O encontro do
Imperador com Bernardo Guimarães
Dilermando
Cruz, em seu livro "Bernardo Guimarães (perfil
bio-bliblio-literário)", edição de 1914 de Imprensa Oficial do Estado de
Minas Gerais, transcreve do jornal "O Oriente" o relato do
encontro de Pedro II (traço) e a imperatriz Teresa Cristina com Bernardo
Guimarães. O relato do jornal -- da edição do dia 12 de junho de 1881
-- já é, por uma vez, uma transcrição de uma outra publicação, "O
Cruzeiro". O texto é uma preciosidade: ressalta a todo instante o estado de
penúria em que BG estava, sem "nenhum posição social", apesar de suas
poesias que "brilham no céu". Além disso, lá pelas tantas, o autor do
texto - cuja nome infelizmente o livro não publica - admitiu que não pôde
assistir ao encontro do Imperador com o escritor por que tinha tomado champagne.
Leia.
"É natural que o Imperador,
tencionando visitar esta província [Ouro Preto], se lembrasse de Bernardo
Guimarães; e assim parece porque desde Barbacena pedia ele notícias do poeta,
cujas poesias brilham no céu da pública celebridade, enquanto ele mesmo vivi em
um canto da terra, na mais modesta obscuridade.
Em viagem de Barbacena a esta cidade,
o Imperador e igualmente a Imperatriz iam recebendo informações mais minuciosas
do estado e do viver do ilustre autor dos "Cantos da Solidão".
Mas, quando se referiram à Imperatriz
que o poeta não tinha social, por pouco elevada que fosse, nem fortuna, que era
casado e tinha cinco filhos, que vivia quase só do minguado produto de seus
romances; que tinha pretendido a cadeira de latim desta cidade, e se sujeitado a
exame, e que esse emprego mesmo não pudera conseguir, aquela nobre senhora, a
Imperatriz, não se esqueceu mais de Bernardo Guimarães e o poeta desventurado
não lhe saiu mais do pensamento.
Sabe-se que Bernardo Guimarães é
muito modesto e até tímido, e a tal ponto que nem é ambição da glória que
o inspira.
Foram alguns seus colegas em S. Paulo
que fizeram publicar os "Cantos de Solidão", a muito custo, copiando,
coligindo e ajuntando versos dispersos, escritos a lápis pelas paredes e em
pedaços de papel e costas de carta.
A parte que teve o poeta nesta
publicação foi só o seu sentimento.
Nunca teve consciência do seu gênio;
desconfia muito de si, e se o elogiam, em público principalmente, foge e se
esconde.
É em grande parte devido a este seu
natural, que ele não tem feito em sua vida particular uma carreira mais brilhante
e mais feliz. Bernardo Guimarães nunca teve a menor tenção de de ir à
presença do monarca, nem jamais lhe passou pela cabeça; mas alguns parentes e
amigos o informaram que o Imperador e a Imperatriz haviam durante a viagem por
vezes pronunciado seu nome com muita consideração, e que, não ocultando sua
admiração pelo poeta, manifestarão o mais possível seus cuidados e o interesse
que tomavam por Bernardo Guimarães.
O poeta sentiu-se comovido e
agradecido, e foram esses sentimentos de pura gratidão que o impeliram a
cumprimentar S.S. M.M. tão singelamente como o é sua alma, sem orgulhosa
altivez, sem lisonjeira humildade. De feito, no dia seguinte ao da chegada do
Imperador, à noite Bernardo Guimarães apresentou-se em palácio na intenção de
felicitar S.S.M.M. e retirar-se.
Nesta noite, a sala estava cheia e as
recepções eram feitas sem a menor etiqueta, confusamente e no meio de algum
sussurro. Os desembargadores e uma comissão da assembléia provincial já se
tinha apresentado, e o Imperador os tinha recebido e despachado mais familiarmente
do que solenemente. Chegou a vez de Bernardo Guimarães. O Imperador o reconheceu
logo: apertou-lhe a mão, e após algumas palavras que ninguém ouviu, pois que
ninguém prestava atenção, ele disse ao poeta em voz alta: "Quero que me
dê suas obras, e todas". O poeta: "Mas eu não tenho nenhuma em
casa". O Imperador: "Não importa, eu as quero e me há de sar, e
todas..."
Retirando-se o Imperador e sua corte,
e só tendo de voltar a esta cidade no dia 18, Bernardo Guimarães pediu ao
Garnier [o editor de seus livros] suas obras, que lhe foram remetidas pelo
correio; de sorte que no dia 18 achava-se ele habilitado para satisfazer a
exigência do rei, mais significativa ainda e honrosa do que se foram um simples
pedido.
De posse de suas obras, poesias e
romances, Bernardo Guimarães havia resolvido entregá-las ele mesmo ao Imperador:
e a ocasião pareceu-lhe a mais própria para apresentar às augustas pessoas
imperiais duas filhinhas suas, incluídos no número de suas obras de artes aquele
dois frutos da natureza. "Ele me pediu minhas obras todas", dizia
Bernardo Guimarães, "e eu lhe apresentarei a Constancinha e a Izabelinha,
deixando em casa os três meninos que são muito traquinas. O Imperador tinha de
partir no dia 21 às 5 horas de manhã, e Bernardo Guimarães tinha determinado
entregar-lhe os livros na noite de 20.
Desde que aqui constou que o Imperador tencionava visita esta província, que
começou a pensar-se logo no programa dos festejos e na recepção.
A lembrança de um baile ou de uma
representação teatral não foi aceita, assentaram as pessoas encarregadas
do programa em oferecer a S.S.M.M. Imperais um concerto musical, que teve lugar na
noite em que Bernardo Guimarães pretendia fazer ao Imperador a entrega de seus
livros.
O dr. Gorceix havia dias antes
proferido um douto e brilhante discurso, que teve por assunto nossas riquezas
minerais, e era justo que a província musical também aparecesse em cena. O
concerto musical teve lugar na mesma sala em que aquele professor tinha feito a
conferência; e os acentos harmoniosos da orquestra ressoaram no mesmo recinto em
que, poucos dias antes, haviam brilhado os topázios e os diamantes da Escola de
Minas.
A sala é, bem conheces, a das
sessões da assembléia provincial, espaçosa e toda branca.
O presidente, ele mesmo tinha
convidado por cartas muitas famílias; mas para o resto do povo masculino a
entrada era franca e bem vês que não devia eu deixar de aproveitar-me
deste indulto. Entrei no corredor e deixei-me ficar junto à primeira porta, que
dá entrada para o salão. Logo depois entraram o Imperador e a Imperatriz e
seguiram ao longo do corredor ou galeria, e foram ter a uma sala interior, donde
fizeram sua entrada no salão por uma porta ao lado direito da mesa do presidente
da assembléia. A orquestra executou logo um pot-pourri, no qual brilhavam
duas clarinetas concertantes, cujas notas melodiosas transportaram o auditório
dos azedumes dos discursos políticos às delícias de um palácio de fadas.
Além da execução e timbre puro, e permita-me que o dia, quase celeste das
clarinetas, todos os demais instrumentos cantaram cada um o seu solo, ou
mostraram-se em relevo nessa miscelânea encantadora.
Logo que as últimas notas expiraram,
eu esta fora de mim em uma espécie de êxtase ideal, que eu mesmo não sei
definir. Executada esta abertura da festa musical, uma pianista executou com suma
perfeição uma peça que muito agradou; mas tinha apenas se levantado do piano
sobe uma chuva de aplausos, que eu senti uma mão apertar-me o braço, e voltando
a cara reconheci o engenheiro Francisco Lemos. "Quer ir beber um copinho de
champagne muito bom?", disse-me ele. "Mas eu não quero perder minha
música. É longe? Não senhor Timon, é perto, seis minutos. Chegamos à porta de
uma casa, entramos em um corredor, uma sala deserta e só povoada a mesa, de
algumas garrafas de vinho e de um prato de biscoitos. Sentamo-nos. Mal tínhamos
nós sentado, entraram Bernardo Guimarães, um doutor em medicina e um
tenente-coronel, ao todo cinco convivas.
Bebidos alguns tragos de champagne,
Bernardo Guimarães começou a nos comunicar os apertos em que se via naquele
momento, na impossibilidade de poder ele mesmo entregar as suas obras às mãos do
Imperador.
Não tinha podido falar-lhe às 7
horas; não podia se lhe apresentar na sala, onde se dava o concerto, ele desejava
o menor número de testemunhas possível no ato da entrega de suas livros. Depois
do concerto seria imprudência tentar reter o Imperador no salão, entretanto que
ele se retirava no dia seguinte às 5 horas da manhã. Tout est perdu,
disse o aflito poeta, bebendo um copo de champagne. Após alguma discussão entre
os cinco membros do Conselho, o caso ia ser julgado desesperado, quando o dr.
Lemos levanta-se, toma a Bernardo Guimarães pelo braço e lhe diz: "Vamos,
sr. Bernardo, eu arranho tudo, hoje mesmo há de falar ao homem e entregar-lhe
suas obras. Desceram as escadas rapidamente, e pareceu-me, a nós que ficamos, que
o poeta ia arrastado pelo engenheiro.
Nós ficamos aguardando que o poeta e
o engenheiro voltasse para junto do champagne a nos darem parte do êxito da
empresa. Passada boa meia hora, retirei-me e, achando-me na rua, dirigi meus
passos para a sala do concerto, refletindo com pesar na bela música que o
champagne fizera perder, e ansioso por saber se Bernardo Guimarães havido
sido bem ou mal sucedido.
Logo ao entrar na galeria li em todos
os semblantes o contentamento e júbilo que respiravam, e ouvi de muitas bocas
expressões entusiásticas pela cena séria, tocante e sublime em que figuraram
principalmente o Imperador e o príncipe dos poetas mineiros. É o que passo a
referir-te, com bastante pesar de não ter sido testemunha de vista. Bernardo
Guimarães fez sua entrada no salão pela porta que já te falei, à direita da
mesa do presidente da assembléia, tendo antes se preparado e tomado ânimo em uma
sala menor, da qual se saí por esta porta para entra no salão. O poeta conduzia
pelas mãos as duas meninas, uma de um lado outra do outro, e alguém trazia uma
bandeja contendo os livros, que deveriam ser entregues por uma delas. O imperador,
em pequena distância da porta, avistou logo a Bernardo Guimarães, as minas e os
livros; e mesmo sem estar prevenido adivinhou o que o poeta dele pretendia; e
levantou-se e marchou para o lado da porta. Todos supuseram a princípio que o
Imperador ia retirar-se e toda aquela assembléia se pôs de pé. Mas quando o
poeta aos primeiros passos apareceu, notou-se um sussurro que denotava a
impressão que ele causara em todos que ali se achavam.
Ele estava todo trajado de preto e as
meninas traziam vestidos brancos curtos. Nem uma condecoração se via em seu
peito, nem uma flor no cabelo das meninas, nem uma fita em sues vestidinhos.
Como marchassem um para o outro, o
Imperador tomou com as suas as mãos do poeta e apertou-as com força e visível
efusão. Todos ficaram comovidos e muita gente derramou lágrimas. O Imperador
conversou alguns instantes com Bernardo Guimarães, tomou as meninas pelas mãos e
as apresentou à Imperatriz, que também se tinha levantado.
Depois o Imperador e a Imperatriz
acariciou as meninas pelas quais tanto se tinha interessado antes de as ter visto,
e o Imperador mandou que se tomasse nota de seus nomes.
Em seguida, teve lugar a entrega dos
livros.
Talvez me tenham escapado algumas
pequenas insignificantes inexatidão, como é natural em atos que se passam
rapidamente, o que pouco importa, mas o quadro, o essencial, ficou gravado na
memória de todos. Como já te disse, eu nada vi, assim como perdi muita música,
tudo por causa do champagne.
O que me consola é que, se não fosse
esse champagne que reuniu os cincos bebedores que mencionei, esta cena memorável
não se teria dado; e Bernardo Guimarães teria de remeter seus livros ao
Imperador, no Rio de Janeiro, e isto bem prosaicamente, o que ele detestava de
todo o coração. Vou te citar mas palavras de Plutarco, escrevendo a vida de
Sertório, para aplicá-las, fazendo-lhes pequena violência, ao ato da entrega
dos livros pelos nossos poetas, que tão imperfeitamente te hei descrito.
"Não é talvez surpreendente
que, no curso infinito dos séculos, a fortuna sendo sempre inconstante e
indeterminada, o acaso traga muitas vezes no mundo os mesmos acidentes. Há gente
que tem gosto em fazer coleções de tudo o que eles têm lido ou tem ouvido
dizer, dessas aventuras que a fortuna traz sobre este grande teatro do mundo, e
que são tão semelhantes que elas aparecem obras da razão e da
Providência."
Quando comissões e mais comissões
discutiam a questão séria dos festejos que se deviam fazer por ocasião da
visita das pessoas imperiais a esta cidade, aquelas doutas cabeças nem por sombra
se lembraram de Bernardo Guimarães, nem tão pouco de sua musa.
Para o concerto, meu amigo, aposto que
nem foi ele convidado: e já te disse que se o Imperador e a Imperatriz não se
tivessem lembrado deles, e como que o chamado, não teria ele aparecido neste
teatro do mundo, nem como ator nem como espectador.
Mas um concurso fortuito de
circunstâncias, como se dispostas pela fortuna, o acaso, o destino se coligaram e
convergiram de tal modo que Bernardo Guimarães figurasse em relevo nestes
festejos, que esse ato da apresentação de suas obras ao Imperador, tão solene,
parece obra da razão e da Providência.
Bem conheces aquele ditado: o homem
propõe e Deus dispõe. O imperador se propôs a visitar esta província e, sem
saber e sem querer, veio a Minas coroar a Bernardo Guimarães, e a coroação teve
lugar, simbólica, na noite de 20 de abril para sempre memorável. O poeta
apresentou suas obras, seus títulos à imortalidade, ao monarca, tendo por
testemunha uma assembléia numerosa, em uma sala luminosa, onde ainda ressoavam os
acordes de uma orquestra condigna do Imperador e da Imperatriz e do poeta insigne,
que a mão do destino ali trouxera para ser coroado de louros.
Alguns, que testemunharam esta cena de
coroação, dizem que foi o povo, que se achava na sala, que primeiro se levantou
quando Bernardo Guimarães apareceu, e por um impulso instintivo de respeito e de
admiração; mas, como quer que seja, o Imperador, como que descendo de seu trono,
marchou e veio ao encontro do poeta. Maior prova de consideração não era
possível, e um rei nunca se abate quando curva a cabeça coroada à deusa da
ciência, às musas, aos talentos, ao mérito, ao gênio.
Petrarca recebeu em um mesmo dia carta
do Senado de Roma, do reio de Nápoles e do chanceler da Universidade de Paris,
nas quais se o convidava a vir receber a coroa de Poeta sobre estes dois
teatros do mundo.
Petrarca foi coroado de louros em
Roma, no ano de 4344, por um senador, no Capitólio. O Tasso foi chamado a Roma
pelo papa Clemente VIII. Levado a audiência do papa este lhe disse: "Desejo
que honreis a coroa de louros que tem honrado até hoje todos que a têm trazido.
Tasso morreu na véspera do dia destinado à cerimônia da coroação.
Bernardo Guimarães ressuscitou, na
noite em que ele foi laureado, do esquecimento em que estava envolvido o seu nome.
"No curso infinito dos séculos a fortuna é sempre inconstante, não é para
admirar que o acaso traga muitas vezes no mundo os mesmos acidentes.
O fato da coroação de Bernardo
Guimarães, de Petrarca, de Tasso, é o mesmo; as circunstâncias preparadas pela
sorte, os tempos é que são diversos." |