é o espírito como atividade infinita, que nenhuma manifestação finita pode conter ou esgotar. Cada meta alcançada é apenas uma etapa. Desse modo, o ‘terceiro momento’ representa uma posição ou uma afirmação mais elevada que a inicial, no entanto, é ainda uma posição que não satisfaz à infinitude espiritual. O fim de um ciclo representa, portanto, o início de outro ciclo, e depois de outro, numa série progressiva de momentos circulares, até que o espírito possa realizar-se plenamente. Nesse contexto, a história representa o movimento contínuo do espírito se manifestando no homem através do tempo.

            O método da dialética é uma visão do mundo, do homem e da história que enfatiza o desenvolvimento através do conflito, o poder das paixões humanas que produzem resultados inusitados e a ironia de acontecimentos inesperados. Mais que um método de descobertas, a dialética é um método de exposição, de penetração na realidade para mostrá-la em pleno estado de evolução.

 

 

5.   A FILOSOFIA COMO PROJETO PERMANENTE

 

            A tarefa básica da filosofia consiste em investigar profundamente todos os quadrantes da vida humana. O único pressuposto do filosofar é o questionamento de tudo. Através da ciência, o homem encontra resposta a muitas questões práticas, resolve diversos tipos de problemas, enfrenta as mais diferentes situações. Porém, quando ele se volta para si próprio, buscando as razões últimas para os seus problemas cruciais da existência, toda ciência é insuficiente. Por que existo? Por que existem as coisas? Como posso saber? Que devo fazer? Qual o sentido da minha existência?

            É em torno dessas questões, situadas na encruzilhada da práxis, que o homem começa a filosofar. Mas uma vez que não há verdade solitária, ele é obrigado a pensar-se, pensar o outro, pensar o mundo (EU+OUTRO+MUNDO=TOTALIDADE), não em separado, mas na mesma simultaneidade que os caracteriza e fundamenta. É este EU, este OUTRO que a filosofia procura levar à compreensão e à expressão. É com essa finalidade que o filósofo interroga o MUNDO e a visão do mundo, certo de que podemos ver as próprias coisas, desde que abramos os olhos.

            É este postulado do MUNDO em geral, do EU e do OUTRO que o ato de filosofar elege como válido, contra e a despeito de todas as dificuldades de explicação encontradas. Essas dificuldades, em vez de invalidarem o problema, servem para principiá-lo. É na direção dessa problemática que a filosofia caminha. É assim o projeto da filosofia, o que lhe importa é saber e entender o sentido mais profundo dessa realidade. Tudo deve ser repensado a respeito da nossa experiência dessa realidade, porque ela não se permite o direito de assumir qualquer pressuposto. Cabe-lhe reformular em bases rigorosas todos os conceitos, fora de qualquer preconceito, para redescobrir o que é ser EU, ser OUTRO e ser MUNDO.

            Assim compreendido, filosofar não se restringe a um colóquio exclusivo e privativo do filósofo com a verdade, numa atitude de quem sobrevoa o universo e a história, como se o filósofo não se encontrasse enraizado na condição humana, que é por si mesma problemática. Filosofar é ter consciência de estarmos inseridos inelutavelmente nessa situação, a qual é tecida dialeticamente, formando um todo ‘problema-solução’, em que cada solução, por ser necessariamente parcial, transforma o problema inicial sem, no entanto, jamais esgotá-lo. Ao invés de tentar fugir desta situação para poder filosofar, é necessário aprofundar e alargar a experiência dela decorrente.

            Filosofar não é encontrar soluções já inscritas na realidade, mas é ter consciência de que tal atividade exige a busca criativa de soluções, como também a busca igualmente criativa de problemas. Dentro dessa perspectiva, o filósofo evitará qualquer tentativa de refugiar-se num mundo ideal, pois antes de toda e qualquer reflexão, a existência proíbe que ela própria seja apreendida pela reflexão ou que seja considerada como simples projeção do pensamento.

            Nestes termos, filosofar não é erguer ideologias nem fabricar ilusões e, menos ainda, cair na mistificação, porque o discurso filosófico nunca é independente do discurso histórico. Pelo contrário, este o modifica, levando-o a tecer, com outros tempos e com o presente, relações reveladoras de sua verdade.

            Sócrates, o modelo do filósofo, não distinguia a atividade de filosofar do próprio ato de viver. Ele nos ensina que a máxima da sabedoria, do ato de filosofar, é amar a sabedoria e saber que nada sabemos. É uma atitude contrária àquela de quem tenta instalar-se num saber absoluto. Filosofar é viver a dialética que leva do saber à ignorância e da ignorância ao saber. Assim, a filosofia jamais se encarregará de oferecer verdades prontas e definitivas, norteando-se pela procura livre, que nos desperta para aquilo que é insólito e mesmo insuportável na realidade. Liberdade e razão se instalam no cerne da realidade, da práxis, para que nela viva a filosofia.

 

(Texto adaptado pelo prof. Antonio Carlos Machado a partir de GILES, T.R., Introdução à Filosofia, ed. USP/EPU, pág. 3-5 e 13-23).


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