Uma Introdução À Geologia

 
 
 
 
 

A Geologia não encerra nenhuma lição mais importante que a da vastidão do Tempo Geológico.

(Stephen Jay Gould)

Para a maioria das pessoas, mais ou menos interessadas nos fenómenos naturais, a Geologia não passa do mero estudo de minerais, rochas e formações rochosas: os fósseis e a fossilização são assunto da Arqueologia, a evolução e a história da Vida ficam para a Biologia, a cartografia e o estudo do relevo remetem para a Geografia, a descoberta e a exploração de jazigos minerais são um exclusivo da Engenharia de Minas.
Na verdade, esta é uma visão da Geologia que não poderia estar mais longe da realidade.Nos últimos 50 anos a Geologia emergiu – ou, mais adequadamente, aflorou... – como uma Ciência completamente amadurecida, distinguível pela sua intrínseca natureza interdisciplinar, pela complexidade tetradimensional do seu principal objecto de estudo – o planeta Terra – e pelo seu percurso evolutivo como Ciência: partiu das perspectivas reducionistas originais para uma visão actual, holística e ecuménica, com o objectivo central de “compreender a Terra”. 
Ao longo do séc. XX, a Física, a Química e mais recentemente, a Biologia Molecular, deram enormes contribuições para o entendimento da Natureza usando métodos analíticos – isto é, reduzindo os problemas aos seus componentes fundamentais e estudando esses componentes isoladamente. No séc. XXI, a Ciência estará finalmente em condições de encaixar todas as peças do conhecimento de maneira a obter uma compreensão plena do Mundo que nos rodeia.
Uma parte fundamental desse encaixe será feita pela Geologia: as Ciências da Terra são áreas do conhecimento especialmente vocacionadas para a síntese e estarão em posição privilegiada para liderar o progresso científico durante o próximo século.
Comecemos, então, por arranjar uma definição abrangente para GEOLOGIA:
Estudo da Terra como um todo, nomeadamente a sua origem, estrutura, composição, história (incluindo o desenvolvimento da Vida), e muito especialmente os processos que originaram (e originam) o seu estado actual.

A palavra geologia foi criada em 1778 pelo suíço J.A. deLuc. À medida que o seu uso se foi tornando mais comum, passou a abranger cada vez mais temas das Ciências da Terra: primeiro a Mineralogia, a Cristalografia, a Estratigrafia e a Petrologia, depois a Paleontologia, a Geomorfologia, a Cartografia e a génese dos JazigosMinerais, finalmente a Geologia Estrutural, a Geoquímica, a Geofísica, a Sedimentologia, a génese dos Carvões e do Petróleo, a Petrologia Orgânica, etc. etc.

Alguns – e só alguns – destes assuntos são temas da disciplina de Geologia do 12ºAno.

E, para sossego das massas estudantis, serão tratados, frequentemente, de forma apenas sumária... 

É, no entanto, fundamental ao estudante de introdução à Geologia a capacidade de estabelecer perspectivas e pontos de ancoragem individuais para a aprendizagem da disciplina, e, sobretudo, disponibilidade intelectual para a construção de uma visão geológica do mundo.

Como estratégia pedagógica, há que introduzir a Geologia através de referências históricas, já que o conhecimento da História de uma Ciência abre as portas à percepção da sua realidade actual.

Assim, é consensualmente aceite que a Geologia “moderna” teve o seu impulso fundador com o advento da Revolução Industrial e o aumento brutal da procura de recursos minerais (carvão, ferro, cobre, chumbo, etc.)

Beneficiando dos trabalhos pioneiros e seminais de Hutton e Lyell(1), encontrando na Grã-Bretanha do séc. XIX um terreno propício ao fomento do trabalho científico, a Geologia liberta-se de conceitos redutores como a cronologia bíblica, os dogmas da Igreja ou o Neptunismo(2).

James Hutton (1726-1797), geólogo escocês precursor na compreensão dos processos cíclicos que regem a dinâmica do nosso planeta – “...we find no vestige of a beginning, no prospect of an end...” – propôs uma origem plutónica(3) para as grandes massas rochosas graníticas e atribuiu ao calor interno do planeta os fenómenos de levantamento das cordilheiras montanhosas, os quais se viriam a repetir, inexoravelmente, desde o início dos tempos: a máquina do mundo.

Charles Lyell (1797-1875), também escocês, publicou o primeiro verdadeiro tratado de Geologia, Principles of Geology, onde explanou o seu Princípio das Causas Actuais e definiu o conceito de Uniformitarismo: um complexo conjunto de ideias centradas na noção de que causas actuais, correntes e observáveis, actuando a intensidade reduzida e ao longo de grandes intervalos de tempo produziriam todos os efeitos, acontecimentos e modificações da História da Terra, através de incrementos pequenos e graduais detectáveis nos fenómenos naturais, ao longo da imensidão do tempo geológico.

Em termos práticos, a primeira contribuição do uniformitarismo foi a explicação dos mecanismos de erosão fluvial, em contraponto à teoria então dominante de que os leitos dos rios não teriam sofrido modificações desde o Dilúvio.

Mais do que a máquina do mundo de Hutton – funcionando em ciclos constantes de erosão das rochas continentais, deposição de espessas sequências de sedimentos nos fundos oceânicos, aquecimento e fusão desses sedimentos pelo calor subterrâneo, arrefecimento e formação de rochas que se dilatavam, elevavam e fracturavam a crusta, criando novos continentes por sua vez erodidos, etc, etc. – Lyell contrariava o status quo científico de então, que era basicamente Catastrofista e interpretava o mundo que nos rodeia como tendo resultado da ocorrência de catástrofes (inundações, sismos, avalanchas, erupções vulcânicas, maremotos), que dariam forma à paisagem e seriam responsáveis pelo desaparecimento de espécies animais e vegetais.

Na época, segundo Hutton, o mar e a terra poderiam “trocar de lugar”, que o mundo permaneceria globalmente o mesmo, pois “ Deus fez outrora um começo e ordenará sem dúvida um fim, mas essas são questões que escapam ao alcance da Ciência. Enquanto geólogos, apenas podemos inferir os ciclos da máquina do mundo.”

A natureza de Deus, o criador, sempre foi entendida como profundamente catastrofista... e assim o uniformitarismo foi questionado desde o seu início por cientistas influentes como Louis Agassiz(4) ou Georges Cuvier(5) que explicavam muitas das estruturas geológicas evidentes na superfície terrestre através de acontecimentos bruscos, radicais e cataclísmicos, espaçados entre si por muitas centenas ou milhares de anos.

Nesses tempos de polémica, William Whewell, filósofo da Ciência inglês, escreveu em 1832:

“Tenham sido as mudanças geológicas, a longo termo, uniformes na sua intensidade, ou tenham consistido em épocas de acção catastrófica e paroxística espaçadas por períodos de tranquilidade, a verdade é que estas duas opiniões dividirão o mundo geológico em duas seitas, que poderão ser designadas por Uniformitaristas e Catastrofistas.”

Este debate uniformitarismo/catastrofismo resolveu-se a favor do uniformitarismo à medida que fenómenos como a meteorização, a alteração química das rochas, a erosão, a dinâmica das bacias de sedimentação ou a diferenciação magmática foram sendo melhor ou quase completamente compreendidos.

No entanto outros acontecimentos geológicos, como as scablands(6) do Dakota, nos Estados Unidos, as Deccan Traps(7) na Índia, algumas extinções em massa ou certas oscilações no nível médio das águas dos oceanos, por exemplo, nunca puderam ser facilmente explicadas através duma doutrina uniformitarista.

Nos anos 50, a teoria da Deriva Continental e a Tectónica de Placas provocaram uma revolução paradigmática no cerne da Geologia como Ciência.

Antes da tectónica de placas não existia um modelo unificador (dir-se-ia, uniformizador...) para todos os fenómenos geológicos e por isso o novo paradigma(8) serviu como o argumento final e irrefutável a favor da visão uniformitarista: gigantescas placas litosféricas deslizando sobre uma camada plástica do manto terrestre, lenta e gradualmente afastando-se ou aproximando-se umas das outras, crescendo ou destruindo-se a uma velocidade média semelhante à do crescimento das nossas unhas... certamente que seria difícil encontrar processos mais graduais e uniformes que estes! Além disso, à luz da deriva continental, passou a ser possível interpretar tudo: da formação de montanhas à origem dos diamantes, das idades dos oceanos à evolução dos mamíferos, das ilhas do Havai ao granito do Porto. Conforme escreveu o paleontólogo e biólogo da Evolução Stephen Jay Gould em 1993, “... antes da Tectónica de Placas não havia em parte alguma da Geologia um deus discernível: apenas pormenores.”

Com a Tectónica de Placas, a Geologia encontrou um conjunto sólido de conceitos que resolveram muitas das questões levantadas nos últimos 300 anos da História da Humanidade e abriram infinitas perspectivas de investigação científica na área das Ciências da Terra e da Vida. 

E no entanto, a última dezena e meia de anos trouxe a público trabalhos de pesquisa que apontam para uma explicação catastrófica de eventos importantes na História da Terra: as extinções em massa do Devónico(9), do Pérmico(10) e do Cretácico(11), o fim da última glaciação, os mantos de lava siberianos, os ritmos climatológicos, só para citar alguns, têm levado parte da comunidade científica a considerar a Geodinâmica, numa perspectiva integrada dos conhecimentos, como uma sucessão normalmente cíclica de fenómenos graduais e uniformes ao longo da História geológica, mas onde pontuam momentos determinantes de índole catastrófica.

Em resumo, é a síntese das interpretações uniformitaristas e catastrofistas sobre a geodinâmica que dá a resposta adequada e eficaz a todos os desafios levantados pelas Geociências.

Aliás, nunca como no final deste século XX a Geologia constituiu um campo tão claro e convidativo para uma aprendizagem construtiva, fascinante e recompensadora.

(Espinho, 2000)

 

NOTAS

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(1) Propositadamente, já que esta disciplina se designa GEOLOGIA e não HISTÓRIA DA GEOLOGIA, optou-se por não fazer referência às primeiras tentativas de interpretação de factos geológicos, das quais há registo desde a Antiguidade. No entanto, será conveniente citar os nomes de Avicena, filósofo islâmico (980-1036) que invocou o papel dos sismos na génese das montanhas, Leonardo da Vinci (1452-1519) que efectuou estudos sobre o vale do rio Pó e teve a intuição de que o tempo necessário para a deposição dos aluviões excederia largamente a cronologia bíblica para a idade da Terra e, especialmente, Nicolau Steno (ou Niels Stensen, 1638-1686), que embora seja mais conhecido como um dos fundadores da Cristalografia, distinguiu ambientes de sedimentação marinhos e fluviais e enunciou o Princípio da Sobreposiçãoque é a base teórica da Estratigrafia.
 
(2) NEPTUNISMO (de Neptuno, Deus dos mares) – Teoria dominante no Séc. XVIII, para a origem das rochas. Sucintamente, defendia que todos os tipos litológicos (incluindo o granito e o basalto) teriam tido a sua génese no fundo dos mares, por sedimentação.
 
(3) PLUTÓNICA – Diz-se de uma rocha com origem em zonas profundas da crusta terrestre. Uma rocha magmática plutónica forma-se no interior da crusta por arrefecimento lento de uma massa magmática ascendente. O processo de consolidação do magma que origina a rocha designa-se por diferenciação magmática. Exemplos de rochas magmáticas plutónicas: GRANITO, GABRO, DIORITO, GRANODIORITO, SIENITO. 
(4) Agassiz, Louis (1807-1873) – Zoólogo e paleontólogo suíço, viveu nos Estados Unidos durante grande parte da sua vida. Recebeu enorme reconhecimento pelo seu trabalho fundador da classificação dos peixes. Actualmente é lembrado principalmente por ter avançado a teoria das glaciações, segundo a qual por várias vezes ao longo da sua história, grande parte dos continentes estiveram cobertos por espessas camadas de gelo.

(5) Cuvier, Georges (1769-1832) – Cientista francês vulgarmente referido como o fundador da Paleontologia dos Vertebrados. O seu trabalho baseou-se num processo de correlações a partir de fragmentos de ossos fósseis, o qual permitiu estabelecer que os fósseis de animais representavam indivíduos pertencentes a espécies já extintas mas relacionadas com as espécies actuais. Sugeriu que os fósseis poderiam servir para estabelecer a idade dos estratos rochosos que os contêm. Foi um acérrimo defensor do Catastrofismo como causa da extinção das espécies.

(6) Scablands -Graaandes canais de condução de torrentes glaciárias escavados no substrato rochoso, típicos do NW dos Estados Unidos, com orientação paralela e subparalela uns aos outros. De génese ainda envolta em polémica, supõe-se terem sido originados por inundações catastróficas provocadas por um brusco degelo glaciar num espaço de tempo extremamente curto, mesmo à escala humana.

(7) Deccan Traps – Grandes mantos basálticos que cobrem extensa área do planalto do Decão, na Índia. Presume-se terem resultado de um único episódio vulcânico de enormes proporções, datado do final do Cretácico (ver abaixo).

(8) Paradigma (s.m.) – Algo que serve como um exemplo ou modelo.

(9) Devónico – Período da História da Terra, de idade compreendida entre –395 e –345 milhões de anos. Durante o Devónico os peixes evoluíram consideravelmente, surgiram os primeiros insectos e as primeiras plantas de grande porte, os fetos arbóreos, colonizaram áreas continentais.

10) Pérmico – Período da História da Terra, de idade compreendida entre –280 e –225 milhões de anos. O Pérmico foi o Período final da Era Paleozóica e caracterizou-se pela a maior de todas as extinções em massa de que há evidências no registo fóssil.

(11) Cretácico – Período da História da Terra, de idade compreendida entre -136 e –65 milhões de anos. O seu final é marcado pela extinção dos dinossáurios e de moluscos marinhos como as Amonites. Corresponde ao limite superior da Era Mesozóica

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

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GOULD, S.J. (1993), Um Ouriço na Tempestade, Gradiva, Lisboa.
GOULD, S.J. (1980), O Polegar do Panda, Gradiva, Lisboa
GOULD, S.J. et al. (1994), The Book of Life,. W.W. Norton & Co. New York.
McPHEE, J. (1999), Annals of the Former World, Farrar, Strauss & Giroux, New York.
WHITTEN, D. e BROOKS, J. (1978) The Penguin Dictionary of Geology, Penguin Books, London.

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