Nota do Tradutor, Ronald Kyrmse Esta carta foi extraída de The Letters of J. R. R. Tolkien (Humphrey Carpenter e Christopher Tolkien, eds.). Nela, o próprio Tolkien explica com riqueza de detalhes o significado que pretendeu conferir à sua obra. Por isso, trata-se de um texto que merece ser estudado por todos os pesquisadores e apreciadores do autor.
Meu caro Milton,[Depois que a Allen & Unwin, sofrendo pressão de Tolkien para que se decidisse, havia relutantemente declinado a publicação d'O Senhor dos Anéis juntamente com O Silmarillion, Tolkien estava confiante em que Milton Waldman da Collins logo publicaria ambos os livros sob a égide de sua empresa. Na primavera de 1950, Waldman disse a Tolkien que esperava iniciar a tipografia no outono seguinte. Mas ocorreram atrasos, causados mormente pelas freqüentes ausências de Waldman na Itália e por seus problemas de saúde. Ao final de 1951 ainda não tinha sido feito nenhum arranjo definido para a publicação, e a Collins estava ficando ansiosa a respeito do tamanho total dos dois livros. Foi aparentemente por sugestão de Waldman que Tolkien escreveu a carta seguinte cujo texto integral contém cerca de dez mil palavras com a intenção de demonstrar que O Senhor dos Anéis e O Silmarillion eram interdependentes e indivisíveis. A carta, que tanto interesse provocou em Waldman que ele mandou copiá-la à máquina (vide o final da carta nº 137), não está datada, mas provavelmente foi escrita no final de 1951.]
Os ciclos começam com um mito cosmogônico: a Música
dos Ainur. Deus e os Valar (ou poderes: vertidos por deuses) revelam-se.
Estes últimos são, como diríamos nós, poderes
angélicos, cuja função é exercer a autoridade
delegada em suas esferas (de domínio e governo, não
criação, fazer ou refazer). São "divinos", isto é,
originalmente estavam "fora" e existiam "antes" de ser feito o mundo. Seu
poder e sua sabedoria derivam-se do seu Conhecimento do drama cosmogônico,
que perceberam primeiro como drama (ou seja, de certo modo como nós
percebemos uma história composta por outrem), e mais tarde como
"realidade". Pelo aspecto da mera estratégia narrativa, é
claro que isto foi feito para proporcionar seres da mesma ordem de beleza,
poder e majestade que os "deuses" da alta mitologia, que ainda assim podem
ser aceitos bem, digamos apenas aceitos, por uma mente que creia na Sagrada
Trindade.
Depois deslocamo-nos rapidamente para a História dos Elfos,
ou o Silmarillion propriamente dito; para o mundo como o percebemos,
mas evidentemente transfigurado em um modo ainda semi-mítico: isto
quer dizer que trata de criaturas encarnadas racionais de estatura mais
ou menos comparável à nossa. O Conhecimento do Drama da Criação
estava incompleto: incompleto em cada "deus" individual, e incompleto se
fosse reunido todo o conhecimento do panteão. Pois (em parte para
compensar o mal do rebelde Melkor, em parte para tudo completar em definitiva
fineza de detalhes) o Criador não revelara tudo. A criação
e a natureza dos Filhos de Deus eram os dois principais segredos. Tudo
o que os deuses sabiam era que eles viriam, em épocas pré-determinadas.
Assim, os Filhos de Deus são primevamente relacionados e aparentados,
e primevamente diferentes. Visto que são também algo totalmente
"diverso" dos deuses, em cuja criação os deuses não
participaram, são objeto do especial desejo e amor dos deuses. São
os Primogênitos, os Elfos, e os Seguidores, os Homens.
O destino dos Elfos é serem imortais, amarem a beleza do mundo,
levarem-no ao pleno florescimento com suas dádivas de delicadeza
e perfeição, durarem enquanto ele durar, sem o deixarem jamais
mesmo quando são "mortos", porém retornando e no entanto,
quando chegarem os Seguidores, ensinarem-nos e abrirem caminho para eles,
"desvanecerem-se" enquanto os Seguidores crescem e absorvem a vida da qual
ambos provêm. O Destino (ou a Dádiva) dos Homens é
a mortalidade, a liberdade dos círculos do mundo. Como é
élfico o ponto de vista de todo o ciclo, a mortalidade não
é explicada em termos míticos: é um mistério
de Deus do qual nada mais se sabe senão que "o que Deus destinou
aos Homens está oculto": pesar e inveja dos Elfos imortais.
Como disse, o lendário
Silmarillion é peculiar, e
difere de todas as coisas semelhantes que conheço por não
ser antropocêntrico. Seu centro de vista e interesse não são
os homens, e sim os "elfos". Os homens entraram de modo inevitável:
afinal de contas o autor é um homem, e se tiver platéia será
de homens, e os homens devem ingressar em nossas histórias como
tais, e não meramente transfigurados ou parcialmente representados
como elfos, anões, hobbits etc. Porém permanecem periféricos
retardatários, e por muito que cresçam em importância
não são atores principais.
Na cosmogonia há uma queda: uma queda de Anjos, diríamos.
Apesar de evidentemente ser bem diversa, na forma, da do mito cristão.
Estas histórias são "novas", não derivam diretamente
de outros mitos e lendas, mas precisam inevitavelmente conter uma ampla
medida de motivos ou elementos antigos e difundidos. Afinal, creio que
lendas e mitos são compostos mormente da "verdade", e de fato apresentam
aspectos desta que só podem ser recebidos neste modo; e muito tempo
atrás certas verdades e certos modos desta espécie foram
descobertos e devem ressurgir sempre. Não pode existir "história"
sem queda todas as histórias acabam sendo sobre a queda pelo
menos não para mentes humanas tais como as conhecemos e possuímos.
Assim, prosseguindo, os elfos sofrem uma queda, antes que sua "história"
possa tornar-se histórica. (A primeira queda do Homem, por razões
explicadas, não aparece em nenhum lugar os Homens só entram
em cena quando tudo isso está no passado remoto, e há apenas
um rumor de que por algum tempo sucumbiram ao domínio do Inimigo,
e de que alguns se arrependeram.) O corpo principal do relato, o Silmarillion
propriamente dito, trata da queda da mais talentosa linhagem dos elfos,
do seu exílio de Valinor (uma espécie de Paraíso,
o lar dos Deuses) no mais remoto Ocidente, da sua reentrada na Terra-média,
sua região natal, mas há muito sob o domínio do Inimigo,
e do seu combate contra ele, o poder do Mal ainda visivelmente encarnado.
Tem esse nome porque todos os eventos se interligam com o destino e o significado
das Silmarilli ("radiância de pura luz"), ou Jóias
Primevas. Na feitura das jóias está principalmente simbolizada
a função subcriativa dos elfos, mas as Silmarilli eram mais
do que apenas coisas belas em si. Havia a Luz. Havia a Luz de Valinor tornada
visível nas Duas Árvores de Prata e Ouro. <e> Foram mortas
pelo Inimigo por malevolência, e Valinor escureceu-se, porém
a partir delas, antes de morrerem por completo, derivaram as luzes do Sol
e da Lua. (Há aqui uma diferença notável entre estas
lendas e a maioria das demais, em que o Sol não é um símbolo
divino, e sim um objeto de segunda categoria, e a "luz do Sol" (o mundo
sob o sol) torna-se um termo que denota um mundo decaído, e uma
visão imperfeita e deslocada.)
Mas o principal artífice dos elfos (Feanor) havia aprisionado a
Luz de Valinor nas três jóias supremas, as Silmarilli, antes
que as Árvores fossem conspurcadas ou mortas. Assim, depois disso
essa Luz sobreviveu apenas nas jóias. A queda dos elfos ocorre como
conseqüência da atitude possessiva de Feanor e seus sete filhos
em relação a essas jóias. São capturadas pelo
Inimigo, engastadas em sua Coroa de Ferro e vigiadas em sue fortaleza impenetrável.
Os filhos de Feanor fazem um terrível e blasfemo juramento de inimizade
e vingança contra todos e cada um, mesmo dentre os deuses, que ouse
reivindicar parte ou direito às Silmarilli. Pervertem a maior parte
da sua linhagem, que se rebela contra os deuses, abandona o paraíso
a vai mover guerra sem esperança contra o Inimigo. O primeiro fruto
da sua queda é a guerra no Paraíso, o assassinato de elfos
por elfos, e esse fato e seu juramento malévolo corrompem todo o
seu heroísmo subseqüente, gerando traições e
desfazendo todas as vitórias. O Silmarillion é a história
da Guerra dos Elfos Exilados contra o Inimigo, que se passa toda ela no
noroeste do mundo (Terra-média). Vários contos de vitória
e tragédia misturam-se a ela; mas ela termina em catástrofe,
e com o fim do Mundo Antigo, o mundo da longa Primeira Era. As jóias
são recuperadas (pela intervenção final dos deuses)
apenas para se perderem dos elfos eternamente, uma no mar, uma nas profundezas
da terra e uma como estrela do firmamento. Este legendário termina
com uma visão do fim do mundo, sua ruptura e reconstrução,
e a recuperação das Silmarilli e da "luz antes do Sol"
após uma batalha final que, suponho, deve mais à visão
nórdica de Ragnarök que a qualquer outra coisa, apesar de não
se parecer muito com ela.
À medida que as histórias se tornam menos míticas
e mais semelhantes a contos e romances, os homens entrelaçam-se
com elas. Na sua maior parte são "homens bons" famílias
e seus chefes que, rejeitando o serviço do Mal e ouvindo rumores
sobre os Deuses do Ocidente e os Altos-Elfos, fogem para o oeste e entram
em contato com os Elfos Exilados em meio à sua guerra. Os homens
que aparecem são principalmente os das Três Casas dos Pais
deles, cujos líderes se tornam aliados dos senhores élficos.
O contato entre homens e elfos já prefigura a história das
Eras posteriores, e um tema recorrente é a idéia de que nos
homens (tais como são agora) existe uma linha de "sangue" e hereditariedade,
derivada dos elfos, e de que a arte e poesia dos homens em grande medida
dependem dela, ou são modificadas por ela. <f> Ocorrem, assim,
dois casamentos entre humano e elfo e ambas mais tarde convergem na linhagem
de Earendil, representada por Elrond, o Meio-Elfo que aparece em todas
as histórias, até mesmo n'O Hobbit. A principal história
d'O Silmarillion, a que recebe o tratamento mais pleno, é
a História de Beren e Lúthien, a Donzela Élfica.
<g> Ali encontramos, entre outras coisas, o primeiro exemplo do motivo
(que se tornará dominante nos hobbits) de que as grandes políticas
da história mundial, "as rodas do mundo", freqüentemente não
são giradas pelos Senhores e Governantes, nem pelos deuses, mas
pelos aparentemente desconhecidos e fracos devido à vida secreta
que há na criação, e ao papel inescrutável
a todo saber exceto Um, que reside nas intrusões dos Filhos de Deus
no Drama. É Beren, o mortal proscrito, quem tem sucesso (com a ajuda
de Lúthien, uma simples donzela, apesar de elfa pertencente à
realeza) onde todos os exércitos e guerreiros falharam: penetra
na fortaleza do Inimigo e arranca uma das Silmarilli da Coroa de Ferro.
Ganha assim a mão de Lúthien, e concretiza-se o primeiro
casamento entre mortal e imortal.
Como tal, a história é um romance de fadas heróico
(belo e poderoso, na minha opinião), receptível por si só,
mesmo que se tenha um conhecimento vago, muito geral, do pano de fundo.
Mas é também um elo fundamental do ciclo, destituído
de seu pleno significado se for deslocado do lugar que ali ocupa. Pois
a captura da Silmaril, uma vitória suprema, conduz ao desastre.
O juramento dos filhos de Feanor torna-se operante, e o desejo da Silmaril
leva à ruína todos os reinos dos elfos.
Há outras histórias tratadas quase com a mesma plenitude,
e igualmente independentes, e no entanto ligadas à história
geral. Há os Filhos de Húrin, o conto trágico
de Túrin Turambar e sua irmã Níniel em que Túrin
é o herói: um vulto que pode ser considerado (por quem aprecie
essa tipo de coisa, apesar de não ser muito útil) como derivado
de elementos de Sigurd, o Volsung, de Édipo e do Kullervo finlandês.
Há a Queda de Gondolin: a principal fortaleza élfica.
E o conto, ou os contos, de Earendil, o Peregrino. <h> Ele é
importante como sendo a pessoa que conduz o Silmarillion à sua conclusão,
e que na sua descendência proporciona os principais elos com pessoas
nas histórias das Eras posteriores. Sua função, como
representante de ambas as Famílias, Elfos e Homens, é encontrar
uma passagem marítima que reconduza à Terra dos Deuses, e
persuadi-los, como embaixador, a se preocuparem outra vez com os Exilados,
terem compaixão deles e os salvarem do Inimigo. Sua esposa Elwing
descende de Lúthien e ainda possui a Silmaril. Mas a maldição
ainda funciona, e o lar de Earendil é destruído pelos filhos
de Feanor. Mas surge daí a solução: Elwing, lançando-se
ao Mar para salvar a Jóia, chega até Earendil, e graças
ao poder da grande Pedra eles finalmente alcançam Valinor e realizam
sua missão ao custo de nunca mais lhes ser permitido voltar ou
habitar outra vez com os elfos ou os homens. Então os deuses agem
novamente, e um grande poder emerge do Ocidente, e a Fortaleza do Inimigo
é destruída, e ele próprio [é] expulso do Mundo
para o Nada, para nunca mais ressurgir em forma encarnada. As duas Silmarils
restantes são recuperadas da Coroa de Ferro apenas para serem
perdidas. Os dois últimos filhos de Feanor roubam-nas compelidos
pelo juramento, e são destruídos por elas, lançando-se
no mar e nas profundezas da terra. O navio de Earendil, adornado com a
última Silmaril, é colocado no firmamento como a mais brilhante
das estrelas. Assim terminam O Silmarillion e os contos da Primeira
Era.
O próximo ciclo trata (ou trataria) da Segunda Era. Mas essa é
uma era obscura na Terra, e conta-se (ou precisa-se contar) pouca coisa
da sua história. Nas grandes batalhas contra o Primeiro Inimigo
as terras foram rompidas e arruinadas, e o oeste da Terra-média
tornou-se desolado. Ficamos sabendo que os Elfos Exilados foram, se não
comandados, ao menos severamente aconselhados a retornarem ao Ocidente,
e lá ficarem em paz. Não deveriam habitar permanentemente
em Valinor outra vez, e sim na Ilha Solitária de Eressëa, à
vista do Reino Abençoado. Os Homens das Três Casas foram recompensados
por seu valor e pela aliança fiel, e foi-lhes permitido habitar
como "mais ocidentais de todos os mortais" na grande ilha "Atlântida"
de Númenóre. <i> O destino ou presente de Deus,
a mortalidade, evidentemente não pode ser abolido pelos deuses,
mas os númenorianos possuem uma vida de longa duração.
Fazem-se ao mar e deixam a Terra-média, e estabelecem um grande
reino de marinheiros no mais longínquo limite da vista de Eressëa
(porém não de Valinor). A maioria dos Altos-Elfos também
parte de volta para o Ocidente. Nem todos. Alguns homens aparentados com
os númenorianos permanecem nas terras próximas à beira
do Mar. Alguns dos Exilados não querem retornar, ou atrasam seu
retorno (pois o caminho para o oeste está sempre aberto aos imortais,
e nos Portos Cinzentos os navios estão sempre prontos a zarparem
e partirem até nunca mais). Tampouco os orcs e outros monstros produzidos
pelo Primeiro Inimigo foram destruídos totalmente. E há Sauron.
No Silmarillion e nos Contos da Primeira Era Sauron era um ser de
Valinor pervertido ao serviço do Inimigo, tendo-se tornado seu principal
capitão e servidor. Ele se arrepende de medo quando o Primeiro Inimigo
é derrotado por completo, mas acaba não fazendo o que lhe
tinha sido ordenado, que é voltar para ser julgado pelos deuses.
Fica na Terra-média. Muito lentamente, começando com motivos
razoáveis: a reorganização e reabilitação
da ruína da Terra-média, "negligenciada pelos deuses", ele
se transforma numa reencarnação do Mal e em um ser que anseia
pelo Poder Completo portanto consumido ainda mais ferozmente pelo ódio
(especialmente dos deuses e dos elfos). Através de todo o crepúsculo
da Segunda Era a Sombra cresce no leste da Terra-média, espalhando
cada vez mais seu domínio sobre os homens que se multiplicam à
medida que os elfos começam a desvanecer-se. Assim, os três
temas principais são: os Elfos Retardatários que se demoraram
na Terra-média; o crescimento de Sauron, tornando-se um novo senhor
da Escuridão, mestre e deus dos homens; e Númenor-Atlântida.
São tratados através de anais, e em dois Contos ou Relatos,
Os Anéis de Poder e a Queda de Númenor. Ambos
são o pano de fundo essencial d'O Hobbit e de sua continuação.
No primeiro vemos uma espécie de segunda queda, ou pelo menos "erro",
dos elfos. Essencialmente nada havia de errado em demorarem-se a despeito
dos conselhos, ainda tristemente com <3> as terras mortais de seus antigos
feitos heróicos. Mas queriam ter o bolo sem precisarem comê-lo.
Queriam a paz, a felicidade e a lembrança perfeita d'"O Ocidente",
e ainda assim permanecer na terra comum, onde seu prestígio como
o mais elevado dos povos, acima dos elfos selvagens, dos anões e
dos homens, era maior do que na base da hierarquia de Valinor. Tornaram-se
assim obcecados com "desvanecer-se", o modo pelo qual as mudanças
do tempo (a lei do mundo sob o sol) eram percebidas por eles. Tornaram-se
tristes, e sua arte (digamos) antiquária, e todos os seus esforços
na verdade uma espécie de embalsamamento apesar de também
reterem o antigo motivo da sua espécie, o adorno da terra e a cura
de suas feridas. Ouvimos falar de um reino tardante, no extremo noroeste,
mais ou menos onde ficavam os remanescentes da antigas terras d'O Silmarillion,
sob Gilgalad; e de outros povoados, tais como Imladris (Valfenda) junto
a Elrond; e de um grande em Eregion, nos contrafortes ocidentais das Montanhas
da Névoa, adjacente às Minas de Moria, o importante reino
dos anões na Segunda Era. Lá surgiu uma amizade entre gente
normalmente hostil (elfos e anões) pela primeira e única
vez, e o trabalho dos metais atingiu seu desenvolvimento mais alto. Mas
muitos dos elfos deram ouvidos a Sauron. Naquela época primitiva
ele ainda era belo, e seus motivos e os dos elfos pareciam coincidir em
parte: a cura das terras desoladas. Sauron encontrou o ponto fraco deles
ao sugerir que, auxiliando-se entre si, poderiam tornar a Terra-média
tão bela quanto Valinor. Era realmente um ataque velado aos deuses,
uma incitação para tentar estabelecer um paraíso independente
em separado. Gilgalad rechaçou todas essas abordagens, bem assim
como Elrond. Mas em Eregion iniciou-se uma grande obra e os elfos chegaram
o mais perto possível de sucumbirem à "magia" e ao maquinário.
Com a ajuda do saber de Sauron, fizeram Anéis de Poder ("poder"
é uma palavra agourenta e sinistra em todos estes contos, exceto
quando se aplica aos deuses).
O principal poder (de todos ao anéis igualmente) era a prevenção
ou o retardamento da deterioração (isto é,
da mudança vista como coisa lamentável), a preservação
do que se deseja ou ama, ou de sua aparência este é mais
ou menos um motivo élfico. Mas também reforçavam os
poderes naturais do possuidor aproximando-se assim da magia, um motivo
facilmente corruptível ao mal, uma ânsia de dominação.
E tinham por fim outros poderes, derivados mais diretamente de Sauron (o
Necromante: assim é chamado enquanto lança uma sombra e
um presságio fugidios nas páginas dO Hobbit): tais
como tornar invisível o corpo material, e tornar visíveis
objetos do mundo invisível.
Os elfos de Eregion fizeram Três anéis supremamente belos
e poderosos, quase que unicamente da sua própria imaginação,
e dirigiram-nos à preservação da beleza: não
conferiam invisibilidade. Mas secretamente, no Fogo subterrâneo,
em sua própria Terra Negra, Sauron fez Um Anel, o Anel Governante
que continha os poderes de todos os demais, e os controlava, de modo que
quem o usasse pudesse ver os pensamentos de todos os que usavam os anéis
menores, governar tudo o que faziam, e no final escravizá-los por
completo. Não contou, porém, com a sabedoria e as sutis percepções
dos elfos. No momento em que assumiu o Um, eles se deram conta disso, e
de seu propósito secreto, e tiveram medo. Esconderam os Três
Anéis, de forma que nem mesmo Sauron jamais descobriu onde estavam,
e permaneceram imaculados. Os outros eles tentaram destruir.
Na guerra que resultou entre Sauron e os elfos, a Terra-média, especialmente
no oeste, foi arruinada ainda mais. Eregion foi capturada e destruída,
e Sauron apossou-se de muitos Anéis de Poder. Estes ele deu, para
sua total corrupção e escravização, aos que
os aceitaram (por ambição ou cobiça). Vem daí
a antiga rima que aparece como Leitmotiv dO Senhor dos Anéis,
Assim Sauron tornou-se quase supremo na Terra-média. Os elfos subsistiam em lugares secretos (ainda não revelados). O último Reino Élfico de Gilgalad é mantido precariamente nas costas do extremo oeste, onde ficam os portos dos Navios. Elrond, o Meio-Elfo, filho de Earendil, mantém uma espécie de refúgio encantado em Imladris (em inglês Rivendell [Valfenda])na extrema margem leste das terras ocidentais. <j> Mas Sauron domina todas as hordas dos homens, que se multiplicam e não tiveram contato com os elfos, nem portanto indiretamente com os verdadeiros Valar e deuses não-decaídos. Governa um império crescente desde a grande torre negra de Barad-dûr em Mordor, perto da Montanha de Fogo, empunhando o Um Anel.Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais, fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Este é um resumo longo e no entanto árido. Muitos personagens importantes para a história nem são mencionados. Até algumas invenções plenas, como os admiráveis Ents, as mais antigas criaturas racionais viventes, Pastores das Árvores, foram omitidas. Como agora tentamos lidar com a "vida comum", que ressurge sempre inextinguível sob o pisotear das políticas e dos eventos mundiais, há histórias de amor inseridas, ou amor em diferentes modos, totalmente ausente d'O Hobbit. Porém a mais elevada história de amor, a de Aragorn e Arwen, filha de Elrond, é apenas mencionada como coisa conhecida. É contada como curto relato em outro lugar, De Aragorn e Arwen Undómiel. Creio que o amor simples e "rústico" de Sam e sua Rosinha (que não está detalhado em nenhuma parte) é absolutamente essencial ao estudo do seu caráter (do principal herói), e ao tema da relação entre a vida ordinária (respirar, comer, trabalhar, gerar) e as demandas, o sacrifício, as causas, e o "ansiar pelos elfos", e a beleza absoluta. Mas não direi mais, nem defenderei o tema do amor iludido visto em Eowyn e seu primeiro amor por Aragorn. Não acho que agora muita coisa possa ser feita para curar os defeitos deste conto, volumoso e abrangente ou para torná-lo "publicável", se já não o é. Uma breve revisão (agora concluída) de um ponto crucial d'O Hobbit, esclarecendo o caráter de Gollum e sua relação com o Anel, permitir-me-á reduzir o Livro I, capítulo II, "A Sombra do Passado", simplificá-lo e acelerá-lo e também simplificar um pouco a discutível abertura do Livro II. Se o outro material, "O Silmarillion" e alguns outros contos ou elos, tais como A Queda de Númenor, forem publicados ou estiverem em processo de publicação, então muitas explicações de fundo, especialmente as que se encontram no Conselho de Elrond (Lv II), poderão ser dispensadas. Mas no geral isso não chegaria a equivaler à exclusão de um único capítulo longo (de um total de cerca de 72).[A carta prossegue com um resumo (sem comentários) da história d'O Senhor dos Anéis, depois do que Tolkien escreve:]
Notas do Autor
<a> Pretendendo que a
palavra seja compreendida com seus significados antigos, que prosseguiram
até a época de Spenser uma peste sobre Will Shakespeare
e suas malditas teias de aranha.
<b> Apesar de que tenho
pensado bastante a respeito deles.
<c> Ele trata fundamentalmente,
suponho, do problema da relação entre a Arte (e Subcriação)
e a Realidade Primária.
<d> Não no Iniciador
do Mal: a Queda dele foi subcriativa, e portanto os elfos (os representantes
da subcriação por excelência) eram seus inimigos peculiares,
e objetos especiais de seu desejo e ódio e abertos às suas
fraudes. A Queda deles é para a cobiça e (em menor grau)
para a perversão da sua arte em poder.
<e> Na medida em que
tudo isto tem significado simbólico ou alegórico. A luz é
um símbolo tão primevo na natureza do Universo que mal pode
ser analisada. A Luz de Valinor (derivada da luz antes de qualquer queda)
é a luz da arte não-divorciada da razão, que enxerga
as coisas de modo ao mesmo tempo científico (ou filosófico)
e imaginativo (ou subcriativo) e diz que são boas" como sendo
belas. A Luz do Sol (ou da Lua) derivou das Árvores somente após
elas serem conspurcadas pelo Mal.
<f> É claro que
na realidade isto significa apenas que meus "elfos" são simplesmente
uma representação ou apreensão de parte da natureza
humana, mas não é esse o modo de falar lendário.
<g> Ela existe de fato
como poema de considerável comprimento, do qual a versão
em prosa n'O Silmarillion é apenas uma versão reduzida.
<1>
<h> A origem real de
seu nome é o anglo-saxão earendel "raio de luz", às
vezes aplicado à estrela da manhã, um nome com conexões
mitológicas ramificadas (atualmente obscuras em sua maioria). Mas
este é uma mera "nota erudita". Na verdade seu nome é élfico,
significando Grande Marinheiro ou Amante do Mar.
<i> Um nome que Lewis
deriva de mim e não pode ser impedido de usar, nem de grafar incorretamente
como Numinor. Númenóre em "élfico" significa simplesmente
Ponente ou Terra no Oeste, e não tem relação com numen
numinoso, nem νούμενον!
<2>
<j> Elrond simboliza
em toda a parte a antiga sabedoria, e sua Casa representa Erudição
a preservação, em reverente lembrança, de todas
as tradições a respeito do bom, do sábio e do belo.
Não é cenário de ação, mas sim
de reflexão. É portanto um local visitado a caminho
de todos os feitos ou "aventuras". Pode resultar encontrar-se na estrada
direta (como n'O Hobbit), mas pode ser necessário ir até
lá por um trajeto totalmente inesperado. Assim, necessariamente,
n'O Senhor dos Anéis, tendo escapado até Elrond da
perseguição iminente pelo mal presente, o herói parte
em uma direção totalmente nova para ir enfrentá-lo
na sua fonte.
<k> Reflete-se aqui a
opinião (que claramente reaparece mais tarde, no caso dos hobbits
que possuem o Anel por algum tempo) que cada "Espécie" tem uma duração
natural de vida, integral à sua natureza biológica e espiritual.
Ela não pode realmente ser aumentada de modo qualitativo
ou quantitativo, de forma que o prolongamento no tempo é como esticar
um arame com tensão cada vez maior, ou "espalhar a manteiga cada
vez mais fina" torna-se um tormento intolerável.
<l> É somente
no tempo entre O Hobbit e sua continuação que se descobre
que o Necromante é Sauron Redivivus, crescendo rapidamente
para reassumir forma visível e poder. Ele escapa à vigilância
e volta a entrar em Mordor e na Torre Escura.
<m> Os hobbits, é
claro, são realmente imaginados como um ramo da raça especificamente
humana
(não elfos ou anões) por isso as duas espécies podem
morar juntas (como em Bri), e são chamadas simplesmente de Pessoas
Grandes e Pessoas Pequenas. São inteiramente desprovidos de poderes
não-humanos, mas são representados como estando em maior
contato com a "natureza" (o solo e outros seres vivos, plantas e animais),
e anormalmente, para humanos, livres de ambição ou cobiça
de riqueza. São feitos pequenos (um pouco maiores que meia
estatura humana, porém diminuindo à medida que passam os
anos), em parte para exibir a mesquinhez do homem, do homem simples, sem
imaginação e provinciano porém sem a pequenez ou
crueldade de Swift, e mormente para apontar, em criaturas de força
física muito pequena, o espantoso e inesperado heroísmo de
homens comuns "em apuros".
<n> Em nenhuma parte
o lugar ou a natureza dos "Magos" [Wizards] é plenamente
explicitada. Seu nome, relacionado com Wise [Sábio], é
uma anglicização do seu nome élfico, e usa-se
em toda a parte como algo totalmente distinto de Feiticeiro ou Mágico.
Revela-se por fim que eles eram, como poderíamos dizer, o equivalente
próximo, no modo destes contos, dos Anjos, Anjos guardiões.
Seus poderes dirigem-se primariamente ao encorajamento dos inimigos do
mal, para fazer com que usem sua própria inteligência e valor,
para unir e suportar. Aparecem sempre como anciãos sábios,
e apesar de (enviados pelos poderes do verdadeiro Ocidente) eles próprios
sofrerem no mundo, sua idade e seus cabelos brancos só aumentam
lentamente. Gandalf, cuja função especial é vigiar
os assuntos humanos (dos homens e dos hobbits), perdura através
de todas os contos.
<o> A hostilidade entre
anões (mesmo bons) e elfos, um motivo que aparece com freqüência,
deriva-se das lendas da Primeira Era; as Minas de Moria, as guerras entre
anões e orcs (soldadesca do Senhor da Escuridão) referem-se
à Segunda Era e o começo da terceira.
<p> Mas como a cada um
desagradou uma coisa ou outra, eu descobriria (caso juntasse todas as críticas
e lhes obedecesse) que pouca coisa sobrou, e sou obrigado a concluir que
uma obra tão grande (em tamanho) não pode ser perfeita, e
nem que fosse perfeita agradaria inteiramente a cada um dos leitores.
Notas dos Editores
<1> Vide a nota introdutória
ao nº 19 [carta].
<2> Noumenon, neutro
do particípio presente de νοείν (noein), apreender, conceber, introduzido por Kant em contraste a "phenomenon",
e que adquiriu o significado de "objeto de intuição puramente
intelectual, destituído de quaisquer atributos fenomenais".
<3> O texto desta carta
foi extraído de uma versão escrita por um datilógrafo
profissional, por instigação de Milton Waldman (há
alguns erros ortográficos de nomes, que Tolkien corrigiu); parece
que aqui o datilógrafo omitiu algumas palavras do manuscrito de
Tolkien.
<4> Tar-Calion (o nome
de Ar-Pharazôn em quenya) era originariamente o décimo terceiro
monarca de Númenor; em desenvolvimentos posteriores da história
de Númenor, tornou-se o vigésimo quinto (normalmente registrado
como vigésimo quarto, mas vide Contos Inacabados pág. 226,
nota 11).
<5> Como demonstram cartas
anteriores deste livro, O Senhor dos Anéis foi de fato iniciado
em dezembro de 1937.
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