90 ANOS DA REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO

Apenas o anúncio da tomada do poder pelo proletariado

Em março completa-se 90 anos do início da Revolução Russa, a mais grandiosa de todas as revoluções das classes oprimidas da história da humanidade até hoje.

No breve tempo de apenas cinco dias, de 23 a 27 de fevereiro de 1917, no antigo calendário russo (8 a 12 de março no calendário ocidental), a insurreição das massas operárias e dos soldados de São Petersburgo (na época a capital da Rússia) derrubou o Czar Nicolau Romanov, pondo fim ao putrefato Estado monárquico czarista erguido sobre a exploração e o sangue de milhões de trabalhadores e povos oprimidos de todo o império russo. Agitadas por acontecimentos excepcionais as massas exploradas foram arrancadas da vida rotineira e lançadas decididamente na luta direta em defesa de suas reivindicações, fazendo ruir o apodrecido regime czarista que havia se mantido aparentemente inabalável durante três séculos.

Os fatores históricos e sociais que fizeram possível a Revolução de Fevereiro de 1917, prólogo da revolução de Outubro dirigida pelo Partido Bolchevique oito anos meses mais tarde, têm suas raízes fincadas nas profundas contradições da Rússia czarista, um típico país camponês, que se incorporou à cadeia da economia capitalista mundial somente no final do século XIX, quando os países capitalistas mais desenvolvidos da Europa e da América do Norte já se encontravam na fase imperialista.

O desenvolvimento capitalista da Rússia foi favorecido por investimentos de capitais originários da França, Inglaterra e Alemanha, que afluíram massivamente ao império dos czares entre 1880 e 1900, possibilitando uma rápida transformação na economia e na sociedade russa. Entretanto, o vigoroso desenvolvimento industrial, concentrando grandes fábricas nos principais centros urbanos, se fez de tal forma que as mais avançadas estruturas e técnicas do capitalismo coexistiam e completavam-se com o atraso econômico no campo, onde ainda imperavam relações semi-feudais (a servidão feudal só foi abolida em 1861) e a concentração de terras nas mãos de um punhado de latifundiários. Dessa forma, manifestavam-se na Rússia todas as contradições características dos países capitalistas de desenvolvimento desigual e combinado.

No início do século XX a Rússia possuía a maior população da Europa, 174 milhões de habitantes, dos quais cerca de 80% ainda viviam no campo. A maior parte das terras estava em mãos de uma minoria de 30.000 latifundiários, enquanto milhões de camponeses pobres viviam miseravelmente em pequenas propriedades e outros tantos não possuíam nenhuma terra, vendo-se obrigados a trabalhar como operários agrícolas nas terras dos latifundiários. Esta situação condenava os camponeses à pobreza, à miséria e à fome, o que conduzia à revoltas periódicas que eram violentamente reprimidas pela autocracia czarista.

A formação da classe operária russa teve como base essa população de origem camponesa que, com a dissolução das relações feudais no campo e o desenvolvimento da grande indústria, lançou uma parcela significativa de seu contingente nos centros urbanos dando origem a um jovem e combativo proletariado de 10 milhões de operários, muito concentrado (as fábricas com mais de 1.000 operários empregavam 41,4% dos operários russos), que havendo rompido bruscamente com suas velhas relações sociais, estava aberto para as idéias revolucionárias mais avançadas.

A opressão que a autocracia czarista exercia sobre uma multidão de povos e nações que constituíam o império russo era outro fator que alimentava as contradições da sociedade. As lutas de libertação nacional de polacos, finlandeses, ucranianos, letões, lituanos, muçulmanos, etc., que sofriam a opressão nacional nas mãos da casta dominante grão-russa, tiveram um papel muito importante no processo revolucionário russo e acertaram golpes mortais contra a monarquia czarista.

Todos esses elementos já haviam minado os alicerces da sociedade russa, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial em 1914, acendendo o estopim para que a revolução fizesse saltar pelos ares todo o corroído edifício do Estado absolutista. Mas, se a guerra mundial gerou uma conjuntura extremamente favorável para a derrubada do Czar Nicolau II, dois outros fatores que antecederam a guerra tiveram um papel fundamental na explosão do movimento revolucionário de 1917, a definição política das classes e seus partidos e o acúmulo de experiência do movimento operário entre 1905 e 1907.

A REVOLUÇÃO DE 1905: O “ENSAIO GERAL” DA REVOLUÇÃO PROLETÁRIA

A Revolução de 1905 obrigou as classes sociais e seus partidos a definirem de forma objetivamente clara suas posições na arena da luta de classes.

A existência da autocracia czarista e o atraso econômico sobre o qual esta se erguia, obrigava a burguesia a colocar-se em oposição ao regime visando tomar em suas mãos a direção do Estado e da economia. Com esse objetivo a burguesia russa organizou-se principalmente no partido democrata-constitucionalista, cuja sigla KDT o tornou mais conhecido como partido cadete. Todavia, na etapa histórica do capitalismo imperialista, a burguesia russa, como toda a classe burguesa de qualquer país de desenvolvimento capitalista tardio, já era politicamente incapaz de colocar-se à frente das massas para realizar mesmo as tarefas históricas clássicas das revoluções burguesas como o fim dos privilégios feudais, a extinção do latifúndio com a distribuição das terras entre os camponeses pobres e a abolição do absolutismo.

Dessa forma, frente à mobilização das massas, esta classe preferiu já em 1905 aliar-se à nobreza decadente e ao regime czarista. Nessa primeira revolução, a burguesia, que inicialmente apoiou a mobilização das massas contra a autocracia czarista, pretendendo utilizá-las para forçar o regime czarista a promover mudanças que permitissem sua participação como força social majoritária na direção do Estado, logo se jogou nos braços da reação quando as reivindicações dos operários, de armas nas mãos, apontaram diretamente para seus próprios interesses (jornada de 8 horas, aumento dos salários e ocupações de fabricas). Assim, já em 1905, no momento decisivo da revolução, a classe dos capitalistas revelava seu papel contra-revolucionário.

Por outro lado, a classe operária russa, antes mesmo da revolução de 1905, já dispunha de sua própria organização social-democrata (como então eram chamados os partidos marxistas), o POSDR, fundado em 1898. As divergências que dividiram os marxistas russos entre bolcheviques e mencheviques começaram no II congresso POSDR, em julho de 1903, em torno da definição do conceito de militante e do tipo de organização de que necessitava o movimento operário para lutar contra o czarismo e pela revolução. Lenin, à frente dos bolcheviques definia como militante do partido “todo aquele que aceita seu programa e apóia o partido tanto materialmente como por meio da participação pessoal em uma de suas organizações”. A estrutura de partido que Lenin propunha era uma organização de combate, formada principalmente por revolucionários profissionais; forjada no centralismo democrático, na hierárquica e na disciplina consciente de seus membros; constituída por quadros preparados por uma longa aprendizagem; que pudesse se apresentar com fisionomia própria diante das tendências pequeno-burguesas; preservar a vanguarda consciente da degeneração política e ideológica e preparar com todos os detalhes da arte revolucionária a vitória da revolução proletária.

Em oposição aos leninistas, Martov, dirigente menchevique, considera membro do partido “todo aquele que aceita seu programa, paga suas cotizações e coopera regularmente no trabalho do partido, sob a direção de uma de suas organizações”. O tipo de organização proposto pelos mencheviques baseava-se no princípio da “ampla democracia”, refletindo a influência das concepções pequeno-burguesas no movimento operário russo.

Essas divergências entre as duas frações do POSDR aprofundaram-se a partir de 1905 em torno da definição do caráter da revolução russa e do papel das classes sociais no processo revolucionário. Enquanto os mencheviques defendiam que caberia à burguesia a direção política da sociedade após a derrota do czarismo, os bolcheviques sustentavam que o novo governo revolucionário só podia ser produto de uma aliança do proletariado com o campesinato. Essas divergências eram irreconciliáveis, mas somente em 1912, quando o movimento se recuperava da onda de reação que se iniciou após a derrota da revolução de 1905, foi que os bolcheviques se constituíram num partido independente, enquanto os mencheviques aprofundaram sua linha política reformista e de colaboração de classes e integrarem o governo burguês que se estabeleceu após a queda do Czar.

A experiência revolucionária de 1905 despertou para vida política até os setores mais atrasados das massas. Mesmo o numeroso campesinato, ainda que pouco propenso a constituir organizações políticas estáveis devido à dispersão imposta pelas suas próprias condições sociais de existência, encontrava um canal de expressão de suas demandas no partido da pequena burguesia urbana, o partido socialista-revolucionário (SR), fundado em 1905.

Dessa forma, quando eclodiu a primeira grande guerra, preparando as condições para a revolução proletária mundial, independente da vontade dos blocos imperialistas que impulsionaram a guerra, a revolução russa já conhecera, nas palavras de Lenin, o seu “ensaio geral” em 1905, quando pela primeira vez na história da luta da classe operária mundial aparece a greve geral revolucionária como ferramenta de luta, paralisando a indústria, os transportes e o telégrafo. Os camponeses, eletrizados pelos acontecimentos, ocuparam as terras dos latifundiários e incendiaram os palácios da nobreza. Pela primeira vez desde a Comuna de Paris, os operários russos improvisaram seus próprios organismos de poder, os Sovietes, que surgiram inicialmente como comitês de luta formados por delegados eleitos em cada fábrica para coordenar a mobilização e que terminaram se unindo por bairros e localidades de todo o país. Os sovietes assumiram as tarefas de direção estatal como o controle operário das fábricas, organização dos transportes, distribuição de alimentos, etc. Dessa forma, os sovietes se revelavam, a exemplo da Comuna de Paris em 1871, como uma forma embrionária de poder proletário para organizar o futuro Estado Operário.

Apesar da derrota da Revolução de 1905, com o esmagamento da insurreição armada dos operários de Moscou, em dezembro daquele ano, o Czar foi obrigado a fazer algumas concessões democráticas limitadas, instituindo uma espécie de Parlamento, a Duma. O fracasso da revolução se deveu fundamentalmente a que não foi possível ao proletariado ganhar de maneira decisiva o apoio do campesinato e o governo czarista pode utilizar toda a força de suas tropas, constituídas basicamente por camponeses, para esmagar a revolução.

Ainda que o czarismo tenha sobrevivido aos acontecimentos revolucionários de 1905, recuperando-se temporariamente, a revolução demonstrou de maneira irrefutável o comportamento das diferentes classes sociais, revelando que a única aliança possível na luta pela derrubada da autocracia czarista era entre proletariado e o campesinato. Lênin e Trotsky tiraram importantes lições de 1905 para definir com maior clareza a estratégia revolucionária dos bolcheviques.

A GUERRA IMPERIALISTA E A REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO

Depois dos anos de reação, refluxo e apatia do movimento (1907-1911), uma onda de greves arrebentou em 1912, que durou até o começo da 1ª Guerra Mundial. Estimulada de certa forma por um breve crescimento econômico iniciado no ano anterior, a classe operária russa recuperava a confiança em suas próprias forças e o movimento grevista ameaçava provocar uma nova crise revolucionária. À frente da maioria das greves se encontrava o partido bolchevique que, naquele momento, era o principal partido operário, agrupando 75% dos operários que se encontravam organizados.

O desencadeamento da guerra mundial quebrou momentaneamente todo esse ascenso do movimento. O império russo se aliou com a França e a Inglaterra contra a Alemanha e o Império Austro-húngaro. A 1ª Guerra Mundial, que começou em agosto de 1914, como conseqüência da disputa entre as principais potências imperialistas por mercados e por uma nova partilha do mundo colonial, promovendo a maior carnificina humana jamais conhecida até então, embotou temporariamente a consciência dos trabalhadores com o nacionalismo e o patriotismo belicista. Esse espírito chauvinista penetrou em todas as camadas da sociedade russa. A classe operária, a princípio, também se viu afetada majoritariamente por essa onda chauvinista e pela mobilização de milhões de camponeses e operários para as tropas da frente de batalha, que desarticularam temporariamente o movimento, isolaram a vanguarda revolucionária e os dirigentes do partido bolchevique das massas durante todo um período. Apesar do isolamento, os bolcheviques se mantiveram firmes na defesa da derrota de ambos os blocos imperialistas em conflito e da transformação da guerra imperialista em guerra civil do proletariado contra as burguesias de seus países, em defesa da revolução proletária mundial como única saída para a humanidade diante da barbárie imperialista.

O desastre econômico provocado pela guerra, com a destruição das forças produtivas, se fez particularmente insuportável sobre os países mais atrasados. A indústria de guerra devorava todos os recursos agravando a situação de miséria das massas trabalhadoras. Aproximadamente 50% de toda a produção e cerca de 75% da produção têxtil foram destinados a suprir as necessidades do exército. Ao final de 1916, as tropas russas já estavam exauridas pela fome. A guerra já custara à Rússia 1 milhão e 700 mil mortos, destruíra 25% da indústria e 9% da agricultura do país. As derrotas na frente de combate, o baixo nível de provisões, a desorganização dos transportes e os abusos dos oficiais acabaram por abater completamente o moral dos soldados russos. As deserções adquiriram proporções massivas. A escassez, a miséria, a fome e o aumento vertiginoso dos preços faziam insuportável a situação dos operários e camponeses em todo o país, minando a febre patriótica que contaminou a sociedade no início da guerra. A responsabilidade por toda essa catástrofe recai sobre o Czar e a casta dirigente do Estado.

Nas trincheiras, a convivência entre de camponeses e operários, muitos dos quais haviam sido levados à frente por participar de greves, ajudou a elevar a consciência dos primeiros e a cimentar a união e a confiança entre as classes oprimidas. O mesmo ocorreu com os soldados dos destacamentos de reserva agrupados nos quartéis das grandes cidades industriais. Assim, o campesinato pobre, base social do exército russo, encontra nos operários um útil aliado em que se apóia para formular suas reivindicações. De sua parte o proletariado podia apoiar-se na força revolucionária de milhões de camponeses pobres para se lançar pelo caminho da revolução.

A crise social passou a se refletir no círculo dirigente da sociedade. As intrigas palacianas se sucediam, culminando no assassinato de Rasputin, o sacerdote charlatão que era conselheiro e “guia espiritual” do czar e da czarina, interferindo diretamente nas decisões de governo e que resumia em sua pessoa toda a podridão e corrupção da autocracia czarista.

Durante o mês de janeiro ocorreram várias greves importantes, principalmente em São Petersburgo, onde os operários, famintos, saquearam padarias em busca de alimentos. No final de fevereiro a situação chegava ao ponto crítico. No dia 23 de fevereiro (8 de março) era o dia internacional da mulher trabalhadora. Esta data marcaria o início da Revolução Russa. Logo nas primeiras horas da manhã as operárias de algumas fábricas têxteis da capital, rompendo com a orientação de suas direções de não sair às ruas para evitar enfrentamentos com a polícia e a tropa, entram em greve e enviam delegações aos operários metalúrgicos para que as sigam. Em poucas horas cerca de 90 mil trabalhadores de São Petersburgo entraram em greve.

No dia seguinte o movimento grevista tomou um novo impulso. Quase a metade dos operários de São Petersburgo já havia aderido à greve. Os trabalhadores iam às fábricas pela manhã, se negam a trabalhar, organizam piquetes e se dirigem em manifestação ao centro da cidade. Desde os bairros operários, a população em geral ia se incorporando ao movimento. O grito inicial de “pão” logo é ultrapassado pelo de “Abaixo a autocracia!” e “abaixo a guerra!”.

No terceiro dia já eram 240.000 operários em greve. As ruas foram bloqueadas e muitos estabelecimentos comerciais fechados. Milhares de pessoas tomaram as ruas, ocorrendo os primeiros choques armados com a polícia. Nesse dia a consigna geral é desarmar a polícia, odiada intensamente pelas massas. À tarde são lançadas as primeiras tropas às ruas para reprimir o movimento, que em São Petersburgo já havia se convertido em greve geral. Os operários assumiram o controle dos bairros de Viborg e Peski.

No dia 26 de fevereiro, um domingo, as manifestações continuaram, com os operários se concentrando a partir dos bairros e dirigindo-se para o centro da cidade. Apesar dos tiros da polícia terem deixado muitos mortos e feridos, neste dia a repressão mais violenta foi das tropas do exército que receberam a ordem de disparar sobre a multidão. Sob a mira dos oficiais os soldados dispararam suas armas. Cerca de 40 operários morreram e inúmeros ficaram feridos. A insurreição entrava em sua fase decisiva.

Os soldados que haviam sido obrigados a abrir fogo contra os operários, sabiam que seriam forçados a fazê-lo novamente no dia seguinte. Apesar das balas, sabiam que os operários não retrocederiam. O contato constante entre operários e soldados nos meses anteriores, nas trincheiras e na cidade, começava a se refletir nas vacilações da tropa na hora de disparar, dando mais confiança e audácia às massas, convencidas de que a autoridade era impotente para esmagar o movimento, que as tropas logo se passariam para o seu lado. Como princípio básico de qualquer revolução, os soldados só se passam com suas as armas para o lado do povo insurreto quando este demonstra que está disposto a ir até o fim e a qualquer preço; quando a atmosfera revolucionária é tal que a certeza da vitória da insurreição é suficientemente forte para vencer o medo dos soldados de sofrer a repressão dos oficiais.

Nas primeiras horas da manhã do dia 27, no bairro de Viborg, verdadeiro centro da insurreição proletária e onde os bolcheviques tinham a sua base mais numerosa, chegam representantes de 40 fábricas, que decidem continuar o movimento. A assembléia se viu interrompida pela notícia de que os batalhões de reserva em São Petersburgo estavam se sublevando um atrás do outro, quando eram lançados nas ruas. Em alguns casos os operários entravam nos quartéis, sublevando os soldados, que se apoderam das armas e prenderam ou fuzilam os oficiais que lhes ameaçam. Unidos, os operários e soldados traçam um plano de ação: apoderar-se das delegacias de polícia, desarmar os gendarmes, libertar os presos políticos e sublevar os soldados que ainda não tinham aderido à insurreição. Pelas ruas de São Petersburgo a bandeira vermelha começou a circular hasteada em veículos militares.

Os escassos focos de resistência pró-governo são varridos pelos fuzis e metralhadoras. As tropas enviadas para reprimir a revolta se vêem cercadas imediatamente por uma multidão de operários, mulheres, adolescentes e soldados sublevados. As tropas se entregaram sem luta e se uniram aos insurretos. As prisões foram invadidas e os presos políticos colocados em liberdade. Nas primeiras horas do dia 28 cai o último bastião do regime czarista, a fortaleza de Pedro e Paulo. Os sublevados controlam a cidade e toda a região de São Petersburgo. Os membros do governo, assim como os oficiais reacionários, são detidos ou fogem. O trem em que o Czar e sua família tentaram fugir foi bloqueado pelos operários ferroviários, que o retiveram até que as novas autoridades revolucionárias decidissem o fazer com ele.

OS LIMITES DA LUTA ESPONTÂNEA DAS MASSAS E A POLÍTICA DE COLABORAÇÃO DE CLASSES DA DIREÇÃO DO SOVIETE RESULTARÃO NA FORMAÇÃO DO GOVERNO PROVISÓRIO BURGUÊS

Mesmo com a vitória da insurreição, as massas não tinham clareza dos seus objetivos políticos. Sabiam apenas que desejavam e lutaram ardentemente para acabar com a guerra, a fome, a injustiça e o fim do regime czarista. Por sua própria iniciativa o proletariado russo, em aliança com o campesinato, havia realizado uma tarefa monumental, destruindo o Estado absolutista. Porém por lhe faltar organização e consciência dos seus objetivos históricos como classe, também espontaneamente entregava o poder nas mãos de seus exploradores, a classe dos capitalistas.

A luta espontânea das massas, por maiores que sejam os atos de coragem e heroísmo destas, reflete apenas as próprias contradições do capitalismo que em seu desenvolvimento cria as condições objetivas materiais para a revolução, incluindo a ação direta e a organização espontânea das massas que podem até constituir sovietes, como já havia demonstrado a experiência revolucionária de 1905 e se repetia em Fevereiro de 1917. Mas só o partido revolucionário, como elemento subjetivo do processo revolucionário, pode assegurar a vitória da insurreição e a tomada do poder político pelo proletariado. E somente uma vanguarda dirigente, constituída por quadros formados num longo processo de luta política e ideológica, pode, no momento decisivo, educar as massas para alcançar esse objetivo.

O governo de latifundiários capitalistas e da burguesia liberal (outubristas e democratas-constitucionalistas), o Governo Provisório burguês de Lvov, Gutchkov e Miliukov, que surgiu da Revolução de Fevereiro, foi, em certa medida, conseqüência das limitações da luta espontânea das massas.

Na tarde de 27 de fevereiro uma multidão de soldados e operários armados ocupou o prédio da Duma, que acabara de ser dissolvida por um decreto do Czar, para exigir uma resposta dos deputados. Sobre a pressão das massas insurretas a Duma, dominada por latifundiários e grandes capitalistas, reuniu-se numa sessão não oficial e elegeu às pressas um “Comitê Provisório da Duma de Estado”. Esse primeiro Governo Provisório tinha como finalidade ganhar tempo à espera de um refluxo na luta espontânea das massas, que lhe permitisse restabelecer a “ordem” em Petrogrado, salvar a dinastia Romanov e restaurar a monarquia czarista. Com esse propósito já armavam um conluio, formulando um convite ao Duque Mikhail Romanov para que este assumisse o trono como novo Czar da Rússia.

Ainda em 27 de fevereiro, à noite, na primeira reunião do Soviete de Petrogrado, foi criado o seu Comitê Executivo, majoritariamente composto por mencheviques e socialistas-revolucionários. O Soviete se declarou órgão dos deputados operários e soldados e era de fato quem detinha o poder político, colocando as tropas sob seu comando e determinando que as ordens do Comitê da Duma só seriam cumpridas se não se chocassem com as do Soviete.

Nos primeiros dias de março se organizaram sovietes em todas as fábricas, bairros, localidades e regiões. Os mencheviques e socialistas-revolucionários elegeram a imensa maioria nos sovietes. Foram beneficiados tanto por disporem naquele momento de uma maior quantidade de quadros intelectuais e agitadores, como pela incapacidade da classe operária distinguir nos primeiros dias da revolução quais eram as diferenças políticas e programáticas entre as organizações operárias. Mas, em essência, a influência dos mencheviques e socialista-revolucionários refletia o peso social da pequena burguesia russa, sobretudo das massas camponesas recém despertadas para a vida política e que se encontravam concentradas aos milhões como soldados do exército.

Contudo, na noite de 1 para 2 (14 para 15) de março, os membros mencheviques e socialistas revolucionários do Comitê Executivo do Soviete concluíram um pacto com o Comitê Provisório da Duma, avalizando a formação do Governo Provisório de latifundiários e burgueses e indicando Alexandre Kerensky para integrar esse governo como Ministro da Justiça, contrariando uma resolução do próprio Comitê Executivo do Soviete de Petrogrado, adotada na tarde do dia 1 de março, que decidira não indicar representantes para compor o governo burguês. Dessa maneira, entregaram voluntariamente o poder à burguesia. Assim, terminou a Revolução de Fevereiro, com a constituição de um governo burguês fortemente apoiado nas organizações de massa, os sovietes, através de suas direções conciliadoras.

A política de conciliação de classes desses partidos frente ao Governo Provisório burguês era produto da teoria etapista da revolução que os mencheviques defenderam dentro do POSDR desde 1905. Partindo da posição comum às duas frações do POSDR (bolcheviques e mencheviques) de que a revolução russa, pelas suas tarefas (superação do atraso econômico, fim do latifúndio, entrega das terras aos camponeses pobres, derrubada do absolutismo), era uma revolução burguesa, os mencheviques defendiam que esta revolução só poderia ser dirigida pela burguesia que conduziria um longo período de desenvolvimento capitalista após o qual, e somente aí, a sociedade estaria preparada para passar ao socialismo. Portanto, de acordo com o etapismo menchevique, que mais tarde seria reeditado pelo stalinismo, caberia ao proletariado respeitar os limites da primeira fase da revolução, que na prática significa submeter-se ao poder político dos seus exploradores.

Contra essa concepção, Lenin defendia, desde a revolução de 1905, o estabelecimento de um governo fruto de uma aliança entre o proletariado e o campesinato. Trotsky, na mesma época, foi ainda mais preciso e sustentou em suas Teses da Revolução Permanente que a Ditadura do Proletariado, com o apoio do campesinato, era o único poder capaz de realizar as tarefas da revolução democrática e abrir o caminho para o socialismo.

Desde o início da Revolução de Fevereiro, Lenin, que há muito já havia adotado as teses de Trotsky, combateu não só os mencheviques, mas os próprios membros da direção do Partido bolchevique em Petrogrado (Kamenev, Stalin, Kalinin, Olminsky, Muranov) que, sob pressão da luta de classes, orientavam o partido para uma política de apoio condicional, de “exigências” ao Governo Provisório. Ainda em seu exílio na Suíça, Lenin afirmava: “Quem diz que os operários devem apoiar o novo governo no interesse da luta contra a reação do czarismo... é um traidor aos operários, um traidor à causa do proletariado, à causa da paz e da liberdade”.

O MITO DA “REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA” E O VERDADEIRO SIGNIFICADO DA REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO

Apesar de terem se confirmadas plenamente pelos acontecimentos que marcaram o período entre a Revolução de Fevereiro e a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917, as lições teóricas de Lenin e Trotsky continuam até hoje sendo negadas por correntes políticas que se apregoam defensoras da luta pelo socialismo, como os morenistas do PSTU e da LIT, que em defesa da teoria etapista da revolução democrática de Nahuel Moreno insistem em apresentar a Revolução de Fevereiro como uma etapa histórica obrigatoriamente necessária no caminho para a revolução proletária. Para o etapismo pseudotrotskista de Moreno e seus discípulos, a defesa da “revolução democrática” se justifica porque o desenvolvimento do regime democrático burguês possibilita ao proletariado maior liberdade de organização para tomar o poder.

Dessa forma, cria-se um verdadeiro mito em torno da Revolução de Fevereiro, do estabelecimento da democracia burguesa como produto exclusivo da ação das massas, que conduziu inevitavelmente à Revolução de Outubro. Nada mais falso. Essa fábula foi desmascarada por Lenin logo no primeiro da série de artigos conhecidos como Cartas de Longe, que escreveu ao CC do partido bolchevique em Petrogrado: “Todo o curso dos acontecimentos da revolução de Fevereiro-Março mostra claramente que as embaixadas inglesa e francesa, com os seus agentes e ‘ligações’, que há muito faziam os mais desesperados esforços para impedir acordos ‘separados’ e uma paz separada entre Nicolau II... e Guilherme II, organizaram diretamente a conspiração, em conjunto com os outubristas e democratas-constitucionalistas, em conjunto com uma parte do generalato e do corpo de oficiais do exército e em especial da guarnição de Petrogrado, para depor Nicolau Romanov”. Analisando de um ponto de vista marxista a correlação das forças sociais na revolução Lenin afirmava: “Se a revolução venceu tão rapidamente e – aparentemente, ao primeiro olhar artificial – de um modo tão radical, é apenas porque, por força de uma situação histórica extremamente original, se fundiram, e fundiram-se com uma notável ‘harmonia’, correntes absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogêneos, tendências políticas e sociais absolutamente opostas. A saber: a conspiração dos imperialistas anglo-franceses que impeliram Miliukov, Gutchkov e Cia a tomarem o poder, no interesse do prosseguimento da guerra imperialista... E, por outro lado, um profundo movimento proletário e popular de massas (de toda a população da cidade e do campo), com caráter revolucionário, pelo pão, pela paz, pela verdadeira liberdade”.

O processo revolucionário russo apresenta uma riqueza de detalhes que exige o máximo de atenção dos revolucionários e lutadores honestos para não se deixarem iludir pelos charlatões pseudo-socialistas. De fato, logo após a Revolução de Fevereiro, se estabeleceu na Rússia uma situação política de máxima legalidade e de ausência de violência contra as massas. Como afirmava Lenin, “a Rússia é agora o país mais livre do mundo entre todos os países beligerantes”. O que garantia essa liberdade, entretanto, não era a existência da “democracia burguesa”, o poder político da burguesia, a república democrática materializada no Governo Provisório. O que garantia essa liberdade era a existência do Soviete de Deputados Operários e Soldados, um outro tipo de poder que se sustentava não na “democracia”, mas na violência organizada das massas contra seus exploradores, na força dos camponeses e operários armados. Portanto, essa máxima liberdade era uma situação imposta à burguesia que naquele momento não tinha forças para usar a violência contra as massas, só podia contar com sua capacidade de mentir e enganá-las.

Essa situação de dualidade de poderes foi descrita por Lenin, como uma “peculiaridade”, cuja causa estava no fato de que a Revolução de Fevereiro deu o poder a burguesia por faltar ao proletariado o “grau necessário de consciência e organização” para tomar todo o poder em suas mãos. De fato, o proletariado só não tomou o poder em fevereiro por ausência do elemento subjetivo da revolução, ou seja, uma direção política revolucionária no calor dos acontecimentos, que assegurasse a independência da classe operária. Basta lembrar que a própria direção bolchevique em Petrogrado, antes da chegada de Lenin, acenava com a política de apoio crítico ao governo provisório burguês. Somente depois da chegada de Lenin à Rússia e da luta que travou no interior do partido para aprovar suas famosas Teses de Abril, foi que o partido bolchevique, que sem dúvida havia estado à frente das mobilizações de massa, passou a estar armado com um programa de independência de classe.

Mas os apologistas da “revolução democrática” costumam argumentar que a dualidade de poderes nascida com a Revolução de Fevereiro foi o fator decisivo que levou à Revolução de Outubro. Outro engano. Uma situação de duplo poder não pode durar por muito tempo. Assim que o governo Kerensky conseguiu organizar forças, desferiu um violento golpe contra o proletariado revolucionário de Petrogrado. A impiedosa repressão às Jornadas de Julho resultou no desarmamento do proletariado e na prisão de vários dirigentes bolcheviques, entre eles Leon Trostky. A democracia burguesa mostrou então sua verdadeira face e abriu o caminho para a tentativa de golpe fascista do general Kornilov, inicialmente estimulado pelo próprio Kerensky para esmagar todo poder de resistência da classe operária.

Uma nova situação de dualidade de poderes só veio a se configurar em setembro, com o rearmamento do proletariado e a derrota do bando de Kornilov. Mas, nesse caso, os operários e soldados colocaram-se conscientemente sob a direção política e militar dos bolcheviques. Esse sim foi o fator decisivo que levou à vitória de Outubro, preparada detalhadamente pelo partido revolucionário do proletariado.

A glória da Revolução de Fevereiro consiste no fato de que ela anunciou que o proletariado estava disposto a dar o melhor de suas energias para abolir o czarismo e acabar com toda a exploração dos capitalistas e latifundiários. Porém, a vida, a luta de classes, ensinou e o proletariado russo, por já ter vivido as experiências de 1905 e de fevereiro de 1917, aprendeu no decorrer de apenas oito meses que sua vitória definitiva dependia da existência de uma vanguarda organizada como partido. Somente a linha política revolucionária de Lenin e dos bolcheviques, foi capaz de dar uma resposta aos anseios das massas e tornar possível a vitória da Revolução de Outubro.


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