QUAL SERÁ O MEU DESTINO???

MAIS UMA AVENTURA DE CHARLOTTE

 

              

Dias e mais dias passaram, e na mesma posição eu fiquei, como se estivesse morta, pois até um buquê lindo de lírios amarelos colocaram em cima de mim. Apesar de estar apreensiva sem saber o que iriam fazer comigo, eu ainda tinha esperança de não ser guardada durante meses em um guarda-móveis. Essa era a minha maior preocupação, pois eu não conseguia me ver dentro de uma caixa, essa caixa dentro de um caixote e o caixote dentro de um caixotão enorme chamado "container" na lingua inglesa, o qual seria lacrado para evitar que alguém abrisse e roubasse alguma coisa. Sei que não sou gente de verdade, mas eu já me sentia sufocada, só em pensar na possibilidade de ser empacotada. Mas, nunca perdi a esperança de ficar com meus pais, pois todas as vezes que minha mãe me olhava, eu sentia que ela estava planejando alguma coisa, e eu sentia que algo de bom iria acontecer.

A casa estava toda revirada, e me colocaram em cima de um saco amarelo o qual eu sentia que havia sido preparado para me embrulhar. Enquanto isso, eu olhava minha mãe no computador preparando a lista do que empacotavam. Uma certa noite, minha mãe olhou para mim e saiu do quarto. Pensei um pouco assustada: "O que será que vai acontecer comigo?". Penso que foi nesse momento que ela foi falar com meu pai, e tomaram a decisão de me deixar com eles e me  levar para o novo apartamento. Ouvi quando por telefone, meu pai contava para uma de suas filhas que eu iria ficar com eles no novo apartamento. Minha mãe conseguiu convencê-lo usando a desculpa de que a minha pele poderia estragar ficando muito tempo embalada em lugar quente. Foi a minha sorte. Minha mãe soube usar um bom argumento. Quando meus pais eram eram noivos, ele deu à minha mãe de presente uma linda boneca que parecia ser de verdade. Seus olhos eram lindos e bem diferentes dos meus... eram azuis. Os meus são castanhos amendoados, mas são também muito bonitos. A boneca teve um problema sério, pois a tinta usada para pintar o seu rosto começou a melar devido ao calor. Assim, meu pai logo concordou que eu ficasse, pensando que talvez acontecesse a mesma coisa comigo. Mas, o que pensei mesmo, foi que ele já estava acostumado comigo em casa. Apesar de eu ser uma boneca eu pareço ser de verdade. Ouvi quando meu pai falava sobre isso. Ele dizia  que quando acordava durante à noite e me via sentada no móvel em frente a porta do quarto chegava a levar um susto. Mas, penso que sou melhor do que se fosse uma filha de verdade, pois não dou trabalho e nem preocupações. A casa ficou muito vazia depois que Cláudia e Paula foram embora. Sinto que eu preenchi um pouco o espaço que suas filhas deixaram. Me sinto feliz com isso.

Um certo dia fiquei preocupada. Meu coração chegou a bater mais forte. Me colocaram em cima da cama junto com algumas coisas que pretendiam embalar, e o saco amarelo foi colocado junto. Pensei comigo mesma: "Será que mudaram de idéia?" Ouvi quando falaram que eu era muito grande e iria ocupar muito espaço na bagagem que seria levada mais tarde para o depósito.  Será que uma  bonequinha  iria fazer tanta diferença junto com todas as coisas que estavam levando? Afinal de contas eu não sou tão grande assim... Quem sabe isso não era uma desculpa que meus pais estavam arranjando para não me carregarem junto deles pelo aeroporto e sendo mais um estorvo durante essa viagem tão cansativa que iriam fazer de volta ao Brasil.

Parada tanto tempo em cima da cama, um certo dia me deu vontade de fazer algo bem diferente. Aproveitei um fim de semana que meus pais saíram, e desci rapidinho da cama não só para me divertir um pouco, como também para ver as caixas já empacotadas. Eu estava curiosa para saber se poderia haver  algum  perigo de eu ser colocada junto de seus pertences que iriam se embalados.

A primeira coisa que fiz foi ir rápido para o quarto ao lado, e ver como estava a situação da mudança. Era o quarto de Paula e estava bem diferente. Em um canto do quarto meu pai colocou todos os tapetes enrolados. Quantas caixas meu pai empacotou!!! Acho que foram quase sessenta caixas. Todas muito bem embaladas, para economizar espaço e pagar menos no depósito onde iriam ficar por um ano.

Como me pai falou, os empregados que as companhias costumam mandar para empacotar a mudança, geralmente colocam poucos objetos nas caixas. Assim sendo, a companhia ganha muito mais dinheiro. Hoje em dia é muito difícil confiar nas pessoas. Resolvi subir em cima dos tapetes e ver tudo do alto, mas, penso que eu queria mesmo é brincar, pois sou mesmo levada como Teresa.

Teresa quando pequena adorava subir em árvores ou fazer outras brincadeiras desse tipo. Foi bom ela estar acostumada a esse tipo de  brincadeira, pois quando tinha apenas dez anos, enquanto a familia reunida durante as férias assistia os fogos de artifícios na Disney World, ela se perdeu. Como foi sempre muito esperta resolveu subir em uma árvore para procurar seus pais. Quando meu pai olhou em volta procurando por ela, viu Teresa em cima de uma árvore. A família toda acabou ficando feliz outra vez. Já pensou se perdessem Teresa!!!

Ouvi um certo dia meu pai falando, que já estava cansado de tanto empacotar caixas e malas. Coitado, durante toda a sua vida passou empacotando e desempacotando a mudança da família quando mudavam para uma outra cidade ou país. A sala de visitas que eu achava linda, parecendo do tempo de minha bisavó, estava agora bem diferente. Na mesa do centro minha mãe colocou todos os objetos que ela mais gostava. No canto esquerdo, seus melhores livros e álbuns com memórias do tempo em que moraram na Inglaterra. Tempo muito importante na vida da família. Nesses álbuns haviam recordações da chegada deles à Londres com suas três filhas, Teresa, Claudia e Paula, em 1986, e despedida de Teresa voltando para o Brasil em 1987. Haviam também fotografias de todos os aniversários que a família passou no número trinta do edifício chamado Sandringham Court, das formaturas de Cláudia e Paula e casamentos de Carlos Eduardo com Angela e Teresa com José Américo. Haviam ainda fotografias dos nascimentos de Stephanie, Rebecca, Caroline e Matthew, seu primeiro netinho. As fotografias mais importantes para minha mãe, eram as que foram tiradas celebrando os aniversários de casamento dela e do meu pai durante os trinta e sete anos de casados. Enfim, como minha mãe sempre fala, esses álbuns são realmente muito preciosos para ela.

Durante duas semanas, mais de dez companhias vieram avaliar o custo da mudança. Minha mãe teve que ter muita paciência, pois tinha que repetir as mesmas instruções e explicações, algumas vezes três vezes ao dia. O que mais ela recomendava era o cuidado com seus livros de arte e seus álbuns.

           

No final da sala haviam mais pilhas de livros, os de menos importância para ela e livros que meu pai trouxe da OMI, Organização Marítima Internacional onde trabalhou durante todos esses anos. Ele mesmo ficou admirado de quantos livros juntou.

 

Mas, não foram poucos, foram quatorze anos. Mais do que eu tenho de idade? Acho que sim, pois não sei bem quantos anos eu tenho.

Perto de seus livros, minha mãe colocou o cartão com uma poesia que escreveu e leu para ele na festa de sua despedida. Foi muito emocionante, pois meu pai não conseguiu ler. Penso que ele estava muito emocionado em deixar o lugar que trabalhou feliz durante tanto tempo.

 

Bem, deixe eu ir para o quarto de Cláudia e ver como ficou com a mudança. Cláudia!!! Se você visse como ficou seu quartinho que você gostava tanto de manter sempre arrumado!!! Eram livros e mais livros espalhados em cima da sua estante. Mais uma vez aproveitei para ficar em cima deles como se estivesse brincando.                                                           

Quero ver minha mãe ter tempo de ler todos esses livros quando voltar para o Brasil. No Brasil ela tem tantos amigos, que tenho certeza, que o seu tempo livre vai ser muito pouco.

Upps!!! Quase que levo um tombo. Fui trepar em cima dos travesseiros e acabei escorregando e quase caindo em cima da bicicleta de ginástica de Claudia. Foi até gostoso, parecia que eu estava em um escorrega de verdade. Esses travesseiros minha mãe fez questão de deixar forrados.

Minha mãe forrou com camisetas, forro de saias velhas e calças compridas usadas, pois ela não tinha tempo nem de ir nas lojas comprar tecidos próprios.

O quarto deles também estava todo desarrumado com caixas por todos os lados. Em cima da penteadeira ficaram as peças que ainda faltavam embalar. Como ficou diferente o quarto que minha mãe mantinha sempre arrumado. Quanto trabalho estava faltando para meu pai fazer...

Minha mãe resolveu me deixar sem chapéu dentro de casa. Ouvi quando sua amiga inglesa Leonora falou que dentro de casa não se usa chapéu. Sempre pensei que isso fosse só para pessoas adultas. Bobagem, não? Será que isso é coisa de Inglês??? Os ingleses são cheios de novidades e etiquetas, mas, como eles, acho também que educação e cultura são importantes na vida de uma pessoa. Os ingleses usam muito a palavra "upbringing", palavra muito complicada de falar. "Upbringing", significa a maneira com que você foi educado, e principalmente, onde você estudou. Mas, não me incomodei quando minha mãe tirou o meu chapéu, só assim, as pessoas poderiam ver minhas trancinhas douradas. Gostei também pois fica bem mais fresco e posso brincar mais a vontade.  Resolvi colocar o meu chapéu, mas, caiu novamente enquanto eu procurava andar rápido. Deixe eu ver o que está acontecendo na sala de jantar e na cozinha, pois de repente eles podem voltar. Nossa... quanta caixa!!! Vou ver se consigo trepar na última e me sentir bem alta, parecendo gente adulta.

Upps!!! Quase que levo um tombo!!! Se não seguro, talvez eles me encontrassem caída no chão. Um tombo dessa altura seria bem perigoso. Que trabalho meu pai teve... tudo isso ele fez sozinho, pois não deixava minha mãe pegar em nenhuma caixa pesada. Meu pai é muito forte, determinado e responsável. Que bom, deu para eu ver tudo, e sentir bem que tenho bastante chance de não ser embalada. Felizmente não vou ocupar muito espaço no apartamento que vão morar, apesar de ouvir falar que é bem pequeno. Meus pais deram muita sorte em encontrar esse apartamento bem pertinho de onde moravam. Bem, acho que já vi tudo que queria. O mais importante, é que tenho quase certeza que não vou ser embalada. Acho bom antes deles chegarem, me colocar na mesma posição que me deixaram, deitada como se estivesse morta com os lindos lírios amarelos em cima de mim.

Os dias foram passando, já era quinta feira. Na sexta logo cedo, ouvi falar que parte da mudança seria levada pela companhia de mudanças. Quantas viagens fizeram para o novo apartamento, levando o que iria ficar com eles. Como fiquei feliz, quando em uma dessas idas para o apartamento, minha mãe me colocou no colo e me levou junto com outras sacolas que havia preparado. Que alivio senti... eu iria viver em uma casa de verdade. Meu novo endereço: 8D, Stuart Tower. Gostei muito do nome. Assim que entramos no apartamento minha mãe foi direto para o seu quarto. Ela já havia arranjado um lugarzinho especial para me colocar.

Fiquei sentada em um móvel muito bonito que tinha uma gaveta na parte de baixo, e atrás um espelho oval bem grande, e era pintado com uma tinta que parecia ouro. O que mais gostei, foi que eu iria ficar no quarto junto com eles, podendo me distrair vendo o movimento dos dois. Junto comigo minha mãe trouxe o que ela achava mais importante para começar um novo lar, como flores e porta retratos com fotos dos filhos e netos. Trouxe também para minha surpresa, uma raposinha em forma de estola, que pertenceu à mãe de meu pai que se chama Hilda. Ela havia comprado essa raposa nos anos quarenta, em uma das lojas mais famosas da Quinta Avenida, em Nova York. Ouvi falar que ela era muito elegante. A rapozinha já estava bem velhinha, e o seu pelo estava caindo muito, assim resolveram não embalar. Fiquei feliz, pois a rapozinha ficou em uma parte da penteadeira bem perto de mim. Eu já não me sentia tão sozinha. Assim que minha mãe me trouxe e voltou para o apartamento antigo, aproveitei para dar uma olhadinha nesse lugar que eu já estava gostando, e me sentindo como se estivesse em minha própria casa. A primeira coisa que fiz foi ficar em pé no espelho, e me ver inteirinha pela primeira vez.       

Como me achei bonita... Felizmente eu já não estava mais enfeitada como uma árvore de Natal, e pude ver como minhas trancinhas estavam compridas. Continuando a me olhar no espelho, reparei que ainda não tenho sapatinhos, mas não me incomodei, pois vivo sempre dentro de casa. A idéia que minha mãe tem, de me levar nos museus Londrinos e escrever livros para crianças com fotografias tiradas de mim visitando os museus ainda não aconteceu. Minha mãe sempre pensa na educação das crianças. Sempre fala que a leitura faz parte da educação e tem que ser cultivada desde que a criança é bem pequenininha. Assim, através desses livrinhos, ela pensa em educar um pouco mais as crianças. Minha mãe precisa de tempo, mas o tempo passa tão depressa que ela nunca faz o que realmente gosta, que é ler, escrever e usar o computador. Sei tudo isso, pois escuto sempre quando reclama. Nossa... e como reclama!!!

Assim que desci de onde estava, fui logo ver a rapozinha, pois eu nunca havia segurado um bichinho que havia morrido há tanto tempo, e ainda parecia vivo. Arranjei logo um nome para ela, pois acho que todos devem ter seu próprio nome. Bem, pensei em chamá-la de Doçura.  Do jeito que ela estava arrumada na prateleira parecia de verdade. Parecia apenas estar descansando com seus olhinhos muito abertos, parecendo enxergar tudo e até me vendo. Infelizmente Doçura não me fez companhia por muito tempo, pois minha mãe achou que ela estava ocupando um lugar muito nobre no seu quarto, não que ela não merecesse, mas esse espaço seria usado para colocar seus livros. Mesmo depois que a mudança saiu, ela não parou de comprar livros. E assim, Doçura depois de ser muito bem embaladinha, foi também para o depósito. Um dia vamos nos encontrar de novo quando chegarmos ao Brasil.

Continuei a minha busca pelo apartamento. O banheiro era todo cor de rosa. Na parede tinha um espelho enorme com moldura dourada. As torneiras eram também douradas. Subi logo na pia para me ver de novo.  Pensei comigo: "Como sou vaidosa. Pareço até gente de verdade com essa vaidade exagerada... Preciso aprender a me controlar".

 

 

 

 

 

 

 

 

Resolvi ir até a cozinha. Achei muito agradável e espaçosa. Bem mais bonita do que a cozinha do outro apartamento onde morávamos. Era toda branquinha, e a parede era forrada com papel verde claro com flores cor de rosa também clarinhas. Penso que minha mãe deve ter gostado, pois tinha máquina de lavar louça, de secar, de lavar e muitos armários.

   

Não resisti em subir na lata de lixo e ver a vista da cidade, pois do oitavo andar deveria ser muito bonita. Nunca havia morado em um lugar tão alto.

Que azar, a minha mãe colocou um arranjo com lírios bem em frente da janela, mas, vou puxar um pouquinho para o lado, e depois coloco no mesmo lugar. Só não posso esquecer. Achei muito bonito e alegre esse arranjo de flores amarelas perto de uma cortininha de renda branca. A minha mãe é muito romântica, e tudo que faz, faz com carinho para ficar o melhor que puder. O apartamento depois de todo decorado ficou muito bonito. O seu estilo era o inglês, parecendo até o apartamento de sua amiga Leonra.

Quando voltava da cozinha, reparei que havaiam duas almofadinhas novas em cima da cadeira da sala. Penso que Paula havia mandado de presente pelo dias das mães. Posso ver pelo cartão que veio junto como Paula é meiguinha. Penso que uma almofadinha bordada com a frase "King of the remote", foi a que chegou especialmente para o meu pai. Realmente ele gosta muito de ver televisão. Paula tem muito bom humor, isso é um sinal de que ela é bem feliz.

Quando à tardinha meu pai chegou, o apartamento já estava preparado para ser usado. Tudo já estava nos seus lugares. O apartamento era pequeno, mas tinha uma coisa de bom: tinha muitos armários, e deu para acomodar tudo que trouxeram. No dia seguinte senti que os dois estavam felizes, principalmente meu pai, pois a mudança tinha saído e eles tinham conseguido em poucos dias cumprir com mais essa missão, de desocupar o apartamento no Sandringham Court onde moraram por nove anos. Os donos do apartamento resolveram vender, e só deram duas semanas para fazerem a mudança.

Estávamos morando há algum tempo no novo apartamento, quando as coisas começaram a mudar. Comecei a ficar aborrecida, pois me tiraram do lugar que eu estava e que me divertia tanto vendo o movimento dos dois, para me colocarem em um canto fora do quarto. Tiveram que colocar o computador bem no canto onde eu ficava. Que azar...

O pior aconteceu em um fim de semana, quando voltaram para casa com um espantalho fajuto comprado na feira de Portobello. Colocaram bem perto de mim achando que eu iria ficar feliz. Feliz ficando perto de um espantalho!!! Na mesma hora virei as costas para ele, pois notei que minha mãe havia gostado muito dele, e fiquei logo com ciúmes.

Até um nome que a princípio achei horrível, ela tinha arranjado para ele... Feliz. Como ele poderia ser chamado de Feliz sendo feito de palha, e nem pernas e braços verdadeiros tinha? Como poderia ser chamado de Feliz sendo um espantalho, que passava a vida assustando pessoas, sendo beliscado por pássaros e ficando a merce de ventos fortes, sol e tempestades!!! Ainda bem que sou boneca... vivo em uma casa muito confortável e sou muito bem cuidada.

Faziam muitos dias que eu estava me sentindo muito triste e sozinha, porque minha mãe pouco olhava para mim. Lembro quando chegou bem perto de mim e colocou um lindo lírio amarelo no meu chapéu. Foi por ocasião da Páscoa, quando os parques da cidade ficam cobertos dessa florzinha amarela. Assim, tive tempo bastante para pensar no pobre espantalhinho Feliz, e como ele deveria ter sofrido antes de minha mãe o ter comprado e o ter colocado perto de mim. Pensei que ele deveria ter passado por tudo que passei quando ficava nas feiras de rua esperando que alguém me comprasse, e acima de tudo sendo um espantalho e sem ter perninhas nem para andar. Coitado de Feliz... Assim, enquanto ficava  sozinha e sempre pensando em Feliz, resolvi ser boazinha e me tornar sua amiguinha. Com muito carinho, o peguei no colo... como ele ficou feliz.

Vi nesse momento, que  minha mãe tinha acertado quanto à escolha do seu nome. Mas, pensando bem, ele até que poderia ser feliz sendo um espantalho e sendo bicado por pássaros e outros animais que destroem as plantações. Sabem por quê? Porque as plantações são transformadas em alimentos para as criançinhas e suas famílias. Muitas vezes é graças aos espantalhos que as plantinhas crescem, pois eles evitam que as sementinhas sejam comidas. O que tenho mais pena é que ele tem sempre que se vestir meio fajuto, e quanto mais fajuto melhor para poder espantar os pássaros. Infelizmente algumas vezes, Feliz ficava tão feio, tão feio, que assustava também pessoas. Boneca é bem diferente. São como pessoas, que quanto mais enfeitadas mais bonitas ficam.

Assim, continuo a minha vida de boneca. Algumas vezes me colocam na sala junto com Feliz, e podemos nos divertir um pouco. Na rua ninguém nos leva.

Mas, não fico aborrecida, pois seria ridículo nós dois passeando na rua com nossos pais. Afinal de contas eles não são mais crianças. O meu único desejo, é que, logo logo minha mãe arranje um tempinho, e comece a escrever estorinhas com fotografias minhas nos museus ou em outros lugares da cidade de Londres. Penso que assim vou passar a conhecer um pouco dessa cidade, que sempre ouço minha mãe dizer que parece ser encantada com suas estórias de reis e rainhas que existem há quase mil anos. Como eu gostaria de saber ler e poder frequentar as bibliotecas como as pessoas fazem... mas, sou apenas a Charlotte, uma boneca que gostaria muito de virar gente para sempre.

 

Londres, março 1998

MARIA LUCIA DA COSTA

 

 

  1