VENEZUELA

Chávez: correndo sobre o fio da navalha

O triunfo eleitoral de Hugo Chávez para a presidência da Venezuela em dezembro de 1998 e a esmagadora maioria conquistada por sua coligação eleitoral (Pólo Patriótico) para a Assembléia Constituinte neste ano, alcançando 122 das 131 cadeiras, representou uma importante ruptura no regime político de bipartidarismo que dominou o país nos últimos 41 anos.

Esse modelo teve origem após a derrubada da ditadura militar de Pérez Jiménez, em 1958, quando os dois partidos majoritários da oposição burguesa — Ação Democrática (AD), filiada a Internacional Socialista, e o COPEI, democrata-cristão — estabeleceram um acordo político, conhecido como "Pacto do Punto Fijo", que previa o seu revezamento a frente do governo, dividindo entre si toda a estrutura política e econômica do país.

Esses dois partidos tradicionais se alternaram ciclicamente a frente do Estado, rapinando entre si os milionários recursos que gerava um país extremamente rico, terceiro maior produtor de petróleo do mundo, responsável por abastecer 80% do mercado de óleo cru norte-americano.

O modelo político costurado entre a AD e o COPEI, apresentado ao mundo como um exemplo de estabilidade política e um paraíso democrático encrostado na América Latina, patrocinou um dos maiores níveis de corrupção do planeta.

Enquanto a imensa maioria dos venezuelanos sobrevive em condições subumanas, com 80% da população abaixo da linha de pobreza e um desemprego recorde chegando a 25%, a burguesia nacional petroleira, associada ao imperialismo ianque, representada pelos grandes consórcios empresariais, transferia para fora do país, via negócios na bolsa de valores de Nova York e investimentos no mercado imobiliário de Miami, cerca de 350 bilhões de dólares, quase todo o volume de recursos advindos da exploração de petróleo nos últimos 40 anos, estimada em 400 bilhões de dólares.

O crescimento econômico, baseado no modelo monoprodutor de petróleo que permitia essa "coabitação democrática", teve seu auge entre 1973 a 1983 quando o preço do barril do óleo cru se quadruplicou. Durante esse período, a velha burguesia venezuelana foi incapaz se utilizar essa vantagem conjuntural para industrializar o país e proceder uma ampliação do mercado interno, perpetuando o modelo onde sua economia dependia exclusivamente da exploração petrolífera. A incapacidade da burguesia em desenvolver outros ramos da indústria provocou a importação massiva de bens de consumo, materiais de construção e produtos têxteis, chegando ao cúmulo de adquirir dos EUA os produtos da cesta básica.

Os capitalistas nacionais utilizaram os abundantes recursos advindos com a drenagem das finanças do Estado para desenvolver uma fabulosa rede de corrupção que abarcou os três poderes e a própria burocracia sindical, vinculada a AD, que recebia financiamento estatal.

Esse modelo entrou em crise a partir da queda do preço do petróleo no final dos anos 80 e o passageiro crescimento econômico deu lugar a recessão generalizada e um incremento brutal do ataque às condições de vida das massas. O salário mínimo garante somente 25% do orçamento familiar. O déficit fiscal alcança 9% do PIB e os juros da dívida externa de 30 milhões consome 30% do orçamento nacional/ano.

A resposta popular à crise econômica fez-se sentir imediatamente, desmontando o castelo de areia da "democrática" Venezuela. Em fevereiro de 1989 explode uma revolta de massas conhecida como "caracazo" contra o pacote do FMI lançado pelo então presidente Carlos Andrés Pérez (AD), com saques nas ruas de Caracas e em várias cidades do país, um levante popular que sofreu uma violenta repressão pelo exército, com a morte de mais de mil pessoas.

O ódio popular contra o governo de Andrés Pérez e a instabilidade política do regime se aprofundam. A própria repressão sangrenta à mobilização popular começa a causar questionamentos da política econômica pró-imperialista no seio das FFAA, principalmente em suas fileiras mais baixas. É o começo do fim do "Pacto do Punto Fijo".

Em 92, com o mandato de Carlos Andrés Pérez no auge de sua crise, o tenente-coronel Hugo Chávez, surge na cena política venezuelana liderando uma tentativa frustrada de golpe militar contra o governo social-democrata da AD. Apesar do fracasso da intentona chavista e de sua prisão, produto do isolamento ainda existente de sua plataforma política nas FFAA, a tentativa de golpe tem a simpatia popular, expressando a completa desilusão das massas com o regime democratizante bipartidarista que encarna a liquidação de suas condições de vida e a profunda corrupção a frente do Estado.

Um ano depois, a própria burguesia venezuelana, manobrando a revolta popular, aprova o impeachment de Carlos Andrés Perez, cinicamente acusado de corrupção pelos seus próprios pares e busca uma saída para contornar a crise política do país através da constituição de um Governo de União Nacional. O governo de Rafael Caldera (1994 a 1998), eleito pelo COPEI, mas que logo rompe com o partido democrata-cristão para formar a chamada Convergência, tentando desvincular-se do desgaste dos partidos tradicionais, é uma tentativa desesperada da burguesia de solucionar seu agonizante debacle político.

O próprio Chávez apóia as medidas de emergência de Caldera, que pouco a pouco vai se subordinando integralmente aos ditames do FMI e do imperialismo ianque, buscando, através de sete planos econômicos antioperários, jogar o ônus da crise capitalista sobre os ombros das massas, enfrentando uma onda de protestos populares, cujo auge é a greve geral de 1997. A resistência operária e a manutenção do mesmo modelo monopro-dutor de exportação de pretróleo minou as bases de sustentação do governo, antecipando dessa maneira a crise terminal do regime.

Em sua fracassada tentativa de dar estabilidade a um Governo de União Nacional, a burguesia tem apoio dos três mais importantes partidos da esquerda venezuelana, todos membros do Foro de São Paulo: o Movimento ao Socialismo (MAS), um racha do PC de 1971 que chegou a ter influência de massas no final da década de 80, o próprio Partido Comunista da Venezuela (PCV) e a Causa Rebelde, agrupamento que conquistou a prefeitura de Caracas em 1992, mas frustrou a expectativa popular e entrou em decadência.

A falência de todas as alternativas tradicionais da burguesia, as seguidas traições da burocracia sindical e a decomposição política da esquerda, tributários dos governos anteriores, impediram a classe operária de apontar uma saída independente ao descontentamento das massas. Como produto dessa situação, gerou-se o fenômeno Hugo Chávez.

Chávez, uma alternativa da burguesia em crise

As aspirações do tenente-coronel Hugo Chávez de fazer uma mudança radical da estrutura política e econômica venezuelana, até então minoritárias no exército, vão ganhando força nas FFAA com o avanço da crise econômica, já que o descontentamento popular e a indignação da classe média também penetram em suas fileiras mais baixas e nos oficiais médios do exército, transportando a crise política ao principal pilar de sustentação do Estado burguês.

Ao mesmo tempo, para atrair a esquerda e os setores populares, o ex-golpista lança ataques ao FMI e ao neoliberalismo e, entre 1994 e 1997, após ganhar liberdade pelo indulto decidido por Caldera, percorre o país defendendo o fim do regime político moribundo do bipartidarismo. Pouco a pouco vai se aglutinando uma coalizão eleitoral que se converteu na plataforma política de Chávez, o Pólo Patriótico. Nessa coalizão participam praticamente todos os partidos de esquerda, setores militares ativos e, posteriormente, grupos empresariais e financeiros se convertem em poderosos aliados do tenente-coronel nos momentos decisivos da campanha de 1998.

A ascensão chavista representa que um setor da burguesia resolveu readequar o Estado e suas bases econômicas para diversificar a produção e essa decisão choca-se parcialmente com os interesses do imperialismo ianque, já que esboça, mesmo que timidamente, uma plataforma nacional-desenvolvimentista, que poderia colocar em risco a continuidade do fornecimento barato de petróleo para os EUA e os lucros estratosféricos das companhias distribuidoras norte-americanas (Texaco, Mobil, Esso), que detêm integralmente o controle de milhares de postos de distribuição em todo o país latino-americano.

Essa mudança de orientação do Estado venezuelano com relação ao petróleo fez-se sentir prontamente na política governamental. A Venezuela, que nos governos anteriores priorizava o aumento da produção para reduzir o preço do barril, atendendo aos interesses das sete grandes irmãs do petróleo, hoje busca o aumento do preço do barril, aderindo ao acordo da OPEP para elevar os preços, o que entra em choque com os grandes monopólios de distribuição dos derivados do óleo cru.

Apesar disso, as velhas classes dominantes venezuelanas, assim como o próprio imperialismo, já vinham dando como certo a falência do "sistema" corrupto do bipartidarismo, tanto que o Financial Times de 29/09/98 declara que "amplos setores da comunidade internacional de negócios estão dando boas vindas a uma mão dura para eliminar a corrupção".

Isso se comprova porque enquanto se produzia uma aguda polarização entre Chávez e a candidatura de Salas Romer, do Projeto Venezuelano, apoiado pelo COPEI, a AD e a Convergência, que retiraram seus candidatos do pleito, os grupos econômicos mais expressivos da burguesia venezuelana foram se aproximando de Chávez. Em meados de 1998, importantes conglomerados financeiros contribuíram com quantias milionárias para o fundo de campanha do tenente-coronel e um dos mais importantes canais de televisão do país, o Venevisão, converteu-se no seu mais decisivo cabo eleitoral, buscando assim um compromisso prévio com Chávez em defesa de seus interesses econômicos.

A vitória de Chávez e seu completo controle da Assembléia Constituinte (AC) refletem, por um lado, o esgotamento do modelo político aplicado nas últimas quatro décadas na Venezuela e, por outro, a resolução de setores da baixa e média burguesia nacional, dependentes do mercado interno e da proteção estatal (construção, turismo, gás natural), de reorientar o Estado, tanto do ponto de vista econômico como político. Chávez consegue levar adiante esse processo que sofre resistência do imperialismo porque, além da imensa simpatia popular, tem o apoio quase integral das FFAA.

O novo governo encabeçado pelo Movimento Bolivariano Revolucionário-Movimento V República (MBR-MVR) e apoiado pela esmagadora maioria da esquerda nacionalista, stalinista e mesmo "trotskista", está promovendo um remodelamento do Estado, em busca de enfrentar a estagnação econômica do país.

Apesar da vitória de Chávez representar uma considerável mudança na ordem política tradicional venezuelana, inquietando aos exploradores nacionais e estrangeiros, o velho modelo já era um obstáculo para a garantia de seus próprios interesses. Somente na década de 90 se produziram escândalos bancários espetaculares que ameaçaram o Estado de deixar de pagar sua dívida privada com os credores internacionais.

Todas essas contradições presentes na conjuntura venezuelana revelam uma tendência a que o governo Chávez assuma no futuro características bonapartistas, ainda embrionárias.

Chávez é um candidato em potencial a bonaparte, seu governo não é neste momento regido pela figura de um ditador com força que se coloca como um árbitro acima das classes, mas de um populista burguês que, se apoiando no movimento de massas e em um setor da burguesia, leva a cabo uma luta contra as camarilhas políticas do velho regime.

Esse potencial bonapartista de Chávez somente dará um salto de qualidade quando seu governo perder a confiança das massas e se enfrentar com o próprio movimento operário, assumindo características militaristas que acabarão por centralizar completamente os poderes do Estado em Chávez, que os controlará com mão de ferro, sob pena de ser varrido por uma insurreição popular.

Essa futura etapa política da conjuntura venezuelana apenas se gesta, mas o próprio projeto chamado de "Lei Habilitante", enviado ao Congresso, conferindo ao presidente poderes especiais, é um mecanismo que tornará possível a concretização de suas aspirações bonapartistas.

Apesar da perspectiva do chavismo assumir o caráter de um mediador ditatorial acima das classes, "historicamente, o bonapar-tismo foi e continua sendo o governo da burguesia durante os períodos de crise da sociedade burguesa... O bonapartismo implica sempre na oscilação política entre as classes, mas em todas as suas reencarnações históricas conservou uma só e única base social: a propriedade privada"(A natureza de classe da URSS, 1933, Leon Trotsky).

Desta forma, o novo governo, ao convocar a AC, deseja centralizar os poderes da nação para fazer justamente essa reorientação estatal, necessitando para isso racionalizar o aparato administrativo nacional, o que se materializa nos discursos da moralização e anticorrupção, na destituição dos juízes, na ameaça de intervenção nos sindicatos e na ultra-pelega e burocrática Central dos Trabalhadores venezuelanos (CTV). Em resumo, os setores burgueses ascendentes precisam do Estado e de todos os seus instrumentos jurídicos e políticos, concentrados agora na Assembléia Constituinte, para alterar as bases econômicas do país.

Por essa razão, a Constituinte, longe de representar um co-roamento das aspirações populares, como prega a esquerda e o próprio governo, expressa um instrumento de um setor da burguesia em luta contra outro, reordenando jurídica e politicamente o Estado segundo seus interesses econômicos. Chávez quer sair do modelo que beneficiou apenas um setor da economia, o petrolífero, e com um corte radical no regime político, via a Assembléia Constituinte, deseja privilegiar outros setores produtivos da burguesia. As palavras de Vladimir Villegas, dirigente do Pólo Patriótico na AC, não poderiam ser mais claras nesse sentido: "Esperamos que uma vez clarificado o panorama constitucional do país, o processo de confiança na possibilidade de investir na Venezuela se consolide... Temos que substituir um modelo econômico rentista por outro produtivo. O modelo petroleiro, com todos os benefícios que nos deu, fracassou" (Página 12, 17/09).

Aliado a isso, todas as declarações e decisões de Chávez após sua vitória eleitoral vão no sentido de acalmar o imperialismo e os grandes monopólios. Em sua posse, o tenente-coronel fez um discurso completamente diferente do tom do que pregava na campanha eleitoral, onde ensaiava um antiimpe-rialismo. Defendeu que o povo e seu governo deveriam ter candura e sensatez a partir daquele momento, reivindicando o Estado de Direito, o respeito às leis, à propriedade privada e aos pactos e acordos internacionais, declarando que "somos gente séria, sou um homem sério e vou cumprir todos os acordos e compromissos adquiridos pela república"(El País, 08/09). Questionado como estão reagindo os investidores internacionais frente ao governo Chávez, o líder do governo na AC respondeu o que o grande capital queria ouvir: "demos garantia a eles do respeito à propriedade privada, está sendo dado aos investidores a possibilidade de vir ao país e está se criando condições para isso. Os organismos internacionais diziam que na Venezuela não funcionava o Estado de Direito porque não tínhamos uma justiça confiável e isso assustava os investimentos. Estamos mudando essa realidade" (Idem).

Entre a pressão popular e a subordinação ao imperialismo

Com todas essas declarações, o governo pretende demonstrar ao imperialismo que a saída que defende para oxigenar a economia venezuelana e moralizar o Estado acabará em proveito dos interesses dos grandes monopólios e da banca internacional.

Apesar de todo esse esforço chavista, o imperialismo não está disposto nesse momento a dar aval ao governo porque este se apóia, além das FFAA, no movimento de massas e é produto do ascenso popular contra os partidos tradicionais, despertando um processo de profunda expectativa entre os trabalhadores do país.

O grande temor dos capitalistas é que o novo governo não consiga controlar por muito tempo o movimento de massas, adiando ad infinitum o atendimento das suas reivindicações, tarefa que até agora Chávez tem feito com sucesso, mas que já começa a dar os primeiros sinais de esgotamento devido a enorme pressão popular.

Após seis meses de governo, o Pólo Patriótico não realizou praticamente nenhuma das promessas tidas como fundamentais para a população explorada. Não aumentou o salário dos trabalhadores em estatais em 20% e sequer decretou a moratória da dívida externa. Apesar do aumento do preço do barril de petróleo (de 7 para 18 dólares) ter incrementado os ingressos na economia venezuelana no primeiro semestre de 1999, os indicadores econômicos mostram uma queda de 6% na capacidade produtiva do país, provocando a perda de 500 mil empregos, sem nenhuma contrapartida do governo para assegurar trabalho para as massas.

O mesmo Chávez que durante a campanha criticou duramente a política econômica pró-imperialista de Rafael Caldera ratificou no cargo de Ministro da Economia Maritza Izaguirre, do governo anterior, sob o argumento de que "era a única pessoa com capacidade de levar adiante as políticas econômicas do novo governo com suficientes relações com os organismos multilaterais"(Folha de São Paulo, 03/09), ou seja, que tem a confiança da banca internacional e do FMI. No mesmo sentido, em um programa de TV de março de 1999, o chanceler da Venezuela, José Vicente Rangel (ex-candidato presidencial do MAS), assegurou: "claro que vamos reformar a constituição, a idéia de Chávez é consagrar como princípio constitucional uma nova república comprometida com os novos e modernos processos de globalização que opera hoje no mundo"(Idem).

O candidato que tinha um discurso pseudo-antiimperialista, chegando a convocar a formação de uma Frente Continental contra o Neoliberalismo, semanas após sua posse foi louvar o mercado, batendo o martelo em Wall Street, onde assegurou que vai honrar seus compromissos externos. Longe de defender as empresas estatais e a chamada soberania nacional, Chávez "acaba de abrir a geração e distribuição de energia ao capital privado e espera-se que abra o caminho para a privatização das três companhias energéticas regionais" (Financial Times, 27/04).

O reconhecimento de que até o momento Chávez segue a risca seus compromissos com o imperialismo, colocando um balde de água fria na expectativa de adotar medidas de atendimento às reivindicações populares, vem dos próprios porta-vozes dos financistas. O The Wall Street Journal de 09/08 assegura, com satisfação, que "as cláusulas que protegem a propriedade privada são essencialmente as mesmas da atual carta nacional".

Em meio a esse processo, as massas começam lentamente a impacientar-se. Há poucos dias atrás, um dirigente sindical dos empregados públicos estatais declarou que, após os seis meses iniciais do governo, o perigo do golpe da direita já havia passado e que era chegada a hora do governo atender às reivindicações populares. Em mais de 11 estados e nas grandes cidades, como Caracas, já foram ocupados por mais de 20 mil sem-teto 40.000 hectares entre terrenos vazios públicos e privados, sob a alegativa que estão cumprindo na prática as promessas de Chávez que ainda não se realizaram.

Todos os dias, a entrada do Palácio de Miraflores, sede do governo nacional, é tomada pela população, exigindo o cumprimento das reivindicações populares. A resposta do governo é frustrante. Questionado se não há perigo de que as expectativas populares superem a capacidade de resposta do Estado, Chávez declarou: "As pessoas vêm agora ao palácio protestar. Vêm aqui e eu os recebo. O que desejam, querem um aumento de cem por cento. Não posso dar. Não me peçam isso. É impossível" (Página 12, 13/09).

A grande contradição que está envolucrado o governo Chávez é tentar se apresentar confiável aos olhos do imperialismo e cumprir os acordos com a banca internacional, ao mesmo tempo, que foi eleito com uma plataforma "antineolibe-ral" por uma massa popular que deseja ver atendida imediatamente suas reivindicações justamente em oposição ao cumprimento das exigências do imperialismo.

O que torna a situação mais grave e que pode fugir ao controle do governo é que as massas romperam com o bipartidarismo dos partidos tradicionais, identificando Chávez como um duro combatente de seus interesses contra a burguesia parasitária. E por isso não estão dispostas a esperar muito tempo.

O quadro é extremamente crítico porque o novo governo chegou à sua posse com um aparato produtivo nacional semi-paralisado, mais de três mil empresas fechadas ou quase em ruínas. A dívida externa obriga a crescentes remessas de juros. Chávez começa a enfrentar uma pressão reivindicativa de milhões de venezuelanos, excluídos das mínimas condições de subsistência durante várias décadas, que desejam uma elevação real de seu nível de vida, a criação de postos de trabalho e o fim da corrupção.

A pressão social, o profundo descontentamento popular com os governos anteriores, a larga frustração dos trabalhadores, dá agora aos explorados o pleno direito de verem suas reivindicações atendidas e estes as defendem abertamente, mais exigentes, causando circunstâncias imprevisíveis de enfrentamentos com a burguesia nacional, o imperialismo e com o próprio governo. A resolução da dupla herança da velha política — crise econômica e necessidade de atender às demandas populares — não podem esperar pelo fim da manobra política materializada pela Constituinte, como deseja o governo.

A Venezuela é um barril de pólvora prestes a estourar e cabe ao movimento operário superar suas direções burocráticas traidoras e as ilusões no governo Chávez, defendendo a completa ruptura com o imperialismo, o não pagamento das dívidas interna e externa, a nacionalização da terra e a revolução agrária, a estatização dos bancos e das grandes empresas sob o controle operário.

Somente uma estratégia de independência de classe, baseada na ação direta das massas em luta por um genuíno governo operário e camponês, colocando na linha de frente a defesa dos interesses do proletariado pode abrir caminho para uma vitória de classe frente aos bandos capitalistas. Não há nada a esperar do governo do MBR a não ser novas traições às massas populares!

Para levar a cabo esse programa anticapitalista e antiimperialista é preciso lutar pela construção de um genuíno Partido Operário Revolucionário na Venezuela que se forje na luta por superar as ilusões das massas com o chavismo, delimitando-se com todas as variantes da esquerda que capitularam ao nacionalismo burguês.

A expectativa de milhões de trabalhadores em romper com décadas de bipartidarismo parasitário do velho regime deve ser canalizada, não para o populismo chavista, mas para alavancar uma nova direção política e revolucionária para a vanguarda operária e popular, capaz de enfrentar todos os ataques que Chávez e seu governo preparam contra os explorados.

Em tempo

Quando fechávamos essa edição de Marxismo Revolucionário a Assembléia Nacional Constituinte (ANC) da Venezuela encerrava seus trabalhos, apresentando um novo texto constitucional que será submetido a um referendo popular no dia 15 de dezembro para ser posteriormente promulgada.

Como nossos prognósticos já apontavam, a "nova" Constituição impulsionada pelo presidente Hugo Chávez mantém intocável a propriedade privada capitalista e o controle da terra pelos grandes latifundiários, sequer atacou a profunda corrupção instalada pelo regime bipartidarista da AD-COPEI, assegura a submissão do país ao imperialismo e não atende a qualquer das reivindicações das massas populares que votaram no chavismo sob a ilusão de que seu mandato e a ANC representavam um golpe no imperialismo e na burguesia nacional parasitária.

Longe do que a esquerda venezuelana e o próprio governo vendiam ilusoriamente para as massas - que a nova Constituição expressaria uma profunda mudança no regime político em favor dos trabalhadores e do povo - as únicas medidas concretas do novo texto constitucional foram a extensão do mandato presidencial de cinco para seis anos, a introdução da possibilidade de reeleição para presidente e a transformação do Congresso Nacional em um parlamento unicameral. Todas essas medidas servem para fortalecer o poder de Chávez a frente do Estado, buscando preservar na íntegra, sob uma nova fachada institucional, o cambaleante regime político burguês.

Como denunciamos, remando contra a maré de todos os grupos pseudo-trotskistas que saudaram a ANC como uma conquista popular, a constituinte foi uma manobra do governo e de um setor da burguesia nacional para capitalizar o ascenso popular em curso para o campo institucional, fazendo as mudanças na estrutura do Estado que expressassem a defesa de seus interesses políticos e econômicos.

A clara intenção de Chávez de que a partir da aprovação da "nova" Constituição o país volte totalmente à normalidade, sem a presença das massas nas ruas em defesa de suas reivindicações, como ocorre agora, é expressa pelas próprias palavras do tenente-coronel, sempre com a demagogia própria de um populista burguês: "O único caminho pacífico e democrático para deixar para trás 40 anos de corrupção é aprovar a nova Constituição" (FSP, 27/11).

Cabe à vanguarda classista tirar as duras conclusões desta manobra burguesa do governo Chávez, começando desde já a preparar uma vigorosa ofensiva operária contra o governo e os capitalistas, para impor nas ruas suas reivindicações, através da ação direta das massas.

POLÊMICA

A esquerda venezuelana é um apêndice do chavismo

O conjunto da esquerda venezuelana, que já tinha se prestado ao papel de sustentáculo da burguesia na época do Governo de União Nacional de Rafael Caldera; agora, com a ascensão chavista, capitulou completamente à sua política supostamente nacionalista-burguesa, patrocinando ante as massas uma profunda ilusão no Pólo Patriótico.

O papel jogado pela esquerda até o momento na Venezuela, repetindo o velho erro de gerar ilusões com os "militares progressistas", expressa sua adaptação ao regime político burguês. Estas mesmas correntes elegeram as credenciais "antiimperialistas" de figuras como o General J.J. Torres na Bolívia, Veslasco Alvarado no Perú, o general Omar Torrijos e o general Rodríguez Lara no Equador.

Em cada caso, entretanto, estes militares só abriram caminho para regimes mais reacionários na América Latina, na maioria das vezes ditaduras militares, que imediatamente destruíram toda pequena reforma que se havia posta em prática e, ferozmente, atacaram os direitos políticos e as condições de vida das massas.

O apoio que as correntes de "esquerda" pequeno-burguesas brindam aos militares "revolucionários" apenas serve para desorientar a classe trabalhadora e desarmá-la politicamente a medida que os chefes militares destas nações rompiam com suas pretensões nacionalistas e davam um giro cada vez mais a direita.

A esquerda nacionalista e stalinista venezuelana, representada pelo Partido Pátria para Todos (PPT), pelo MAS, pela Causa Rebelde e pelo PCV engrossou as fileiras da coligação chavista, apresentando o tenente-coronel e sua Constituinte como o elixir de todos os males do país, causado na verdade pela histórica espoliação do país pelo imperialismo, rapina a qual de associou a burguesia nacional representada pela AD, COPEI e pelo próprio governo Caldera, apoiado criminosamente por esses partidos.

Essa mesma "esquerda" agora é uma entusiasta defensora da política do governo de intervir na Central dos Trabalhadores Venezuelanos (CTV).

Como já fizeram vários regimes bonapartistas, a Assembléia Constituinte chavista se dispõe a intervir na CTV, um verdadeiro antro de corrupção ainda controlada pelos partidos burgueses tradicionais. Essa medida do governo, entretanto, não está orientada para que esta Central goze de sua independência de classe e para que tenha autênticas direções operárias, mas para submetê-la ao mecanismo da arbitragem do novo regime, uma vez caducado o velho. Se trata de uma tentativa reacionária que se esconde atrás da necessidade de pôr fim à velha burocracia.

A esquerda venezuelana apóia todo esse novo intervencionismo do Estado porque busca a oportunidade de transformar-se em direção dos sindicatos, depois de décadas de marginalidade política. Nega-se, assim, a defender que a tarefa de emancipar os sindicatos da burocracia podre do regime anterior deve ser dos próprios trabalhadores, não do Estado, e que a CTV, deve ter uma direção que lute contra os próprios ataques desferidos pelo governo Chávez ao movimento operário.

Os pseudo-trotskistas sob as ordens de Chávez

As correntes que se reclamam trotskistas, por outro lado, não ficam em desvantagem da capitulação perpetrada pelo stalinismo.

Os charlatães lambertistas na Venezuela, que estão organizando uma frente política heterogênea, a Referência Nacional, composta por chavistas "de esquerda" e sindicalistas que romperam com a corrupta CTV, também integraram as listas constituintes do Pólo Patriótico e apoiaram a eleição de Chávez, sem qualquer denúncia do caráter burguês de sua candidatura e, muito menos, sem alertar as massas que o governo preparava o terreno para capitular frente ao imperialismo, como já o faz após seis meses de governo, ao negociar um acordo com o FMI para continuar pagando a dívida externa e privatizando as companhias elétricas venezuelanas em favor dos grandes monopólios do setor.

Pelo contrário, trataram de adaptar ao máximo seu programa à plataforma chavista, como revela um dirigente lambertista: "Nossa campanha centrou-se na bandeira de Assembléia Constituinte soberana e com Plenos Poderes. Chávez fez propostas com as quais podemos coincidir — moratória da dívida externa, convocação de uma Assembléia Constituinte Soberana, parar as privatizações e moralização das empresas estatais básicas. Estes pontos fazem parte da ‘agenda alternativa bolivariana’... Participando da campanha registramos três candidatos na lista do MBR a Câmara dos deputados. Eu mesmo fui candidato" (Entrevista com Fróilan Barrios, dirigente da corrente lambertista na Venezuela, Jornal O Trabalho, nº 453).

Longe de denunciar a Assembléia Constituinte como um instrumento que apenas servirá para consolidar uma fração burguesa contra a outra, semeando terríveis ilusões junto ao movimento operário que, neste caso concreto, está completamente atado à direção política do chavismo, reforçando o nacionalismo burguês e as ilusões na democracia capitalista, os lambertistas entrin-cheiraram-se ao lado de um setor da burguesia, representado pelo chavismo, apresentando a Constituinte como a panacéia moralizadora que resolveria todos os males do povo venezuelano, um instrumento do próprio movimento operário para conquistar suas reivindicações.

Uma posição justa na Venezuela era defender a independência de classe e nenhum apoio à candidatura Chávez, a seu governo e à AC que convocou, denunciando a Constituinte como um mecanismo democratizante próprio das disputas interbur-guesas, convocando as massas a impor, através de seus próprios métodos de luta (greve geral, ocupação das terras e fábricas, etc.), suas reivindicações.

Os revolucionários não poderiam embarcar na convocação da Constituinte com o chavismo, acabando por tornar-se um apêndice de uma corrente burguesa, como demonstrou ser não só em palavras, mas nos fatos, a corrente lambertista.

Frente ao fato consumado da convocação da Assembléia Constituinte pelo chavismo, os revolucionários deveriam participar da Constituinte, com chapas independentes, de denúncia do próprio governo, em defesa de um programa revolucionário de ruptura com o imperialismo e a burguesia nacional, todo o contrário do que fizeram os poucos camaleões lam-bertistas na Venezuela.

Já o PST venezuelano, seção simpatizante da LIT que mantém relações fraternais com o MAS argentino, tratou de apresentar-se como conselheiro de esquerda do governo "bolivariano", defendendo a surrada política de "exigências" e "denúncias" do morenismo, que no fundo encobre sua sistemática capitulação ao nacionalismo burguês e ao reformismo.

Com um bom ajudante de ordens, o PST defende "Um governo constituinte dos trabalhadores e do povo com Chávez" e declara desavergonhadamente que "Chávez defende a ‘revolução democrática’ sem conteúdo. Nós devemos encher de conteúdo essa reivindicação com a proposta de mobilização popular por uma melhor distribuição de renda, pelo não pagamento da dívida externa, pelo salário digno, por emprego estável, por saúde e por educação, pela terra para quem nela trabalha e exigir que Chávez cumpra com reivindicações da ‘revolução democrática’, cuja melhor expressão seria um governo cujo eixo sejam os trabalhadores e o povo" (La Chispa, nº 223, maio/98).

Apesar do PST fantasiar os objetivos políticos de Chávez, esse já resolveu encher o ‘conteúdo’ de sua ‘revolução democrática’ com uma receita ditada diretamente pelo imperialismo e o FMI, começando a privatizar estatais, comprometendo-se a pagar a dívida externa em sua recente visita aos EUA e negando aumento aos empregados estatais.

Porém, o PST, não se dobra à realidade e em uma êxtase chavista continua a vender ilusões: "o combate contra a corrupção com Chávez como primeiro soldado e comandante, seguramente dará confiança e alegria a todo o povo e liberará quantidade de recursos para os planos econômicos" (Idem). Enquanto o PST se dedica a adornar como "progressista" o governo, Chávez capitula ao capital financeiro, indo louvar o mercado na bolsa de Wall Street e declara que não vai tocar nos contratos petrolíferos firmados pelo governo anterior.

Com sua criminosa posição, o PST não faz mais que embelezar o futuro algoz das massas venezuelanas que, com a ajuda da esquerda reformista, prepara as bases para uma sangrenta derrota aos trabalhadores que os governos anteriores não tiveram força de levar adiante.

A posição do PST é tão vergonhosa que seu próprio partido irmão no Brasil, o PSTU, denunciou que "o conjunto da esquerda venezuelana apoiou Chávez nestas eleições e a maioria das organizações operárias o fez sem denunciar o caráter populista e demagógico de seu programa" (Opinião Socialista, nº 73). Longe de representar um reserva principista na LIT, o PSTU, direção dessa corrente internacional atualmente, revela o caráter completamente federativo e menchevique da tendência morenista ao não escrever uma linha sequer de crítica ao PST, justamente por ter "apoiado Chávez sem denunciar o caráter populista de seu programa", ao contrário, esse partido cumpriu o papel de aconselhar o tenente-coronel no seu caminho rumo à "revolução democrática", como já haviam feito os morenistas do MAS e da então Convergência Socialista com outros políticos burgueses anteriormente na Argentina e no Brasil.

Os morenistas de segunda linha da UIT, dirigida pelo MST argentino e cuja filial no Brasil, a CST, é um braço político do lulismo, seguem o caminho de seus ex-mestres da LIT e, da mesma forma, adornam o tenente-coronel Hugo Chávez como um "militar revolucionário".

Adepta de todos os fenômenos políticos "esquerdistas" da moda (zapatistas, FARC’s, PT brasileiro), a UIT compartilha integralmente da política de apoiar Chávez para forçá-lo a dar um giro à esquerda, quando é claro que o governo ruma cada vez mais para o bonapartismo que se enfrentará com o movimento de massas, ao mesmo tempo que nega-se a atender as reivindicações populares.

No Alternativa Socialista nº 266 (outubro/99), jornal do MST argentino, os escudeiros da ‘revolução democrática’ saúdam entusiasticamente a formação da Frente Nacional de Trabalhadores Constituintes (FNTC), que apoiou Chávez, fazendo suas as palavras de um dos deputados "trotskistas" dessa frente, Orlando Chirino, que sem tecer qualquer crítica ao chavismo declara que "Chávez representou uma esperança de mudança. Em primeiro lugar, do processo de corrupção, clientelismo, tráfico de influência praticadas pela AD e o COPEI durante os últimos 40 anos que durou o "puntopijismo". Com esse critério, os trabalhadores votaram mas-sivamente por Chávez".

Dessa forma, a UIT e seus amigos "trotskistas" apenas contribuem para patrocinar ainda mais ilusões em Chávez, rompendo com a obrigação elementar de denunciar o novo governo como uma força burguesa em que as massas não devem depositar qualquer expectativa, um governo que sequer cumpriu sua promessa de aumentar os salários dos empregados públicos e fechou um acordo vergonhoso para preservar as corruptas instituições do regime, como o Congresso e a Corte Suprema de Justiça.

A completa claudicação de todas as vertentes pseudo-trotskistas na Venezuela ao chavismo, mesmo quando já se passaram seis meses de seu governo, com este reafirmando seus compromissos com o imperialismo (pagamento da dívida externa, privatizações) e negando-se a atender as mais elementares reivindicações populares (aumento salarial, redução dos impostos), colocam como tarefa urgente para a vanguarda operária e popular deste país superar as ilusões no chavismo, em um luta decidida contra a criminosa política seguidista dessas próprias correntes que maculam o legado de Trotsky e da IV Internacional.

Longe de ser um apêndice entusiasta da política do ex-golpista venezuelano, um genuíno partido trotskista deve se forjar na defesa da independência de classe frente ao pseudo-nacionalismo de Chávez, dando um duro combate por ganhar para as fileiras do autêntico trotskismo a vanguarda classista venezuelana, delimitando-se com as correntes centristas e social-democratas que apenas impedem as massas seguir adiante na luta por forjar um verdadeiro partido revolucionário da classe operária.



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