DEGRAVAÇÃO DA INTERVENÇÃO DO CAMARADA CRISTÓVÃO CAMPOS Dez anos de fundação da Liga Bolchevique Internacionalista: a vigência da luta programática pela construção do Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT) no Brasil “Para darmos início a IV Conferência Nacional da LBI, eu gostaria de começar lembrando os 400 anos do livro “Dom Quixote de la Mancha”, escrito por Cervantes. Uma passagem do livro é muito interessante, como lição para uma organização revolucionária, um núcleo revolucionário. Trata-se de um diálogo entre Sancho Panza e Dom Quixote. Sancho, cansado, extenuado daquela jornada quimérica, questiona Quixote: “Dom Quixote, para que serve o nosso ideal, a nossa utopia? Porque quanto mais marchamos ela fica mais distante, quanto mais lutamos, mais ela se afasta?” Dom Quixote se vira para ele e responde: “o nosso ideal, a nossa utopia, serve exatamente para que nós continuemos marchando, pois sem ela estaríamos parados”. A marcha é a razão de nossa existência, ou seja, sem um ideal, sem um programa, sem um norte estratégico, mesmo que inalcançável para a nossa geração, mesmo que não tangível, a nossa existência não se justifica, ela se torna vazia, fútil. Este pensamento é muito relevante para uma organização trotskista, porque a IV Internacional, fundada por Trotsky, com um grupo muito pequeno, num subúrbio de Paris, em 1938. Oito a nove delegados, não se sabe bem, se reuniram e fundaram um partido internacional e que, em tese, seria a superação da III Internacional. Só que a III Internacional reunia centenas de milhares ou de milhões de militantes comunistas no mundo todo. E oito militantes, numa casa no subúrbio pretendiam ser a superação da III Internacional, parecia quixotesca, uma tarefa quimérica, uma ousadia incrível. Neste mesmo ano, a III Internacional reunia em um congresso em Moscou, onde na abertura pública havia mais de cem mil pessoas, mais de cinco mil delegados. A IV Internacional reunia oito em um subúrbio! E dizia “a III Internacional está morta para a revolução! Viva a IV Internacional!” É um paralelo que nos serve muito, porque estamos fazendo dez anos, a nossa tarefa não é tão estóica como a da IV Internacional em 38, mas guardadas as proporções, a tarefa de um pequeno grupo que em 1995 fundava a Liga Bolchevique pode ser comparada tanto a Quixote como a Trotsky, pois parecia algo inatingível para um pequeno grupo de cinco companheiros, nada mais do que isto. Na verdade uma regional da Causa Operária em Fortaleza se proclamava como germe, um embrião do núcleo do partido revolucionário. Nós estamos na estrada há dez anos, mas muita gente pode perguntar, o crescimento molecular de vocês, será que justifica tanto sacrifício, afinal não são nem uma centena de militantes. A resposta está exatamente nos acertos políticos e na perspectiva histórica que a nossa organização apontou, porque se mede o sucesso ou insucesso não pelo número de militantes ou pelo número de sindicatos. Pode-se aferir pela vigência histórica das suas posições, porque organizações grandes se formam e se acabam; ou acabam virando verdadeiras organizações contra-revolucionárias, centristas que não apontam uma perspectiva histórica. Mas como Trotsky já dizia, uma organização se afere por sua vigência histórica. Ela pode até deixar de existir, mas vai ressurgir, o que, de fato, ocorreu com a IV Internacional. Era tão frágil do ponto de vista orgânico, dos seus quadros, dos seus militantes que a morte de algum dirigente perseguido pelo stalinismo ameaçou a existência por um longo período, quando ela deixou de existir. A morte do filho de Trotsky, de vários dirigentes da Oposição de Esquerda dentro da URSS, do próprio Trotsky abalou as expectativas dos militantes mais frágeis, incluindo a própria companheira de Trotsky, que passou a não acreditar na perspectiva daquela organização. Mas a História mostrava a vigência programática daquele grupo e a IV Internacional ressurgiu. Nós somos um filamento disto, embora a nossa tarefa esteja muito mais facilitada. As bases programáticas já estão aí, foram fundamentadas historicamente, mostraram a sua vigência. Agora, precisam ser materializadas e, aqui no Brasil em 95, nós partimos deste desafio, desta ousadia. Quer dizer, neste país não existia uma organização que representasse a continuidade do que foi fundado em 1938, ou seja, do Programa de Transição e da IV Internacional. A História começa a nos dar razão, ou seja, apesar de nestes 10 anos a LBI não ter ganhado influência de massas, ainda somos um pequeno grupo. Mas no decorrer de 10 anos fixar posições, polemizar, abstrair as lições da luta de classes dos principais fatos não só nacionais, mas mundiais, mostra a vigência daquilo que foi fundado em 1995. Não foi à toa que em 95, quando debutávamos, a nossa primeira posição política que chamou a atenção nacional foi acerca do massacre de camponeses em Corumbiara. Neste massacre, que foi levado a cabo pelo governador Valdir Raupp, em Rondônia, tinha a participação do PT. O Secretário de Agricultura era do PT. Nós fomos a primeira organização a fazer uma campanha nacional, viajando pelo país dizendo o seguinte: o PT é co-responsável por um massacre de trabalhadores. Isto foi um escândalo na época. Hoje é muito fácil, talvez, a maioria da militância aqui não tenha a dimensão do que era 10 anos atrás ousar falar que o PT tinha participado de um assassinato de trabalhadores rurais que lutavam pela terra. Parecia uma falta de ética, calúnia, mentira, invenção. Nenhuma organização de esquerda ousou tamanha abstração. Isto marcou o nosso batismo de fogo na esquerda. A última conferência que nós realizamos, no final de 2002, a III Conferência Nacional, seguiu esta mesma marca. Fomos a primeira organização nacional que disse: este governo que está sendo parido é um governo burguês que vai levar adiante neste país a política do imperialismo, vai arrochar os salários, reprimir o movimento dos trabalhadores, favorecer a burguesia, o capital financeiro. Fomos a primeira organização no país a adotar a consigna de “Oposição Revolucionária ao governo de frente popular”. Também, da mesma forma que no massacre de Curumbiara, éramos considerados “loucos”, “fanáticos”, toda a esquerda, inclusive a trotskista, que não apoiou Lula, dizia que era uma loucura isso. O governo nem tomou posse e vocês já são oposição, isto é um “esquerdismo”. Hoje é muito fácil dizer que o governo Lula é burguês, que segue o FMI, que não tem nada a ver com o governo dos trabalhadores, que é um governo imerso na corrupção e de continuidade piorada do neoliberalismo. Mas afirmar em 95 que este partido participando do governo de um estado atrasado, no norte do país, era preciso muita audácia e coragem, pois muitos não tinham dimensão de que este governo de participação do PT era um embrião do que haveria de ser um governo de frente popular no Brasil. O que ocorreu quase 10 anos depois já mostrava a vigência deste pequeno grupo, seu acerto político, que vem exatamente de um núcleo de militantes que herda as tradições, as lições, o programa, a ortodoxia que Trotsky fundamentou nos anos 30, ou seja, as teses da Revolução Permanente. Mas nós não criamos mitos, nossa tarefa é derivada de uma compreensão comum de que é preciso construir no país um partido fiel que represente uma leitura nacional e atual do Programa de Transição e da IV Internacional. Nós temos a dimensão desta tarefa, em 10 anos, que não é um período tão pequeno, na atual etapa da luta de classes, abertamente contra-revolucionária do ponto de vista da consciência. Nós somos uma organização que nasceu afirmando que a queda contra-revolucionária dos Estados operários talvez significasse um retrocesso de cem anos na consciência de classe do proletariado. Tínhamos a noção, a consciência, de que ninguém viverá 100 anos para superar esta etapa, daí a nossa vigência, a importância da nossa tarefa histórica. É muito fácil lançar um objetivo quando ele é tangível, alcançável, no entanto descolada da realidade. Vários grupos esquerdistas nasceram e morreram em menos de uma década, alimentaram a expectativa de que a revolução está na esquina, que a revolução vai acontecer e aquele partido dirigirá a revolução. Tivemos isto desde o PRC que gritava nas ruas: “Não, Não à conciliação, é hora da revolução” no começo dos anos 80. Tivemos o CGB já nos anos 90; tivemos o MEP no início dos anos 70 que achava ter inventado a “quadratura” do círculo ao romper com o stalinismo e ao mesmo tempo com o trotskismo, dizendo que a revolução estava ali na esquina. E, hoje, em certa medida, temos o próprio PSTU que alimenta um “ultra-esquerdismo” na perspectiva de que “faremos a revolução amanhã”, “somos a direção”, “estamos tomando do PT a direção da classe operária”. Nós vimos, por exemplo, um partido irmão do PSTU, da LIT, o MAS argentino, que foi considerado no final dos anos 80 o maior partido trotskista do mundo, que tinha um parlamentar, 20 mil jovens militantes. O MAS se acabou. Hoje é um grupo talvez menor que a LBI e tem outro nome, chama-se FOS, Frente Operária Socialista, e que no final dos anos 80 tinha exatamente esta perspectiva. Chegaram a vender uma cartela de campanha financeira onde dizia “a revolução acontecerá antes do final do ano, contribua”! Estas organizações trabalham nesta perspectiva: se a tarefa é muito grande, nós temos que criar mitos para que tal seja atingida logo, porque senão vai desestimular a militância sabendo que ela não vai alcançar, não vai viver este processo. Cria-se uma certa “droga”, um entorpecente para a militância. Nós sabemos da dificuldade que é manter uma militância aguerrida, combativa, dedicada numa perspectiva de que ela não vai alcançar agora os objetivos. Talvez seja muito mais cômodo criar uma organização “ligth”, que exija menos da militância, uma tarefa mais prazerosa, militar só no final de semana, uma contribuição financeira que não pesasse no bolso, que não afetasse os compromissos burgueses da nossa vida, uma militância que não ameaçasse as aspirações pequeno-burguesas, o casamento, noivado, emprego. Ou seja, o que algumas organizações que não colocam a revolução para o dia de amanhã fizeram esta opção. Parece difícil trilhar por uma terceira via, que é a de dizer que nós temos que dedicar nossa vida, a nossa existência para a revolução proletária, mas ela não está na esquina; pelo contrário, está no momento de maior refluxo na história da classe operária. No entanto, o pior refluxo não é o da luta, da ação, mas sim da consciência. Nós assistimos no mundo ações ultra-radicalizadas, com os grupos fundamentalistas, como o ataque às Torres Gêmeas do 11 de Setembro, uma ação espetacular que destruiu o símbolo do capital financeiro, mas dirigidos por organizações fundamentalistas que acreditam em Alá, Maomé... As ações ultra-radicalizadas da juventude francesa, destruindo 100 mil carros, dirigidas por jovens imigrantes sem nenhuma perspectiva socialista, sem nenhum contato ou referência de esquerda, de socialismo; pelo contrário, possuíam um ódio profundo da esquerda, porque a esquerda na França nestes acontecimentos, o Partido Socialista, o PC e as organizações trotskistas renegaram por completo este movimento, taxando-os como bárbaros que estão ferindo a democracia, um movimento voluntarista que não vai levar a lugar algum, só à direita nesta ofensiva. Mesmo quando as ações protagonizadas pela classe operária, como as greves gerais na Itália, Espanha, mobilizações que derrubaram presidentes na América Latina (Argentina, Equador, Bolívia), todas são, porém, carentes do sujeito, ou seja, do Partido, da consciência. Talvez não sejamos daqui a 20, 30 anos, nem um partido com influência de massas, mas temos a certeza de que continuaremos construindo o partido, caminhando passo a passo com nossas posições políticas cada vez mais centradas, mais coladas com a realidade, calibrando nossa pontaria no sentido da delimitação programática com a esquerda revisionista e reformista. Talvez daqui a 20 anos sejamos um partido de 100, 200 ou 300 militantes. Mas podem dizer, 30 anos na estrada e são só 100 ou 200. A etapa histórica é exatamente esta. O nosso desafio histórico não é fazer a revolução já, não é amanhã que presidiremos o Estado. É manter vivo o partido revolucionário, porque na atual etapa da luta de classes mundial, manter em pé um partido com estrutura bolchevique, manter vivo o leninismo, não o de fachada, de fórmulas, mas o da dedicação profissional de seus militantes, de dedicação integral, de vida é uma tarefa histórica a nós incumbida. Manter vivo isto, combinado com um programa correto, do qual Trotsky lançou os fundamentos, combinar o leninismo com o trotskismo na construção do partido, nós vamos ter a certeza de que a revolução proletária será construída, não sabemos quando, se daqui a 50, 60, 100 anos, mas ela vai ser construída porque a história da humanidade mostrou que em todas as revoluções, sem um partido não há revolução, com espontaneidade das massas não há revolução, com o anarquismo não há revolução. Pode até haver revolução sem um partido revolucionário, é verdade. Cuba mostrou, a China, Nicarágua com uma revolução dirigida por uma organização pequeno burguesa que num processo de radicalidade, de pressão das massas acabou abraçando um programa comunista e às vezes como na Nicarágua, “desabraçaram-na” depois. Mas todos estes processos, desde a Revolução Russa, da Comuna de Paris, pela negativa, mostraram que sem o partido revolucionário, sem o partido centralizado não há a conquista do poder; pode até haver uma revolução incipiente, mas não a solidificação do poder proletário. A humanidade, em particular a classe operária, sua vanguarda, atravessa o pior momento de retrocesso ideológico. Contudo, não é um momento de falta de ação, de radicalidade, em que o capitalismo conseguiu satisfazer as demandas da humanidade; pelo contrário, está desabando em todas as suas formas, seja na forma de transição do Estado operário, do capitalismo atrasado dos países periféricos, dos países imperialistas. O capitalismo no mundo desaba. As ações são cada vez mais radicalizadas, seja militar do ponto de vista das organizações que abraçam a luta militar, seja da ação sindical. Mas a consciência está num momento que precisa de um trabalho muito paciente, sem nenhum desespero histórico, sem ansiedade, porque toda ansiedade pequeno burguesa gera movimentos que são efêmeros. Os nossos passos são muito lentos. Não devemos criar nenhum entorpecente para a nossa militância, dizendo que amanhã nos construiremos como uma grande organização, a revolução está batendo na nossa porta, como é muito comum nas conferências das organizações pequeno burguesas. Os exemplos estão aí pipocando, ações cada vez mais radicalizadas, iminentes, estamos à beira de um grande enfrentamento no Oriente Médio. É possível que o imperialismo já no próximo ano inicie uma operação militar contra a Síria e o Irã que pode desembocar numa explosão mundial. Se nós achamos que o 11 de Setembro foi ousado, veremos movimentos que farão o 11 de Setembro brincadeira de criança. A situação é explosiva. Mas a consciência não acompanha; ao contrário, há um descompasso imenso. Não é à toa que o principal foco de resistência ao imperialismo hoje sejam as organizações fundamentalistas e islâmicas que nem de esquerda são. Nem a esquerda revisionista ou reformista consegue ocupar este principal foco que é o mundo islâmico. É o principal ponto de atrito, de resistência e de luta que apenas está começando. A invasão do Iraque é apenas um café de entrada. Só para se ter uma idéia, a direita israelense, histórica, desde que se fundou o Estado de Israel, o Likud que era um partido de extrema-direita, o primeiro ministro de Israel o abandonou dizendo-se agora de centro-esquerda, isto de alguém que era nazi-sionista. E a principal liderança do Partido Trabalhista, Shimon Perez, de “esquerda”, social-democrata, sai do partido dizendo não ser mais de esquerda, mas de centro, igual a Sharon. Este é o prenúncio de alguma coisa muito séria, um barril de pólvora que está preste a estourar no Oriente Médio. Mas sejamos bem claros, por mais explosividade que a situação mundial aponte, ainda estamos muito longe destes acontecimentos serem capitalizados por um partido revolucionário. Parece que quanto mais as ações são radicalizadas, quanto mais os enfrentamentos são claros, tanto mais se afasta do ponto de vista da consciência de classe. Isto serve para nos desanimar? Não. Pelo contrário! Serve para nos fortalecer ideologicamente. A nossa tarefa é ainda mais árdua. Não é para amanhã, ou para agora, talvez não seja nem para a nossa militância. Mas temos a tarefa de sedimentar o partido programaticamente e ter a certeza da existência dele e que atravesse esta etapa. O grande desafio é exatamente este, atravessar a atual etapa. Nesta trajetória, sabemos, o partido pode ter perdas, os militantes mais frágeis ideologicamente, aqueles que querem as conveniências pessoais, a vida cômoda, vão abandonar o partido, os arrivistas. Temos claro que a nossa tarefa não é fácil, sedutora. Temos claro que vamos sedimentar o núcleo cada vez mais duro, de quadros, cada vez mais preparados, dedicados que trabalhem não com o entorpecente da revolução de amanhã, mas que trabalhem para construir um partido para a eternidade da humanidade”. Dezembro de 2005.
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