O riso
romântico
Notas sobre o
cômico na poesa de BG e seus contemporâneos
por Paulo Franchetti
Do sorriso tenso e melancólico provocado pelas
Idéias Íntimas de Álvares de Azevedo à grossa gargalhada com que Bernardo
Guimarães nos explica A origem do mênstruo, estende-se uma vasta região que
ainda parece longe de estar satisfatoriamente mapeada: aquela em que floresceram
lado a lado e exuberantemente a paródia, a sátira, a chalaça e a pornografia --
o nosso "cancioneiro alegre" da época romântica. Melhor dizendo, da
que se convencionou chamar de segunda geração romântica, porque a maior parte
dos textos disponíveis para uma tal coletânea vem assinada por poetas nascidos
por volta de 1830: Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, José Bonifácio de
Andrada e Silva, Laurindo Rabelo, Luís Gama, Bruno Seabra, Franco de Sá.
Tais poemas formam um conjunto impressionante,
quando cotejados com a obra "séria" produzida por esses autores, não
só pelo volume, que não é pequeno, mas também e principalmente pela qualidade
literária. Poetas que pagavam um tributo excessivo às convenções do tempo
quando celebravam a musa vaporosa e lânguida que então se impunha,
transformavam-se de súbito, ao sopro da maledicência, da lascívia ou da simples
emulação boêmia, em virtuoses da palavra, improvisadores de raro talento e
inventividade. O caso exemplar é o de José Bonifácio, o Moço, em que convivem
o poeta de minúsculos dotes dedicado à louvação do amor convencional e à
celebração de sensaborias patrióticas, o fino ironista de Um pé e Meu
testamento e o esplêndido satírico de O Barão e seu cavalo. Com Bernardo
Guimarães também não sucede coisa muito diferente, pois é hoje forçoso
reconhecer (em que pese o juízo favorável de um Manuel Bandeira) que o Dr.
Bernardo seria apenas mais um poeta medíocre, não fossem os seus
"bestialógicos", a sua Orgia dos duendes e os dois poemetos fesceninos
que referiremos mais adiante.
Apenas Álvares de Azevedo foi igualmente grande
tanto pelo lado direito quanto pelo lado do avesso -- a primeira e a segunda parte
da sua Lira dos vinte anos. Será o único, porém, de cuja poesia não
trataremos, porque é toda bem conhecida e estudada. Inteligência crítica à
altura da poesia que nos deixou, Azevedo percebeu claramente a dupla face da musa
de sua geração. No Prefácio à Segunda Parte da Lira, não só explicitava e
definia essas faces -- " Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban"
-- mas ainda ensaiava uma explicação genérica para sua existência:
Por um espírito de contradição, quando os
homens se vêem inundados de páginas amorosas, preferem um conto de
Boccaccio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff (..) a todas as
ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda em moda (...) Antes da
Quaresma há o Carnaval.
(Prefácio do autor à Segunda Parte da Lira dos
Vinte Anos)
Não é nosso principal objetivo discutir aqui a
origem da grande produção de poemas humorísticos da segunda geração
romântica, mas apenas traçar um rápido panorama que estimule trabalhos necessßrios
de investigação, localização de textos, e reflexão pormenorizada. Notemos, no
entanto, que entre os vários fatores que contribuíram para tal voga de textos
bem-humorados não é certamente dos menores a influência da poesia do próprio
Azevedo. Publicada e republicada seguidamente nos anos imediatamente posteriores
à morte do poeta, ocorrida em 1852, sua obra teve enorme papel na consolidação
da tendência a observar a vida de um ponto de vista burlesco, contrapondo ao
mundo ideal dos valores cavaleirescos as visões divertidas da "Ilha
Baratária de D. Quixote", onde reina Sancho Pança. Influente como era junto
à mocidade acadêmica de São Paulo, Azevedo foi o modelo confesso de uma
numerosa e desigual produção de poemas que, em tom intimista e coloquial,
celebravam os símbolos da vida do rapaz solteiro, habitante das repúblicas de
estudantes: o cachimbo, o cigarro, o charuto, o cognac. Dele também deriva uma
tendência ao riso amargo da auto-ironia, da auto-paródia, cujos traços são
perceptíveis na obra de vários contemporâneos, entre os quais se destaca José
Bonifácio. Os estudos críticos de Azevedo, por outro lado, devem ter
contribuído bastante para a continuidade e a revivescência de um certo gosto
neoclássico -- perceptível em todo o grupo --, que de novo trouxe a plano de
destaque as diatribes de um Tolentino e de um Bocage. (1)
A voga desses autores foi notável nos anos que se
seguiram ao falecimento de Azevedo. Para só citar um exemplo, notemos que são
eles que, junto com Xavier de Novaes (2), fornecem quase todas as epígrafes das
Trovas burlescas (1859), escritas por um dos esquecidos talentos da época: Luís
Gama, vulgo Getulino.
Em Getulino vemos bem realizada uma das formas do
riso em exercício na segunda geração romântica brasileira: o satírico
espirituoso e competente, porém dentro das convenções do gênero; o crítico
dos costumes, cuja arma principal é a acentuação dos traços negativos do
objeto criticado. Das suas Trovas é talvez a mais característica e melhor
realizada a que começa:
Ó tu, quadrada musa impavesada,
Soberana rainha da papança,
Borrachuda matrona insaciável
Que tens o corpo pingue e larga pança;
Ë tu, arca bojuda que resguardas
O profuso fardel das comidelas;
Amazona terrível, devorante
Té capaz de engolir mil caravelas...
(...)
Aí se narram, como se pode deduzir da invocação, as
proezas de modernos comilões, que rivalizam com todos os monstros das fábulas
antigas na arte da gulodice e perto dos quais é fichinha até mesmo um certo
"Cambises, rei da Lídia", que "em certa noute"
Atracou-se à consorte com tal gana
Que a meteu inteirinha no bandulho,
Como quem embutia uma banana.
O objetivo do poema revela-se logo nas primeiras
estrofes e se explicita nas finais, em que se resume todo o argumento: a denúncia
do estrato superior da sociedade imperial,
Que, abusando das leis da natureza,
mãe pátria se agarra como louco;
Chupita a pobre velha, e logo brada,
(Batendo no bandulho) -- inda foi pouco!...
A maior parte dos poemas burlescos de Getulino são
caricaturas dos temas preferenciais de todas as épocas: os costumes femininos e
as práticas políticas dos poderosos. A esse aspecto do cômico, recorrente em
todo ambiente boêmio ao longo dos tempos, pertence um bom número de textos de
Bruno Seabra, Franco de Sá e Bernardo Guimarães. Estamos, com Getulino, no
domínio da boa tradição da sátira lusitana, que a custo se mantém dentro dos
estreitos limites do bom-senso e do decoro e frequentemente resvala ladeira
abaixo, como nos mostra a sedução ocasional do mesmo poeta pela musa maliciosa,
pelo tempero picante, de que é bom exemplo este soneto de molde e trocadilho
setecentistas:
Sob a copa frondosa e recurvada
De enorme gameleira, secular,
Sentada n'uma ufa a se embalar
Estava certa moça enamorada.
Eis que rola dos ramos inflamada
Tremenda jararaca a sibilar;
Fica a jovem na corda, sem parar,
Como a Ninfa de amor eletrizada!
Anjo Bento! exclamaram os circunstantes;
-- Foge a cobra de horrenda catadura,
Os olhos revolvendo coruscantes.
Mas a bela moçoila com frescura
N'um sorriso acrescenta -- é das amantes
Nem das serpes temer a picadura.
Essa mesma musa depravada, que em Getulino e outros
menores é episódica, disfarçada ou relativamente bem-controlada, é em Bernardo
Guimarães absolutamente bocageana. Adentramos, com ele, os limites do chulo e
do obsceno, intensificados e realçados pelo contraste com a forma elaborada e
rica de associações tradicionais em que são vazados os poemas. Dessa segunda
faceta do riso romântico chegaram até nós duas composições de Guimarães: A
origem do mênstruo e O elixir do pajé.
O primeiro é um poemeto etiológico que narra
como, por uma brincadeira impensada da ninfa Galatéia, as mulheres vieram a ser
severamente punidas. O enredo é como segue: a deusa do amor, que geraria Enéias
de uma união carnal com Anquises, preparava-se para esse ato decisivo na
história da civilização mediterrânea:
'Stava Vênus gentil junto da fonte,
Fazendo o seu pentelho
Com todo o jeito, p'ra que não ferisse
Das cricas o aparelho.
A ninfa Galatéia, interpretando mal a posição (E
vendo a deusa assim tão agachada / Julgou que ela cagava), resolve assustá-la e
atira-lhe uma pedra. Acontece então o desastre:
Vênus se assusta: a branca mão mimosa
Se agita alvoroçada,
E no cono lhe prega -- oh! caso horrendo,
Tremenda navalhada.
Irada, Vênus prorrompe em maldições recheadas de
palavras obscenas e, por fim, sobe aos céus, onde repete a sedução do pai, já
narrada uma vez por Camões, e dele consegue a punição do insulto, na sentença
que encerra o poemeto e o consternado concílio dos deuses do Olimpo:
"Para punir tão bárbaro atentado,
Toda a humana crica
De hoje em diante, lá de tempo em tempo,
Escorra sangue em bica."
(...)
"Amém! amém!" com voz atroadora
Os deuses todos urram;
E os ecos das olímpicas abóbadas
"Amém! amém!" sussurram.
O texto que com esse faz pendant, O elixir do pajé,
é dotado de menos enredo e, vez por outra, de mais verve satírica. O assunto do
poema se reduz à celebração das virtudes de um misterioso elixir afrodisíaco
de que se valeu nos ßureos tempos um certo pajé Bandalho e em cujas propriedades
milagrosas deposita o narrador as melhores esperanças. Desinteressante quase
sempre, os únicos bons momentos do poema são aqueles que parodiam descarada e
brutalmente a cadência bem marcada dos passos indianistas de Gonçalves Dias:
E ao som das inúbias,
Ao som do boré,
Na taba ou na brenha,
Deitado ou de pé,
No macho ou na fêmea,
De noite ou de dia,
Fodendo se via
O velho Pajé!
(...)
Vassoura terrível
Dos cus indianos
Por anos e anos
Fodendo passou,
Levando de rojo
Donzelas e putas,
No seio das grutas
Fodendo acabou!
E com sua morte
Milhares de gretas
Fazendo punhetas
Saudosas deixou!...
De resto, o poema se esgota no puro gosto pelo
palavrão escrito, pela feroz exibição da sexualidade masculina estereotipada,
pela louvação da virilidade entendida como capacidade mais de agressão do que
de obtenção do prazer. Nos poemas fesceninos de Guimarães não há lugar para a
sedução, nem para o ponto de vista feminino. Não há erotismo. O cômico,
inferior ao modelo evidente que é Bocage, fica por conta do simples contraste
entre a elaboração formal da expressão e a primitividade regressiva do
conteúdo expresso. Apesar da persistente nomeada, esses dois poemetos são o que
hoje menos nos impressiona na obra humorística do autor.
Excluída, pelos motivos acima, a referência ao
humour de Azevedo e aos poemas que evidentemente dele derivam por influência
direta, chegamos agora ao terceiro e último avatar do riso romântico entre nós,
o mais atraente e o mais moderno: o "bestialógico", de que este trecho
de José Bonifácio é um bom exemplo:
Ó cágados gentis da Macedônia!
Ó Caxias, marquês da Patagônia!
Salmões do Sena, tépidos aromas
Do rio Tietê, bestas de Roma!
Ilha das Cobras, flor do Guanabara,
Tachos de furrundum, débil taquara!
Frutas de Cambuí, várzea do Carmo,
Espingardas de pau que eu só desarmo!
Ó sol! ó sol! cabeça de palito,
Brasa acesa nas costas de um mosquito!
Delicado nariz, meu relicário,
Prenda, prenda gentil do secretário...
Assim começa o segundo canto de O Barão e seu
cavalo, poema em que se satirizam algumas das personagens notßveis do partido
conservador. O enredo é indistinto, confuso: uma reunião em que acontece um
pouco de tudo e se desenvolve a crítica aos adversßrios políticos do autor.
Não é a fábula, porém, o que conta neste caso. Os episódios e as falas têm
grande autonomia e não perdem muito em comicidade quando isoladamente
considerados, como é o caso desta cena, provocada por um súbito ataque de
loucura do chefe de polícia:
Dispam o monstro já; que voz tão gaga?!
Talvez tenha no umbigo alguma chaga...
Foi dito e foi feito: logo posto nu,
Besuntaram-lhe o corpo com angu;
Três gotas de vinagre de alecrim
Misturaram com caldo de capim;
Gritava o Guimarães, pedindo espaço,
Mas deram-lhe pancada c'um chumaço!
Que horror! que negro horror! que feia mágoa!
Vão buscar um canudo à caixa d'água.
É difícil dizer qual a moléstia;
Sentiu do sol nas ventas uma réstia!
As causas deste fato sobre-humano
Tem origem no solo muçulmano!
Ai, dizê-lo não posso... um assassino
Roubou-lhe do armazém o pano fino!
Vale por si só, igualmente, este primoroso trecho de
oratória:
Barão: Da Grécia e Roma os mármores roubados
Foram por vós, senhores, ocultados;
Por causa de um feroz recém-nascido
Enéias deu à noite um soco em Dido;
No colosso de Rodes o espartano
Viu cavalos de pau sem ver troiano;
Foi lá no monte Ural -- que Salomão
Plantou sem ver sementes de algodão;
Eu mesmo no verdor da juventude
Já comi carne assada num almude!
Vede que coisas ruins, bem pode ser
Que o Guimarães esteja p'ra morrer.
Como se vê, passamos agora a território
completamente distinto dos anteriores: o domínio do non-sense, do absurdo, da
livre associação. O cômico, nesse caso, resulta do choque inesperado entre o
substantivo e o adjetivo, entre o verbo e seu sujeito, da seqüência
surpreendente da ação, do descompromisso com a ordenação usual do discurso que
permanecia praticamente inquestionada nas modalidades anteriores. E se é verdade
que em Bonifácio ainda subsiste um fio narrativo e uma clara intenção
alegórica, em Bernardo Guimarães encontramos essa forma de ordenação do
discurso em seu, por assim dizer, estado puro.
Guimarães foi o mestre inconteste do
"bestialógico" poético:
Com grande desgosto dos povos da Arábia,
Vieram os bonzos da parte de além,
Comendo presunto e empadas de trigo,
Sem ter um vintém.
E os ratos vieram, trotando depressa,
De espada na cinta, barrete na mão;
Prostravam-se ante eles, fazendo caretas,
Com grã devoção.
E o filho dos ermos, do monte rolando,
Puxou pela faca, de grande extensão,
Caiu como o cisne, que toca trombeta,
De ventas no chão.
E lá pelos pólos, de gelo abrasados,
Eu vi Napoleão
Puxando as orelhas ao fero Sansão,
E um lindo mancebo de nobre feição
Brincando entre as pernas do rei Salomão...
O que é espantoso nesse e em outros poemas do gênero
é a ausência de clara intenção paródica ou satírica. Seu único objetivo
parece ser o de conseguir um efeito de sentido cômico pelo acúmulo de nomes,
situações e atos cuja relação é absolutamente impertinente de qualquer ponto
de vista. Embora tenha também escrito "disparates rimados" com objetivo
de crítica ou paródia de composições ou estilos em voga em sua época,
Bernardo Guimarães produziu seus melhores textos quando se deixou levar
unicamente pela lógica do próprio processo compositivo, nessa espécie de
escrita automática avant la lettre:
Mote estrambótico:
Das costelas de Sansão
Fez Ferrabrás um ponteiro,
Só para coser um cueiro
Do filho de Salomão.
Glosas:
Gema embora a humanidade,
Caiam coriscos e raios,
Chovam chouriços e paios
Das asas da tempestade,
-- Triunfa sempre a verdade,
Com quatro tochas na mão.
O mesmo Napoleão,
Empunhando um raio aceso,
Suportar não pode o peso
Das costelas de Sansão.
Nos tempos da Moura-Torta,
Viu-se um sapo de espadim,
Que perguntava em latim
A casa da Mosca-Morta.
Andava, de porta em porta,
Dizendo, muito lampeiro,
Que, pra matar um carneiro,
Em vez de pegar no mastro,
Do nariz do Zoroastro
Fez Ferrabrás um ponteiro.
(...)
Aqui a denominação disparate rimado mostra a sua
força descritiva: a Moura-Torta da rima produz, por semelhança fônica, a
Mosca-Morta; o espadim obriga o pobre sapo a expressar-se em latim, enquanto que o
mastro faz surgir um imprevisto e narigudo Zoroastro -- a rima determina
soberanamente a seqüência do poema. A Moura-Torta -- como o sapo falante, antiga
freqüentadora de estórias da Carochinha -- permite chegar ainda a um outro
procedimento organizador do "disparate rimado": a evocação caótica de
reminiscências populares, folclóricas, infantis, fragmentadas ludicamente ao
sabor das necessidades métricas e rímicas do poema. Comparecem também, ao sabor
das associações, os fragmentos das leituras clássicas do bacharel, como sucede
com o pai dos deuses gregos, travestido de Napoleão, e com Horácio, que surge em
outra estrofe como mercador de peixes, a vender sardinhas na China.
O "bestialógico" é, sem dúvida, a
contribuição mais original de Bernardo Guimarães à nossa literatura,
firmando-o como um dos melhores talentos cômicos da poesia brasileira. Sua
inspiração galhofeira tem ainda outras manifestações que vale a pena
registrar, antes de passarmos a algumas considerações sobre a recepção e a
elaboração da obra "maldita" desse escritor paradigmático. Além do
tétrico e divertido A orgia dos duendes, que é texto bem conhecido, Bernardo
Guimarães é autor de um saboroso poema dramßtico, o Dilúvio de Papel. Nesse
texto, dos últimos anos da década de 50, Guimarães apresenta uma temática
muito atual: a incompatibilidade entre a musa clássica do poeta e o lugar que
este ocupa, como profissional da palavra, no mundo moderno. A personagem narradora
é um jornalista que, sufocado entre pilhas e pilhas de papel, sai a campo aberto
para tomar um pouco de ar e lá depara com a sua antiga musa, que o apostrofa como
segue:
Que vejo? junto a meu lado
Um desertor do Parnaso,
Que da lira, que doei-lhe
Faz hoje tão pouco caso
Que a deixa pendurada numa brenha,
Como se fora rude pau de lenha?
(...) Ingrato! ao ver-te, sinto tal desgosto,
(...) que até me falta o estro,
Em vão estafo os bofes,
Sem poder regular minhas estrofes.
Ao que o poeta responde, nos termos do tempo orgulhoso
em que vivia:
Não vês que o tempo assim perdes embalde,
Que tuas imortais nobres canções
Entre os rugidos, abafadas morrem,
Dos rápidos vagões?
Neste país de ouro e pedrarias
O arvoredo de Dáfnis não medra;
E só vale o café, a cana, o fumo
E o carvão de pedra.
(...)
Ë minha casta, e desditosa musa,
Da civilização não estás ao nível;
Com pesar eu to digo, -- nada vales,
Tu hoje és impossível.
Furiosa, a musa condena o poeta a penas extremamente
duras: em primeiro lugar, a ser assediado por exércitos de jornais de vßrias
procedências, contra os quais se vê obrigado a defender-se a bengaladas; por
fim, a um dilúvio de papel impresso. O poema termina com o malfadado vate
tentando atear fogo àquele oceano de papéis, sobre cujas ondas a musa canta a
doce vingança,navegando impßvida em um barco incrustado de pedrarias e movido a
remo de marfim.
Se fosse uma figura isolada, poucas explicações
teríamos para esse poeta excepcional, e só nos restaria postular que o pobre
criador de A escrava Isaura, tão mediano em prosa, possuía uma espécie de
genialidade poética... intermitente, que não funcionava sempre nem em todos os
gêneros. Não é o caso. Bernardo Guimarães deve ser visto dentro do quadro em
que se formou e de que foi, juntamente com Álvares de Azevedo, uma das
expressões mais felizes. Compreenderemos melhor as vicissitudes de sua obra se
considerarmos como um de seus elementos definidores a vida boêmia, a emulação
dißria de poetas que se conheciam e conviviam estreitamente no quotidiano das
pequenas cidades de meados do século passado, pois dela provinha o estímulo mais
importante para essa criação satírica e cômica.
A boêmia proporcionava ao poeta um público cuja
resposta, além de imediata, era intelectualmente respeitada -- coisa bastante
diferente, mesmo em nossas condições, do que acontecia com o mercado de textos
literários destinados ao "grande" público, cujo julgamento passava
também e talvez principalmente pelos valores morais e políticos. Nas pequenas
sociedades acadêmicas, a boêmia simultaneamente propiciava uma suspensão do
juízo moral sobre os textos destinados a circulação interna e estimulava um
certo inconformismo político nem sempre compatível com as funções que o
bacharel deveria poder assumir em breve na sociedade imperial. Disso resultam duas
conseqüências interessantes. Uma é que devemos a esse meio boêmio a única
produção literária do período romântico que, além de não prever explícita
ou implicitamente um público majoritariamente feminino, ainda o exclui. Outra,
mais importante, é que a poesia tendesse a ser encarada entre nós como simples
distração descompromissada do mancebo estudante:
Temos o prazer de oferecer ao público (...) as
produções poéticas de um de nossos irmãos de letras, que ao separar-se
de nós legou-nos esses cantos melodiosos, como se fosse um adeus de
despedida, e uma última lembrança de seu viver de outrora; -- é o
testamento do coração ao terminar-se a vida descuidosa de mancebo; (...)
é a baliza que servirá de assinalar-lhe uma quadra risonha da
existência(...)
[Prólogo do editor aos Cantos da Solidão de
B.G., 1852)
A consideração dessas circunstâncias a que se
ligava a produçao de boa parte da poesia que se escrevia no Brasil pode
ajudar-nos a entender uma questão importante, que se manifesta em vßrios
críticos e historiadores da nossa literatura. Questão essa que comparece, por
exemplo, no julgamento de Sílvio Romero sobre a grande repercussão da obra de
Álvares de Azevedo. Em uma passagem um tanto mal-humorada, Romero diz acreditar
que boa parte do grande sucesso do autor se deva à "felicidade de fazer a
bela poesia de uma morte a propósito". (3) Com essa expressão, o crítico
não apontava apenas para a realização do acalentado ideal romântico da íntima
união da obra com a biografia -- o ideal de sinceridade poética, que a morte de
Azevedo, cantor da morte, realizava perfeitamente. Apontava também para a
questão de que vimos tratando, a de que na juventude, durante o período de vida
acadêmica, surgem promessas literárias que geralmente acabam por nunca se
cumprirem. Por isso, diz-nos o crítico, A. de Azevedo teve maior nomeada do que
Aureliano Lessa, que lhe sobreviveu alguns anos: por ter interrompida sua carreira
no momento da plena potencialidade e por ter toda a obra logo publicada, graças a
familiares cuidadosos. O tema reaparece, mais claramente delineado, em José
Veríssimo e explicitamente a propósito de Bernardo Guimarães. Na opinião do
historiador, a razão por que o nosso autor não fora devidamente valorizado teria
sido "a mesma sobrevivência de Bernardo Guimarães poeta aos poetas de sua
geração". (4) Ao que acrescenta, entre melancólico e irônico: "Nem
só os ausentes carecem de razão, mas os sobreviventes também". O sentido
de suas palavras fica mais claro, porém, neste trecho sobre a morte de outro
grande poeta romântico, Gonçalves Dias:
Se ele devia, vivendo, esterilizar-se como
Magalhães e Porto-Alegre, melhor foi, porventura, que morresse também
prematuramente. A sua obra basta à sua glória e à da nossa poesia. (5)
Aí está. O que pode explicar essa quase
incompreensível felicitação pela morte prematura de um gênio como o de
Gonçalves Dias é a triste constatação de que entre nós a boa poesia costumava
encontrar público e condição de existência apenas no seio da juventude boêmia
e acadêmica. Na maior parte dos casos, o vulto e a inspiração do escritor
tendiam a diminuir rapidamente de estatura com o passar dos anos, à medida que se
ia fazendo necessário adequar o homem de letras à figura pública do burocrata e
às oscilações da vida política que, frequentemente, definiam seu destino em um
país onde as tiragens eram ínfimas.
A evolução poética de Bernardo Guimarães é,
desse ponto de vista, testemunho eloqüente desse processo de mediocrização a
que tão poucos escaparam, pois nela é evidente uma brutal queda de nível entre
a publicação de Poesias, em 1865, e os posteriores Novas Poesias e Folhas de
Outono,nas décadas seguintes. O que havia de interessante e promissor desaparece
como por encanto e o que vemos surgir e se afirmar é a voz áulica, dedicada ao
canto em louvor de Suas Majestades, à celebração e lamento episódicos de
amigos vivos e mortos e ao banal entusiasmo militarista e patriótico. Por esse
lado oficial, Bernardo Guimarães é caso típico da poesia brasileira da fase
romântica. Sua grandeza provém do outro lado, da força com que ele manteve
viva, ao longo de vários anos, aquela face obscura de toda uma geração. Aquela
energia, agressividade, criatividade e não-conformismo juvenis que, embora
subterrânea e marginalmente, nele puderam encontrar a melhor e mais completa
realização.
Notas.
1 A crítica de Azevedo mereceria um estudo à
parte, pela sua singularidade e por ser a faceta de sua obra a respeito da qual
mais divergem os críticos. É notável que encontremos aí toda uma concepção
classicizante da literatura, em nome da qual Azevedo condena em um contemporâneo
a excessiva idealização da mulher amada (que justamente caracteriza tantos dos
próprios poemas); defende o teatro como "apostolado do belo" e espaço
em que se exibe "um fim moralizador". Não menos notßvel é que
apresente a tragédia de Ferreira, a Castro, como modelo aos jovens escritores,
que deveriam imitar-lhe a sobriedade e o respeito às regras [Carta sobre a
atualidade do teatro entre nós]. É ainda a essa vertente classicizante que
devemos a sua oposição frontal a Santiago Nunes Ribeiro, cuja preocupação com
a temática nacionalista e com a diferenciação da literatura brasileira frente
à portuguesa lhe parece "senão ridícula, de mesquinha pequenez"
[Literatura e civilização em Portugal".
2 Xavier de Novaes (1820-1869) foi autor satírico
de inspiração neoclássica e teve muitos leitores no Brasil. Possivelmente a boa
receptividade às suas obras tenha sido a causa de ele para cá se transferir
definitivamente, o que se deu em 1858. Hoje esquecido entre nós, é referido
apenas e episodicamente como o irmão da mulher de Machado de Assis, D. Carolina.
3 S. Romero. História da literatura brasileira.
Rio, J. Olympio, 1953, p. 1033.
4 J. Veríssimo. Estudos de literatura brasileira -
2a. série. Rio, Garnier, 1901, pp. 254-5.
5 Idem. Ibidem. p. 22.
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