JORNADAS DE JULHO

Um recuo necessário para assegurar a conquista do poder proletário

Artigo extraído do Jornal Luta Operária, nº 151, 1ª Quinzena de Julho/2007

Após três meses da queda do czarismo, crescia cada vez mais a insatisfação dos operários e soldados que se perguntavam o que havia mudado com Revolução de Fevereiro. Questionavam porque o país continuava com a guerra imperialista, porque os salários não aumentavam, reclamavam a falta de pão e a terra para os camponeses. A política do Governo Provisório, que recebeu o poder das mãos dos conciliadores depois do triunfo da Revolução de Fevereiro, levava a economia ao desastre. A burguesia alçada ao poder era uma classe incapaz de resolver os problemas fundamentais da sociedade e fazê-la avançar. Nesse contexto, os acontecimentos que constituem as “Jornadas de Julho” são a primeira tentativa da classe operária para tomar todo o poder em suas próprias mãos.

Em princípios de julho de 1917, centenas de milhares de operários e soldados de Petrogrado exigiram que o Comitê Executivo do Soviete assumisse todo o poder. Diante da decomposição social, com a elevação constante dos preços e aumento do custo de vida, os empresários capitalistas seguiam promovendo o boicote da economia através do fechamento de fábricas, o que já havia provocado uma queda de 40% na produção do setor siderúrgico e de 20% no têxtil. A Rússia permanecia na guerra imperialista na qual o Czarismo tomara parte desde o início. A burguesia russa necessitava demonstrar ao imperialismo francês e britânico, que tinha o controle da situação e continuava integrando a Entente. Sem a monarquia, a Entente representava um poderoso aliado a quem a burguesia russa podia recorrer.

Para os capitalistas, a guerra era um dos melhores instrumentos para debilitar o processo revolucionário. Sob o argumento de que era necessário ganhá-la para consolidar a revolução, todas as medidas progressivas, como o aumento dos salários, a repartição das terras entre os camponeses pobres, a convocação de uma Assembléia Constituinte etc., eram postergadas em nome de uma suposta vitória final. Os regimentos de soldados revolucionários eram separados do movimento operário nas cidades e enviados à frente de batalha. Como uma manobra para ocultar o sentimento patriótico às frustrações acumuladas pelas derrotas na guerra, o Governo Provisório e o Comitê Executivo dos sovietes, com o socialista-revolucionário Alexander Kerensky à cabeça, decidem realizar uma ofensiva militar na frente da Finlândia nos primeiros dias de Julho. Porém, as massas não poderiam ganhar nada combatendo do lado do imperialismo francês e britânico. Tinham, na verdade, muito a perder com a continuidade da carnificina imperialista. A guerra, para a qual foram mobilizados cerca de 15 milhões de homens, já havia provocado a morte de milhares de soldados ao mesmo tempo em que consumia bilhões de rublos. As comunicações e os transportes, fundamentais para o abastecimento, estavam semiparalisados, metade das locomotivas necessitavam ser recuperadas e o combustível estava cada vez mais escasso. A fome começa a ameaçar a população das cidades, em Petrogrado só havia reservas de farinha para 10 ou 15 dias.

Em Junho, como uma tentativa de amenizar o descontentamento das massas, foi constituído o governo de coalizão, com a inclusão de seis ministros socialistas no Governo Provisório. Os colaboradores, ao mesmo tempo em que entregam o poder à burguesia, não podem cedê-lo por completo, visto que um governo puramente burguês não seria tolerado pelas massas. O intento teria, porém, poucos resultados. A dualidade de poderes entre o organismo de poder dos operários e soldados, o Soviete, e o governo da burguesia, era cada vez mais difícil de manter-se por muito tempo. A questão central era saber quem de fato dirigia o país. Só o triunfo da revolução ou da contra-revolução poderia decidir quem seria o vencedor dessa batalha.

Em Petrogrado, ponta de lança da revolução, o estado de ânimo das massas subia de  temperatura. Nas fábricas e nos regimentos se organizam motins que expressam o enorme descontentamento e impeliam as massas para a ação. Operários, soldados e camponeses tentavam resolver seus problemas por meio de lutas isoladas, suplicando sem êxito que o soviete cumprisse o papel que deveria exercer e não o faziam pela política de conciliação de classes que os mencheviques e socialistas revolucionários executavam desde a sua direção.

A CONTRA-REVOLUÇÃO SE ORGANIZA

Paralelamente, a contra-revolução se organiza, insuflada pelo partido Kadete. A burguesia tem consciência de que um conflito armado seria inevitável e se prepara, principalmente no terreno militar, arregimentando as organizações mais reacionárias como a Associação dos Oficiais e dos Cossacos. Os latifundiários, recuperados do pânico que lhes impôs a Revolução de Fevereiro, realizaram em Moscou, em 1º de Julho, o congresso dos proprietários de terras, onde a maioria esmagadora era composta de membros da nobreza. A classe operária, principal artífice da Revolução de Fevereiro não havia obtido nada. Já a burguesia, que chegara ao poder por meio da ação revolucionária das massas e sustentava-se nele devido à política de conciliação da direção do Soviete, considerava que a revolução havia cumprido seu objetivo e se aliava à reação.

Os operários se perguntavam por que não se fazia nada, se a massiva manifestação de 18 de junho, sob as consignas de “todo o poder aos sovietes” e “abaixo os dez ministros capitalistas”, haviam demonstrado que o Governo Provisório burguês não contava com seu apoio. Nesse contexto, os anarquistas começaram a ganhar influência, chegando a contatar com os setores mais impacientes que queriam passar imediatamente à ação. A tensão continuou aumentando à medida que se aproximava a data fixada (4 de Julho) para que os regimentos da guarnição de Petrogrado fossem enviados à frente de combate da ofensiva russa na guerra imperialista. Em 3 de julho alguns milhares de soldados armados irromperam numa reunião do Comitê de Companhia de Petrogrado, elegem um presidente próprio e exigiram que se discutisse imediatamente a questão da insurreição. Rapidamente foram eleitos delegados para percorrer as fábricas e regimentos em busca de apoio. Os operários decidem em várias assembléias de fábricas apoiar os soldados. A manifestação foi crescendo na medida em que nela se incorporavam novos regimentos e os operários fabris.

Uma parte dos regimentos enviou uma delegação ao Comitê Central Executivo dos Bolcheviques com as seguintes reivindicações: separação dos dez ministros burgueses, todo o poder ao soviete, suspensão da ofensiva na guerra, confisco das tipografias e dos jornais burgueses, nacionalização da terra e controle da produção. À tarde, a atividade industrial na cidade estava completamente paralisada e as massas de operários e soldados armados avançaram numa multitudinária manifestação em direção à sede do Soviete. Iniciavam-se as Jornadas de Julho.

AS JORNADAS DE JULHO E O PARTIDO BOLCHEVIQUE

Embora a influência dos bolcheviques tivesse crescido consideravelmente entre abril e junho, chegando a controlar dois terços dos delegados da seção operária do Soviete, o partido considerava  precipitada a ofensiva naquele momento. Em 21 de junho Lenin já afirmara no Pravda: “... nós reconhecemos a amargura, a excitação dos operários de Petrogrado. Porém, lhes dizemos: companheiros, neste momento a ação seria nociva”. Entretanto, as massas rompiam rapidamente com todas as ilusões em relação ao Governo Provisório burguês e, impaciente, partiam para a ação.

Apesar de se colocarem contra o início das manifestações, por as considerarem prematuras, foi a direção política que o Partido Bolchevique imprimiu ao movimento de Julho, o que permitiu a posterior vitória da insurreição de Outubro. Os operários e soldados de Petrogrado não tinham em conta que para a vitória da insurreição era necessário o apoio das províncias e das tropas da frente de combate na guerra imperialista. As províncias, que haviam recebido a revolução como um fato consumado da capital, necessitavam de mais tempo para extrair as mesmas lições dos operários de Petrogrado. O fracasso na ofensiva militar era uma experiência pela qual o movimento tinha que passar e parecia já inevitável. Constantemente chegavam notícias de batalhões dissolvidos por insubordinação na frente, os soldados, fundamentalmente camponeses, mas também operários, estavam cansados de morrer numa guerra que não tinha nada a ver com seus interesses. Os bolcheviques há muito estavam convencidos não só da capacidade a classe operária tomar o poder e de utilizá-lo para construir uma nova sociedade, mas compreendiam que era necessário mais tempo e ter uma visão de conjunto do restante do país. Falavam honestamente às massas. Além dos artigos no Pravda, agitadores bolcheviques percorriam fábricas e regimentos fazendo um chamado à calma e a esperar o melhor momento para garantir o êxito da insurreição. Foram recebidos com gritos de protesto e desaprovação por parte dos operários e soldados, que se perguntavam se não teriam se tornado iguais aos conciliadores mencheviques e socialistas revolucionários. Porém, quando chegou o momento decisivo, quando as massas se puseram em marcha, não fugiram de sua responsabilidade diante delas. “Nós não incitamos à ação; porém as massas populares se lançam às ruas por sua iniciativa própria... E posto que as massas têm saído, nosso lugar é junto delas... Nossa missão consiste agora em dar ao movimento um caráter organizado”, explicava Kamenev.

Os bolcheviques, enquanto vanguarda consciente do proletariado, não podiam deixar o movimento nas mãos de aventureiros que o levariam fatalmente a uma profunda derrota. Os mencheviques, para justificar a repressão ao movimento, tiraram suas próprias conclusões. Dan, um de seus principais dirigentes, afirmava que “... nas ruas está o povo revolucionário, mas este povo faz uma obra contra-revolucionária”. Conseqüente com esta caracterização, o Comitê Executivo do Soviete decretou a ilegalidade das manifestações previstas para 4 de Julho e iniciou uma busca desesperada por tropas leais ao governo para esmagar o movimento, tarefa que não era fácil, visto que a maioria dos regimentos da guarnição de Petrogrado havia aderido à insurreição ou mantinham uma posição neutra, aguardando um desfecho.

Em uma reunião que se estendeu até altas horas da madrugada, depois dos acontecimentos de 3 de julho, os bolcheviques decidiram colocarem-se a frente das manifestações do dia seguinte, apesar da ilegalidade decretada pelo Comitê Executivo. Não eram os únicos que estavam ativos àquelas horas. Revelando o clima de ascenso entre as massas, os operários da fábrica Putilov com suas mulheres e filhos, numa manifestação de 30 mil  pessoas, chegaram as três horas da madrugada ao palácio da Táurida, sede do Soviete de Petrogrado. Os bolcheviques elaboram uma resolução chamando os operários e soldados a expressar sua vontade junto ao Comitê Executivo do Soviete por meio de uma manifestação pacífica e organizada. Portanto, para o Partido Bolchevique, naquele momento o objetivo não era a insurreição para a tomada do poder.

Em 4 de julho, cerca de meio milhão de pessoas manifestaram-se nas ruas de Petrogrado. A manifestação tem um caráter de classe marcadamente proletário e é mais compacta que as manifestações de 18 de junho, nas quais haviam participado estudantes, funcionários, médicos, advogados e professores. Os manifestantes estavam armados e sob a consigna de “todo o poder aos Sovietes”, se dirigiram ao palácio da Táurida para exigir que o Comitê Executivo assumisse todo o poder. Assim, antes de mudar a composição dos sovietes, substituindo a direção conciliadora pela direção revolucionária dos bolcheviques, os operários e soldados tentaram submeter à sua vontade os dirigentes mencheviques e socialistas revolucionários por meio da ação direta. Porém, estes não só se negaram a assumir o poder que as massas se dispunham a colocar em suas mãos, como também se esforçavam para trazer o mais rápido possível da frente, tropas leais para sufocar violentamente o levante de massas, que qualificavam de contra-revolucionário.

Para justificar a intervenção armada de tropas convocadas da frente para conter o movimento em Petrogrado, a reação utilizou provocadores para disparar contra a manifestação, esperando desencadear um conflito armado. A burguesia e os conciliadores da direção dos sovietes necessitavam de uma desculpa para afogar em sangue as aspirações revolucionárias das massas. Mas, pacientemente, os oradores bolcheviques conseguiram conduzir uma manifestação pacífica. Às 5 horas da madrugada do dia 5 de julho, sob orientação dos bolcheviques, o movimento se dissolvia, com a maioria dos soldados e operários retornando aos seus quartéis e bairros operários. Dessa forma, quando as forças de repressão do governo chegaram da frente de combate, em 5 de julho, encontraram apenas uns poucos operários e soldados que ainda não haviam abandonado o palácio de Táurida. As jornadas de Julho foram assim concluídas com um saldo de seis mortos e 20 feridos.

As preocupações dos bolcheviques relativas à situação nas províncias se viram confirmadas na prática. A extensão do movimento ao resto do país foi bastante limitada. Embora tenham ocorrido manifestações em cidades como Moscou, Riga, Ivanovo-Vosnesensk, Yekaterinburg, rapidamente a situação voltou à normalidade com o fim do movimento em Petrogrado. As guarnições do Exército fora da cidade não responderam ao levante, salvo em alguns casos isolados, deixando o caminho livre para as forças da reação. Após o levante, mesmo os batalhões que se mantiveram neutros se colocaram do lado do Comitê Executivo do Soviete.

OS BOLCHEVIQUES SÃO ALVO DA REPRESSÃO

Embora o objetivo inicial da contra-revolução tenha sido abortado pela intervenção política do Partido Bolchevique, o fracasso do levante foi utilizado para desencadear uma violenta repressão contra o partido de Lenin, a única organização com uma política independente da burguesia. Em 6 de  julho ocorreu uma derrota catastrófica na guerra, com as tropas alemãs rompendo a frente russa e avançando vários quilômetros. Lenin e os bolcheviques foram acusados de colaboradores do inimigo alemão. As consignas bolcheviques contra a guerra imperialista, pela solidariedade e a unidade internacional da classe operária em sua luta sem quartel contra a burguesia, começando pelos capitalistas de seu próprio país, foram distorcidas pela imprensa burguesa para acusar Lenin de ser um espião pago com ouro alemão. Aos soldados na frente da guerra afirmavam que a influência dos bolcheviques em Petrogrado fazia com que as guarnições se recusassem a renovar as tropas em combate e os operários se negassem a produzir para abastecê-los. Para inflamar o sentimento antibolchevique, provocadores armados disparavam contra os soldados chegados da frente.

Os mencheviques e socialistas revolucionários, embora não podendo fazer publicamente a mesma acusação de espionagem, afirmavam que a participação no levante de 3 e 4 de julho revelava o papel contra-revolucionário dos bolcheviques dentro do movimento operário. Com esses argumentos os conciliadores estabeleciam uma frente com a burguesia e os reacionários numa caçada selvagem aos revolucionários.

O partido de Lenin pagou um preço elevado por ser conseqüente com suas idéias e princípios. A sede do Partido Bolchevique no palácio Kchesinskaya foi assaltada, sua imprensa destruída, os fios telefônicos cortados, os redatores agredidos e presos. Lenin, Zinóviev, Kolontay, Trotsky, Lunacharsky e outros dirigentes foram acusados de traição e perseguidos para serem presos e julgados. Lenin teve passar para a clandestinidade e Trotsky foi encarcerado. Os operários que protestavam contra as calúnias lançadas aos bolcheviques eram reprimidos e detidos. A contra-revolução se sentia forte e preparava um golpe definitivo para esmagar a classe operária e suas organizações. Mas a confiança no programa revolucionário e na capacidade de resistência da classe operária, a ligação com os comitês operários e com os regimentos de soldados revolucionários, permitiram ao partido superar esta situação e colocar-se novamente a cabeça das massas para derrotar a ofensiva reacionária de Kornilov em princípios de setembro, dando início a um novo ascenso revolucionário.

Por esta razão Trotsky, em 23 de setembro, caracterizou corretamente que “...O golpe aplicado em julho às massas e ao partido foi muito considerável. Porém não foi um golpe decisivo. As vítimas se contaram por dezenas e não por dezenas de milhares. A classe operária não saiu decapitada e exaurida dessa prova, pois conservou completamente seus quadros de combate”.

AS LIÇÕES DE JULHO

Analisando as jornadas de julho, Trotsky, que seria eleito presidente do Soviete de Petrogrado em 23 de setembro, afirmou: “Com as Jornadas de Julho, assinala-se um importante momento na via da revolução e do desenvolvimento das divergências no interior do Partido. Nestas jornadas a pressão espontânea das massas petersburguesas desempenhou um papel decisivo. Não há dúvida, porém, de que Lenin perguntava então, lá para consigo, se não seria já a altura, se o estado de espírito das massas não ultrapassara a superestrutura sovietista e não nos arriscávamos, hipnotizados pela legalidade sovietista, a ficar em atraso com relação às massas, destacando-nos delas. É muito provável que, durante as Jornadas de Julho, certas operações puramente militares tivessem tido lugar por iniciativa de camaradas sinceramente persuadidos de que não estavam em desacordo com Lenin, na forma de apreciar a situação. Mais tarde, Lenin dizia: ‘Em julho, fizemos asneiras que fartam’. Na realidade, também dessa vez a questão se reduziu a um reconhecimento, porém de mais vasta envergadura e numa etapa mais avançada do movimento. Tivemos que bater em retirada. Preparando-se para a insurreição e para a tomada do poder, Lenin e o Partido não viram na intervenção de Julho mais do que um episódio em que pagamos a peso de ouro o reconhecimento profundo efetuado entre as forças inimigas, mas que não podia fazer desviar a linha geral da nossa ação. Pelo contrário, os camaradas hostis à política da tomada do poder veriam no episódio de Julho uma aventura prejudicial. Os elementos da direita reforçaram a sua mobilização; a sua crítica tornou-se mais categórica, mudando, por conseguinte, o tom da resposta. Lenin escrevia: ‘Todas estas lamentações e reflexões tendentes a provar que não era necessário participar, provêm de renegados, se emanam dos bolcheviques, ou são manifestações de horror e confusão, habituais nos pequenos burgueses’” (Leon Trotsky, Lições de Outubro, 1924).

A direção política dos bolcheviques nas Jornadas de Julho havia preservado a classe operária de um desastre, resguardando suas forças para o próximo e decisivo combate que se daria em outubro de 1917, quando Lenin reapareceu publicamente e juntamente com Trotsky, dirigiu milhões de operários na vitória da revolução bolchevique.


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