BOLÍVIA 1952 e 2003: As diferenças históricas entre a revolução proletária e uma rebelião popular Muitas correntes que se autoproclamam
trotskistas, ao analisar os acontecimentos bolivianos de 2003, estabelecem
falsas analogias com a revolução de 1952, apresentando a rebelião popular de
outubro passado de forma triunfalista como uma “revolução”. E, embora
reconheçam formalmente que faltou uma direção revolucionária para a tomada do
poder, apontam como saída para a crise boliviana um governo da Central Operária
Boliviana (COB), da Confederação
Camponesa (CSUTCB) e do MAS (principal partido burguês de oposição).
Organizações estas que traíram a rebelião, abortando a luta contra o regime
pró-imperialista, ao conceder uma trégua de 90 dias ao vice de Goni, Carlos Mesa.
Mesa, assim como seu antecessor, pertence ao Movimento Nacionalista
Revolucionário (MNR) e com este prazo vem recompondo as forças da dominação
imperialista e capitalista no país. Repetindo a mesma política que tiveram
no levante popular argentino de 2001, por trás de análises pretensamente
“revolucionárias”, os pseudotrotskistas propõem como saída o restabelecimento
da governabilidade através de um governo de colaboração de classes. Esta
política é produto da subordinação destas correntes à opinião pública democrática burguesa e, conseqüentemente, de
sua aversão à estratégia da tomada do poder pela classe operária através da
violência revolucionária. 1952: A REVOLUÇÃO PROLETÁRIA TRAÍDA Após a guerra civil de 1949 e a greve
geral de 1950, Paz Estenssoro, candidato do MNR, partido da burguesia nativa,
vence as eleições presidenciais de 1951. As oligarquias tradicionais se negam a
reconhecer a derrota para o MNR e entregam o poder a uma Junta Militar
presidida pelo General Hugo Ballivián. Em abril do ano seguinte, o MNR, junto a
uma fração do Comando do Exército, orquestrou um golpe palaciano contra
Ballivián. Diante da resistência das forças leais do Exército, os golpistas
acovardam-se e debandam, mas os trabalhadores espontaneamente dão continuidade
às batalhas de rua e derrotam as tropas do odiado General Ballivián. Os trabalhadores, organizados em torno
da Federação dos Trabalhadores Mineiros (FSTMB), dos Sindicatos de La Paz e dos
camponeses, constroem milícias que tomam de assalto os arsenais e os quartéis,
cercam as tropas nas cidades, derrotam sete regimentos e dissolvem o Exército,
pilar de sustentação do Estado capitalista. Ao final, “as forças rendidas do
Exército desfilaram pela cidade custodiadas pelas milícias revolucionárias
encabeçadas pelo ‘Comando Operário’” (J. Valdivia Altamirano, A revolução de 9
de abril de 1952). Uma semana depois, 17 de abril, foi
fundada a COB, um organismo de frente única das massas armadas. Seu dirigente
era Juan Lechín, membro da ala esquerda do MNR que passara antes pelas fileiras
do Partido Operário Revolucionário (POR). As milícas armadas centralizadas na
COB eram o único poder efetivo e militar existente, responsáveis inclusive por
guarnecer o Palácio Quemado (presidencial). Mas, sem uma direção revolucionária
que orientasse a luta rumo ao estabelecimento de um governo operário e
camponês, a direção da COB entregara o poder político para Paz Estenssoro,
chamando as massas a confiar nele. Sem poder militar próprio, Estenssoro tomou
várias medidas demagógicas enquanto ganhava tempo para reconstituir o Exército,
desarmar as massas e burocratizar a COB. O papel social e político que a COB
exercia no país extrapolava em muito o de qualquer central sindical operária
que se tem conhecimento na história. A Central nucleava todos os trabalhadores
organizados, suas milícias e também os sindicatos camponeses, constituindo-se
em um organismo de duplo poder de características soviéticas. Vanguarda de todo
o continente, o proletariado boliviano atingiu, sem uma direção comunista, o
ponto máximo a que historicamente podem chegar as massas agindo
espontaneamente. Como a COB não possuía uma direção
revolucionária, não poderia se projetar como estado maior da revolução. O POR,
que se reivindica formalmente trotskista e possuía dois membros na direção
executiva da Central, exercendo uma importante influência política sobre o
proletariado mineiro, não passava de um conselheiro de esquerda do MNR.
Opunha-se a que a COB rompesse com a
burguesia nacionalista e seu governo, negava-se a convocar a ocupação das minas
e a tomada do poder pelo proletariado, limitando-se à tática oportunista do
ministerialismo ao propor o ingresso de “ministros operários” no governo
capitalista. Embora em 1946 o POR tenha conseguido
aprovar no Congresso da FSTMB pela primeira vez na história um programa baseado
na teoria da revolução permanente de Trotsky, apontando a falência da burguesia
nacional e a necessidade de uma revolução proletária como única via para a
libertação proletária, transformou esta conquista programática, as famosas
“Teses de Pulacayo”, em letra morta na revolução de 1952, capitulando à ala
esquerda do MNR. Em 1947, o POR e a FSTMB firmaram um bloco político eleitoral
que elegeu dez candidatos ao parlamento (2 senadores e 8 deputados, entre os
quais G. Lora). A traição do POR à revolução de 1952 foi o início do fim deste
partido, que hoje não passa de uma seita moribunda cuja existência foi
completamente desprezível durante a rebelião popular de 2003. AS DIFERENÇAS ENTRE 1952 E 2003 Após a traição de 52, vários outros
levantes sacudiram a Bolívia, demonstrando a exigência orgânica e insuperável
das massas para se libertarem do sangrento parasitismo capitalista: 1971, 1985,
a “guerra da água” em 2000 e a luta contra o “impuestazo” de Goni em fevereiro
de 2003. O adiamento da revolução socialista, graças às traições das direções
reformistas e pseudotrotskistas na Bolívia, tem sido pago por um preço muito
alto: degradação das condições de vida das massas e retrocesso de sua
vanguarda, o que se reflete cruelmente nos limites ainda mais estreitos do espontaneísmo
das massas. Este processo se combina
internacionalmente com a derrota histórica do proletariado através da
restauração capitalista na URSS e no Leste Europeu e com o avanço da barbárie
imperialista em nível mundial. Basta ver que um dos fatores para a
preponderância camponesa, indígena e popular sobre o elemento proletário em
2003 foi a chamada “desindustrialização do país” e o estrangulamento da
indústria mineira, fenômenos que refletem o avanço da recolonização
imperialista. Um dos elementos fundamentais para o
salto de qualidade, em outubro, da crise de governabilidade que se agravou
durante todo o governo Goni, foi a renovação da direção da COB no Congresso de
agosto em Oruro. A expulsão da direção da central composta por uma máfia
burocrática abertamente governista (gonista), possibilitou uma relativa
autonomia política à COB (“autonomia” que não deve ser confundida com
independência política de classe frente a burguesia, possível só sob a
influência do partido revolucionário). A renovação debilitou o controle
burocrático sobre o proletariado que obrigou a nova direção a deflagrar uma
greve geral por tempo indeterminado, quando o descontentamento secular das
massas somou-se à fúria provocada pelos massacres de trabalhadores em Warisata
e “El Alto”. Mas qualquer que seja a força de seu
caráter de massas, a greve geral não resolve o problema do poder, apenas o
coloca. Era necessário passar da greve geral à insurreição armada com a criação
de organismos de duplo poder e milícias preparadas para combater, desarmar e
destruir o aparato repressivo militar que sustenta o regime assassino. Foi pela
ausência destas formas superiores de enfrentamento contra o Estado capitalista
que a rebelião de outubro de 2003 ficou a dever à revolução de 1952. A trégua dos 90 dias paralisou
temporariamente a escalada ascendente do aprendizado popular da atual geração
que, no calor da rebelião, já estava por tornar as barricadas defensivas e
isoladas em um fenômeno generalizado como parte do enfrentamento contra as
tropas. Antes que o incremento da quantidade de
ações práticas das massas pudessem dar o salto em sua qualidade política ao
ponto onde elas já haviam chegado no passado, as direções contra-revolucionárias
da COB, do MAS e da CSUTCB pactuaram com Mesa o fim da greve geral. Da
massificação das barricadas à destruição do pilar de sustentação do Estado
patronal, a ação mais avançada de 1952, algumas medidas práticas e organizativas
precisam ser tomadas e daí para o assalto ao poder, outras. Então, até onde chegaram as massas
bolivianas em 2003? Além de não possuir um partido revolucionário que as
conduzisse a um Governo Operário e Camponês, as massas não dispunham de
milícias armadas, nem de organismos de duplo poder. A COB chegou a 2003 tão
descaracterizada pelo peleguismo e a burocratização que mal funcionava como uma
central sindical. Mas se as condições objetivas para a
revolução apodrecem e faltam elementos subjetivos revolucionários, abundam
mediadores contra-revolucionários. O deputado Evo Morales e seu MAS tem como
estratégia eleger-se presidente, seguindo os passos de Lula. Por isso, apoiou a
“solução constitucional” da transferência do poder para Mesa, para que o levante popular não viesse a interromper
seus planos eleitorais. O dirigente
máximo da COB, Jaime Solares, reuniu-se
com Mesa e saiu dizendo que o apoiaria na luta contra a “corrupção”. Felipe
Quispe da CSUTCB foi mais longe no apoio ao “novo governo” e acabou compartindo
o palanque de posse com Mesa diante de milhares de camponeses. Contando com
estes aliados, Mesa nem se deu ao trabalho de mudar o odiado comando da polícia
e das assassinas FFAA de Goni. Neste quadro, é criminoso o seguidismo dos
pseudotrotskistas que apontam como “alternativa revolucionária” um governo dos
contra-revolucionários da COB, MAS e CSUTCB,
pilares da reação democrática que deu posse a Mesa e candidatos a “plano
B” do imperialismo, caso fracasse o “novo governo”. A derrota histórica do proletariado na
URSS e no Leste europeu, não impediu que os trabalhadores de todo o mundo protagonizassem heróicos enfrentamentos
contra o capital, elevando a intensidade da luta de classes. Mas em nenhuma
destas lutas surgiram organismos de poder operário e popular armados e
centralizados como alternativa ao poder do Estado capitalista, ou seja,
organismos soviéticos. É preciso assinalar o retrocesso
político e ideológico no interregno de 1952 para 2003, apontar quais medidas
práticas faltaram e abstrair daí que o triunfo sobre a burguesia e a tomada do
poder só podem ser alcançados se a rebelião possuir uma direção que oriente a
luta pela ruptura das massas com os agentes da burguesia no interior do
movimento. Marcando as diferenças entre o bolchevismo e o stalinismo, Leon
Trotsky nos ensinou que nas épocas reacionárias, que rebaixam o nível
ideológico do movimento e o pensamento político retrocede a etapas já
amplamente superadas, os genuínos revolucionários se destacam dos revisionistas
desmoralizados que os qualificam de “sectários” por defenderem a herança do
pensamento revolucionário com unhas e dentes e sobre esta base educam os novos
quadros para as próximas lutas. As diferenças entre 1952 e 2003 nos
ensinam que os limites ainda mais estreitos do espontaneísmo impõem como
pré-condição, para que a rebelião popular alcance o estágio superior da
revolução social, a construção de um organismo político de vanguarda
centralizado e disciplinado disposto a tomar o poder, o partido revolucionário
da classe operária do altiplano.
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